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Quarta, 11 Setembro 2024 06:50

Carta aos Artistas, João Paulo II (1999)

CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II AOS ARTISTAS

A todos aqueles que apaixonadamente procuram novas « epifanias » da beleza para oferecê-las ao mundo como criação artística.
4 de Abril de 1999

Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa » (Gn 1,31).

O artista, imagem de Deus Criador

1. Ninguém melhor do que vós, artistas, construtores geniais de beleza, pode intuir algo daquele pathos com que Deus, na aurora da criação, contemplou a obra das suas mãos. Infinitas vezes se espelhou um relance daquele sentimento no olhar com que vós — como, aliás, os artistas de todos os tempos —, maravilhados com o arcano poder dos sons e das palavras, das cores e das formas, vos pusestes a admirar a obra nascida do vosso génio artístico, quase sentindo o eco daquele mistério da criação a que Deus, único criador de todas as coisas, de algum modo vos quis associar.

Pareceu-me, por isso, que não havia palavras mais apropriadas do que as do livro do Génesis para começar esta minha Carta para vós, a quem me sinto ligado por experiências dos meus tempos passados e que marcaram indelevelmente a minha vida. Ao escrever-vos, desejo dar continuidade àquele fecundo diálogo da Igreja com os artistas que, em dois mil anos de história, nunca se interrompeu e se prevê ainda rico de futuro no limiar do terceiro milénio.

Na realidade, não se trata de um diálogo ditado apenas por circunstâncias históricas ou motivos utilitários, mas radicado na própria essência tanto da experiência religiosa como da criação artística. A página inicial da Bíblia apresenta-nos Deus quase como o modelo exemplar de toda a pessoa que produz uma obra: no artífice, reflecte-se a sua imagem de Criador. Esta relação é claramente evidenciada na língua polaca, com a semelhança lexical das palavras stwórca (criador) e twórca (artífice).

Qual é a diferença entre « criador » e « artífice »? Quem cria dá o próprio ser, tira algo do nada — ex nihilo sui et subiecti, como se costuma dizer em latim — e isto, em sentido estrito, é um modo de proceder exclusivo do Omnipotente. O artífice, ao contrário, utiliza algo já existente, a que dá forma e significado. Este modo de agir é peculiar do homem enquanto imagem de Deus. Com efeito, depois de ter afirmado que Deus criou o homem e a mulher « à sua imagem » (cf. Gn 1,27), a Bíblia acrescenta que Ele confiou-lhes a tarefa de dominarem a terra (cf. Gn 1,28). Foi no último dia da criação (cf. Gn 1,28-31). Nos dias anteriores, como que marcando o ritmo da evolução cósmica, Javé tinha criado o universo. No final, criou o homem, o fruto mais nobre do seu projecto, a quem submeteu o mundo visível como um campo imenso onde exprimir a sua capacidade inventiva.

Por conseguinte, Deus chamou o homem à existência, dando-lhe a tarefa de ser artífice. Na « criação artística », mais do que em qualquer outra actividade, o homem revela-se como « imagem de Deus », e realiza aquela tarefa, em primeiro lugar plasmando a « matéria » estupenda da sua humanidade e depois exercendo um domínio criativo sobre o universo que o circunda. Com amorosa condescendência, o Artista divino transmite uma centelha da sua sabedoria transcendente ao artista humano, chamando-o a partilhar do seu poder criador. Obviamente é uma participação, que deixa intacta a infinita distância entre o Criador e a criatura, como sublinhava o Cardeal Nicolau Cusano: « A arte criativa, que a alma tem a sorte de albergar, não se identifica com aquela arte por essência que é própria de Deus, mas constitui apenas comunicação e participação dela ».[1]

Por isso, quanto mais consciente está o artista do « dom » que possui, tanto mais se sente impelido a olhar para si mesmo e para a criação inteira com olhos capazes de contemplar e agradecer, elevando a Deus o seu hino de louvor. Só assim é que ele pode compreender-se profundamente a si mesmo e à sua vocação e missão.

A vocação especial do artista

2. Nem todos são chamados a ser artistas, no sentido específico do termo. Mas, segundo a expressão do Génesis, todo o homem recebeu a tarefa de ser artífice da própria vida: de certa forma, deve fazer dela uma obra de arte, uma obra-prima.

É importante notar a distinção entre estas duas vertentes da actividade humana, mas também a sua conexão. A distinção é evidente. De facto, uma coisa é a predisposição pela qual o ser humano é autor dos próprios actos e responsável do seu valor moral, e outra a predisposição pela qual é artista, isto é, sabe agir segundo as exigências da arte, respeitando fielmente as suas regras específicas.[2] Assim, o artista é capaz de produzir objectos, mas isso de per si ainda não indica nada sobre as suas disposições morais. Neste caso, não se trata de plasmar-se a si mesmo, de formar a própria personalidade, mas apenas de fazer frutificar capacidades operativas, dando forma estética às ideias concebidas pela mente.

