Vida
A julgar pelos nomes de seu pai, Prisco, seu avô, Báquio, e de seu próprio, Justino não é de origem judaica, embora nascido na Samaria. No cabeçalho de sua I Apologia 1,1, ele nos fornece detalhes de suas origens: “Ao imperador… Em prol dos homens de qualquer raça que são injustamente odiados e caluniados, eu, Justino, um deles, filho de Prisco, que o foi de Báquio, natural de Flávia Neápolis, na Síria Palestina, compus este discurso e esta petição”.
Flávia Neápolis foi fundada no ano 72 de nossa era, por Vespasiano, sobre a antiga Siquém. A cidade existe hoje sob o nome de Naplusa. Não se deve esquecer a importância deste sítio geográfico para a história religiosa de judeus e cristãos. Foi em Siquém que Deus apareceu a Abraão e este lhe dedicou um altar (cf. Gn 12,6-7). Ali se conservava a memória de um “poço de Jacó”, junto ao qual Jesus dialogou com a samaritana (cf. Jo 4,5-6). Foi em Siquém que Josué reuniu a grande assembléia das tribos para ratificar a aliança entre Deus e seu povo (cf. Js 24).
Outro dado indicativo de que Justino não era de origem judaica é que não conhecia o hebraico e não sofrera nenhuma influência do ambiente samaritano, nem mesmo era circunciso (cf. Diál. 28).
A data de seu nascimento deve ser situada por volta do ano 100 d.C. Sua conversão ao cristianismo parece ter ocorrido por volta do ano 132. Seriam duas as razões principais desta conversão: o desencanto com as filosofias que não lhe proporcionavam o saber tão procurado, e o corajoso enfrentamento da morte por parte dos cristãos. Nestas circunstâncias, o encontro com o ancião à beira mar, quando buscava a solidão, foi o ato decisivo (cf. Diál. 3).
Sua formação intelectual foi das mais aprimoradas. Segundo seu próprio testemunho, percorreu cidades e escolas filosóficas desejoso de conhecer a verdade, de tornar-se sábio. “Ardendo para ouvir o que é próprio e excelente na filosofia”, freqüentou os estóicos, peripatéticos, pitagóricos e platônicos (cf. Diál. 2,1-6) sem, contudo, encontrar respostas para seus anseios e suas indagações. Finalmente, através do ancião, teve conhecimento da “única filosofia certa e digna”, o cristianismo (Diál. 3-8).
Foi em Roma que Justino exerceu a maior parte de sua atividade. Ali abriu e dirigiu uma escola filosófica e escreveu suas obras.
Acusado perante Júnio Rústico, pelo filósofo cínico Crescente, foi decapitado, segundo a tradição, no ano 165. Há um relato de sua morte considerado autêntico, no Martirium S. Iustini et Sociorum, baseado nas atas oficiais do tribunal que o condenou. Segundo este documento, seis companheiros, discípulos provavelmente, o acompanharam no martírio.
As obras
Justino é, certamente, o melhor apologista do século II. Seu estilo, contudo, não é atraente. Não domina com mestria a arte de escrever. Nem chega a ser um pensador original e profundo, mas está a par das correntes filosóficas de seu tempo. É, assim, um grande erudito e um escritor convicto.
A dar crédito à declaração de Eusébio de Cesaréia, “Justino nos deixou um grande número de obras que testemunham uma inteligência culta e entregue ao estudo das coisas divinas, cheias de toda utilidade. A elas remeteremos os amigos do saber, depois de ter citado ultimamente as que vieram ao nosso conhecimento”. Quais seriam estas obras que chegaram até Eusébio e quais as que chegaram até nós? À primeira parte da pergunta responde o próprio Eusébio: “Em primeiro lugar, um discurso dirigido a Antonino, por sobrenome Pio, aos seus filhos e ao Senado romano, em favor de nossas doutrinas. Depois outro que contém a segunda Apologia em favor de nossa fé, dirigido ao que foi sucessor do citado imperador e leva seu mesmo nome de Antonino Vero, de cujo tempo estamos no presente falando (Marco Aurélio). Há outro discurso aos gregos no qual, fazendo larga exposição das questões discutidas entre nós e entre os filósofos gregos, discute sobre a natureza dos demônios (…). Chegou até nós ainda, outro escrito dirigido aos gregos, que intitulou Refutação, e outro Sobre a monarquia de Deus, que ele funda não só por nossas Escrituras, mas também pelos livros dos gregos. Além destes, há um intitulado Psaltès, e outro composto de escólios Sobre a alma, no qual, depois de expor as diversas opiniões relativas ao objeto de sua obra, propõe as opiniões dos filósofos gregos, que promete refutar, e expor sua própria opinião em outro escrito. Compôs também um Diálogo contra os judeus, que teve na cidade de Éfeso com Trifão, um dos mais famosos hebreus de então. Neste Diálogo, manifesta como a graça divina o conduziu à doutrina da fé, com que zelo havia anteriormente se dedicado às disciplinas filosóficas, e com que extraordinário fervor havia buscado a verdade (…). Muitos outros trabalhos seus correm entre os irmãos. Os escritos deste homem pareceram tão dignos de atenção que Ireneu cita palavras suas, primeiro no livro IV Contra as Heresias…” (HE, IV,18,1-9).
