Para entender o que é a Liturgia, devemos situá-la no contexto da história da salvação.
1.Esta tem sua origem no plano eterno do Pai: antes da criação do mundo, Ele viu e chamou todos os homens à plenitude da vida mediante seu Filho, num ato de amor totalmente gratuito; cf. Ef 1,3- 6; 1 Tm 2,4; 2 Tm 1,9.
2. Este "mistério escondido desde os séculos" (Cl 1,26) foi sendo aos poucos revelado no tempo da Promessa, que é o Antigo Testamento: Deus falou aos Patriarcas e Profetas muitas vezes e de muitos modos (Hb 1, 1 ), anunciando-lhes a definitiva Aliança a ser travada em Cristo. Pode-se dizer que a promessa não se dirigia apenas aos justos do povo de Israel, mas estendia-se a todos os homens, a quem Deus falava por meio da religião natural; o Criador se fez (e se faz) presente e reconhecível a todos os povos de qualquer época mediante a voz da consciência e o testemunho do cosmo, que fala da sabedoria e da grandeza do Criador (cf. At 17,22-29; Rm 1,18-23; Sb 13,1-9).
3. O tempo da promessa desembocou na plenitude dos tempos (GI 4,4; Ef 1,10), que é também o tempo de Cristo. "A Palavra se fez carne", trazendo em si o Evangelho (= a Boa-Nova da salvação): cf. Jo 1,14. O anúncio tornou-se realidade presente. Jesus Cristo, oferecendo-se ao Pai como novo Adão (cf. 1 Cor 15,45-49), reconciliou os homens com Deus e selou com o seu sangue a Aliança da criatura com o Criador; chamou assim os homens a um consórcio de vida com o Pai, mediante o Filho, no Espírito Santo. A salvação, outrora anunciada, tornou-se salvação efetuada ou realizada.
4. O tempo de Cristo se prolonga no tempo da Igreja, que é também o de Cristo em seu Corpo Místico. A Igreja nasce do lado de Cristo pendente da Cruz, quando a lança o traspassa fazendo jorrar água e sangue (cf. Jo 19,33-37); estes dois elementos são figura do sacramentos (dos quais o da água, o Batismo, e do sangue, a Eucaristia, são os principais). São os sacramentos que fazem a Igreja, transmitindo a vida eterna do Pai, que se encarnou na humanidade de Jesus e se estende até nós mediante o Corpo da Igreja, no qual a água do Batismo e o sangue da Eucaristia nos comunicam a vida em Deus.
Estas verdades se acham sinteticamente apresentadas no nº 5 da Sacrossanctum concilium:
"A obra da Redenção humana e da perfeita glorificação de Deus, da qual foram prelúdio as maravilhas divinas operadas no povo do Antigo Testamento, completou-as Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal de sua sagrada Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão. Por este mistério, Cristo, morrendo, destruiu a nossa morte e, ressuscitando, restaurou a nossa vida. Pois, do lado de Cristo adormecido na Cruz, nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja".
5. O último tempo da história da salvação, pode-se dizer, é o da Liturgia. Esta torna presente a obra redentora de Cristo, mediante sinais sagrados, a fim de que participemos desta; com efeito, somos também nós atores da história da salvação, que, inseridos em Cristo pelos sacramentos, desempenham seu papel próprio dentro do desígnio divino de salvar o mundo. Vê-se, pois, que a Liturgia não é um espetáculo sagrado bem definido por rubricas ou normas, mas é a própria história da salvação em exercício. Tudo o que o Senhor Deus realizou através dos séculos em prol da salvação humana (a Páscoa do Antigo Testamento, com seu cordeiro, a travessia do Mar Vermelho, o maná, a libertação frente ao Faraó, a Encarnação do Verbo, a Morte e a Ressurreição de Jesus, o Dom do Espírito Santo em Pentecostes), desemboca na Liturgia e toma aí o seu sentido concreto e vivo para cada cristão. A história passada deixa de ser mero passado para tornar-se presente e atuante em nosso favor; os fatos anunciados ou narrados vêm a ser representados (feitos de novo presentes)1 para nossa participação. E o que lemos na Constituição SC nº 6:
Assim como Cristo foi enviado pelo Pai, assim também Ele enviou os Apóstolos, cheios do Espírito Santo, não só para que, pregando o Evangelho a toda a criatura (14), anunciassem que o Filho de Deus, pela sua morte e ressurreição, nos libertara do poder de Satanás (15) e da morte e nos introduzira no Reino do Pai, mas também para que realizassem a obra de salvação que anunciavam, mediante o sacrifício e os sacramentos, à volta dos quais gira toda a vida litúrgica.
Notemos neste texto a referência à dupla missão confiada por Jesus aos Apóstolos: 1) anunciar e 2) tornar presente o que anunciavam. A palavra de anúncio prepara e explica os sinais sacramentais e estes trazem para o presente os dons de Deus, anunciados pela palavra. É isto, aliás, que está contido também nas últimas palavras de Jesus aos seus Apóstolos: Ele os manda a pregar (anunciar a Palavra) e batizar (isto é, tornar presente por ritos sagrados aquilo que a Palavra anuncia). A Palavra e o rito garantem a presença do Senhor até o fim dos tempos: "Eis que estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos" (Mt 28,20). O texto da Constituição continua, referindo-se especialmente ao Batismo e à Eucaristia:
"Assim, pelo Batismo, os homens são inseridos no mistério pascal de Cristo; com Ele mortos, com Ele sepultados, com Ele ressuscitados; recebem o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos Abá, Pai ( Rm 8, 15 ) ... Da mesma forma, todas as vezes que participam da ceia do Senhor, anunciam a morte de jesus até que venha( ... )
Nunca a Igreja ( ... ) deixou de se reunir para celebrar o mistério pascal: lendo tudo quanto a Ele se referia nas Escrituras (Lc 24,27), celebrando a Eucaristia, na qual se torna novamente presente a vitória e o triunfo de sua morte ... ".
Ainda uma observação: vê-se que a palavra da Escritura Sagrada na Liturgia não pode ser equiparada à palavra meramente humana, por mais santo ou douto que seja o autor desta. A Palavra de Deus, justamente porque é Palavra de Deus e não palavra meramente humana, participa da eficácia do próprio Deus; é um sacramental, que anuncia e torna presente o que ele anuncia: os gestos rituais concretizam as palavras e as palavras explicam ou interpretam os gestos.