O próprio Justino alude, na I Apol. 26,8, a um escrito seu Contra todas as heresias que existiram até o presente e que estava disposto a pô-lo em mãos do imperador. Ireneu cita ainda um Contra Marcião, que se perdeu. Contudo, respondendo à segunda parte da pergunta, de todas estas obras citadas como sendo de Justino, somente chegaram até nós, como autênticas, as duas Apologias e o Diálogo com Trifão.
Concluindo esta apresentação geral, permitam-nos tomar as observações de um especialista: “O que, em Justino, conquista imediatamente nossa simpatia é o que eu chamaria de boa vontade de transparência de sua alma, sincera, leal, ardente entre todas. Essa alma se nos revela desde as primeiras linhas da Apologia; na dedicatória mesma, poucas palavras há, na literatura cristã primitiva, tão impressionantes como estas simples palavras: um deles. O que atrai e retém sobre ele a atenção do historiador é que o vemos preocupado, pela primeira vez, embora de maneira bastante confusa, pelo grande problema que a escola de Alexandria definirá muito mais exatamente, examinará com mais amplidão e método e resolverá, conseqüentemente, com mais êxito: o problema das relações entre a filosofia e a fé. A vida moral e intelectual de Justino tem sua fonte numa e noutra e pode-se dizer que ele soube conciliá-las, pois viveu de uma e de outra, já que não pudera viver sacrificando inteiramente uma ou outra” (A. Puech, Les Apologistes grecs du IIe siècle de notre ère, Paris, 1922, 52-53).
Data de composição
A data da composição desta obra pode ser deduzida de alguns dados internos. O primeiro está em sua própria dedicatória: ela é dirigida “Ao imperador Tito Élio Adriano Antonino Pio César Augusto, ao seu filho Veríssimo, filósofo, e a Lúcio, filho natural do César, filósofo e filho adotivo de Pio, amante do saber, ao sacro Senado e a todo o povo romano”. Ora, estes imperadores reinaram do ano 147 ao ano 161. A Apologia deve ter sido escrita ao longo destes 15 anos. Segundo, no capítulo 46,1, Justino menciona que uma das objeções contra a doutrina cristã era a de “dizermos que Cristo nasceu somente há cento e cinqüenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde, no tempo de Pôncio Pilatos”. Embora se deva tomar o ano cento e cinqüenta como um arredondamento, pode-se pensar que a redação da I Apologia não se deu antes desta data. Finalmente, no capítulo 29,2-3, Justino menciona o caso de um jovem cristão que recorreu ao prefeito Félix de Alexandria, suplicando-lhe interceder junto ao governador da província uma licença para se castrar. Ora, os especialistas identificam o prefeito Félix como Minúcio Félix, o qual reinou em Alexandria do ano 148 a 154. A I Apologia, portanto, deve ter sido escrita por volta de 155.
Estrutura e conteúdo da obra
A I Ap. está assentada numa estrutura ternária. Os caps. 1-3 formam uma introdução. Nela Justino dirige-se ao imperador Antonino Pio e a seus filhos para pleitear a defesa dos cristãos. Roga ao imperador que assuma pessoalmente a análise das acusações que se fazem com freqüência contra os cristãos e julgue imparcialmente, sem preconceitos, isto é, não se deixe levar pelo vozerio da plebe. Os caps. 4-12 formam uma parte substancial da I Ap. Nela Justino condena a atitude oficial a respeito dos cristãos. Critica o procedimento judicial seguido regularmente pelo governo contra os cristãos e as falsas acusações lançadas contra eles. Protesta contra a absurda atuação das autoridades que castigam pelo simples fato de alguém reconhecer-se cristão. Para Justino, o nome “cristão” é igual ao de “filósofo”. Não prova nem a culpa nem a inocência de alguém. Estranha maneira esta de condenar alguém somente pelo fato de se chamar “cristão”. Geralmente é por um crime cometido que se condena alguém, não por causa do nome. Aqui, o nome é crime. Mas porque, se este nome não está unido a nenhum ato desleal? Ao contrário, Justino demonstra que as esperanças escatológicas, o medo da condenação eterna fazem com que os cristãos sejam leais, respeitosos, cidadãos exemplares, exceto no culto aos ídolos. Castiga-se, assim, condena-se só pelo nome, pois basta alguém negar ser cristão para ser libertado, basta confessá-lo para ser condenado. Os crimes dos quais se acusam os cristãos são, portanto, calúnias. Estes, de fato, não são ateus. Negam adoração aos deuses do império porque julgam este ato ridículo. Os cristãos não oferecem a Deus culto material porque o culto agradável é a imitação de suas virtudes.
A defesa dos cristãos não era, contudo, o único fim da Apologia. A melhor defesa é expor a verdade. Justino mostra confiança no poder da verdade. O melhor meio de refutar é, portanto, expor publicamente a verdade da doutrina cristã. Tenta, assim, construir uma justificação da religião cristã. Apresenta com detalhes a doutrina, o batismo e a eucaristia, seus fundamentos históricos e as razões para abraçá-la. É então que Justino recorre à noção de Lógos para explicar que Cristo é o primogênito de Deus, o Logos do qual todo o gênero humano compartilha: todos os que vivem em conformidade ao Logos são cristãos, mesmo quando são considerados ateus (I Ap. 64,2-3).
A partir do cap. 18, Justino trata da imortalidade da alma depois da morte com argumentos suspeitos e, da ressurreição que só é possível pela onipotência de Deus. Nos caps. 21-22, estabelece analogias entre as doutrinas estóica e cristã. Contudo, Justino não percebe que seu caminho é perigoso, minado, pois essa semelhança pode ser arma para negar a divindade e originalidade do cristianismo. Justino estará procurando um meio de se tornar acessível, de ser compreendido, de dizer que o cristianismo não era de outro mundo? Falar a própria língua do pagão? No cap. 23, apresenta um novo plano de demonstração da doutrina cristã. Nos caps. 24-29, só a doutrina recebida de Cristo e dos profetas que o precederam é a verdadeira e mais antiga que todos os escritores anteriores. Dado que o critério da verdade é a antiguidade, Justino, como antes dele os apologistas judaicos, insiste que os filósofos tomaram dos profetas e de Moisés as verdades que expressam em seus ensinamentos (I Ap, 59,1-6; 60,1-7).
Nos caps. 30-53, Justino afirma que, antes da encarnação, os demônios inventaram muitas armadilhas para apartar os homens da fé naquele mistério. Aí Justino identifica Cristo com a alma do mundo de Platão (Timeu, 366). Para ele, Platão teria haurido esta verdade de Nm 21,7-8. Finalmente, Justino defende os cristãos dizendo que neles o imperador tem os melhores colaboradores. Porque os cristãos são fiéis ao Evangelho, são também leais ao imperador e cumprem com mais fervor e prontidão do que nenhum outro cidadão seus deveres, “pois nosso Mestre nos ensinou a dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”, isto é, adoração a Deus e só serviço e tributo a César. Portanto, não são inimigos do império, mas pela doutrina e pelo comportamento são os melhores servidores dos governadores, para manter a paz. Infelizmente, Justino apresenta a religião cristã como garantia, como estrutura que ajuda a manter a “ordem social”. O cristianismo perde assim toda sua força questionadora das estruturas dominantes, opressoras. No cap. 11, Justino diz que os cristãos não esperam por “reino deste mundo”. Logo, os cristãos não merecem ser perseguidos nem quanto à religião, nem por sua atitude ante o império.
Como explicar, então, as perseguições contra os cristãos? Por que gente de bem é perseguida enquanto os idólatras, adúlteros não são molestados? Para Justino, a perseguição contra os cristãos é instigação dos demônios. Aqui Justino se mostra inteiramente dependente de seu meio e de seu tempo. É também um dos pontos fracos de sua argumentação. O propósito dos demônios é de reduzir os homens a seus servos e assistentes. São instigadores do paganismo antes da vinda de Cristo e dos hereges agora.