Mas, se a distinção é fundamental, importante é igualmente a conexão entre as duas predisposições: a moral e a artística. Ambas se condicionam de forma recíproca e profunda. De facto, o artista, quando modela uma obra, exprime-se de tal modo a si mesmo que o resultado constitui um reflexo singular do próprio ser, daquilo que ele é e de como o é. Isto aparece confirmado inúmeras vezes na história da humanidade. De facto, quando o artista plasma uma obra-prima, não dá vida apenas à sua obra, mas, por meio dela, de certo modo manifesta também a própria personalidade. Na arte, encontra uma dimensão nova e um canal estupendo de expressão para o seu crescimento espiritual. Através das obras realizadas, o artista fala e comunica com os outros. Por isso, a História da Arte não é apenas uma história de obras, mas também de homens. As obras de arte falam dos seus autores, dão a conhecer o seu íntimo e revelam o contributo original que eles oferecem à história da cultura.

A vocação artística ao serviço da beleza

3. Um conhecido poeta polaco, Cyprian Norwid, escreveu: « A beleza é para dar entusiasmo ao trabalho, o trabalho para ressurgir ».[3]

O tema da beleza é qualificante, ao falar de arte. Esse tema apareceu já, quando sublinhei o olhar de complacência que Deus lançou sobre a criação. Ao pôr em relevo que tudo o que tinha criado era bom, Deus viu também que era belo.[4] A confrontação entre o bom e o belo gera sugestivas reflexões. Em certo sentido, a beleza é a expressão visível do bem, do mesmo modo que o bem é a condição metafísica da beleza. Justamente o entenderam os Gregos, quando, fundindo os dois conceitos, cunharam uma palavra que abraça a ambos: « kalokagathía », ou seja, « beleza-bondade ». A este respeito, escreve Platão: « A força do Bem refugiou-se na natureza do Belo ».[5]

Vivendo e agindo é que o homem estabelece a sua relação com o ser, a verdade e o bem. O artista vive numa relação peculiar com a beleza. Pode-se dizer, com profunda verdade, que a beleza é a vocação a que o Criador o chamou com o dom do « talento artístico ». E também este é, certamente, um talento que, na linha da parábola evangélica dos talentos (cf. Mt 25,14-30), se deve pôr a render.

Tocamos aqui um ponto essencial. Quem tiver notado em si mesmo esta espécie de centelha divina que é a vocação artística — de poeta, escritor, pintor, escultor, arquitecto, músico, actor... —, adverte ao mesmo tempo a obrigação de não desperdiçar este talento, mas de o desenvolver para colocá-lo ao serviço do próximo e de toda a humanidade.

O artista e o bem comum

4. De facto, a sociedade tem necessidade de artistas, da mesma forma que precisa de cientistas, técnicos, trabalhadores, especialistas, testemunhas da fé, professores, pais e mães, que garantam o crescimento da pessoa e o progresso da comunidade, através daquela forma sublime de arte que é a « arte de educar ». No vasto panorama cultural de cada nação, os artistas têm o seu lugar específico. Precisamente enquanto obedecem ao seu génio artístico na realização de obras verdadeiramente válidas e belas, não só enriquecem o património cultural da nação e da humanidade inteira, mas prestam também um serviço social qualificado ao bem comum.

A vocação diferente de cada artista, ao mesmo tempo que determina o âmbito do seu serviço, indica também as tarefas que deve assumir, o trabalho duro a que tem de sujeitar-se, a responsabilidade que deve enfrentar. Um artista, consciente de tudo isto, sabe também que deve actuar sem deixar-se dominar pela busca duma glória efémera ou pela ânsia de uma popularidade fácil, e menos ainda pelo cálculo do possível ganho pessoal. Há, portanto, uma ética ou melhor uma « espiritualidade » do serviço artístico, que a seu modo contribui para a vida e o renascimento do povo. A isto mesmo parece querer aludir Cyprian Norwid, quando afirma: « A beleza é para dar entusiasmo ao trabalho, o trabalho para ressurgir ».

A arte face ao mistério do Verbo encarnado

5. A Lei do Antigo Testamento contém uma proibição explícita de representar Deus invisível e inexprimível através duma « estátua esculpida ou fundida » (Dt 27,15), porque Ele transcende qualquer representação material: « Eu sou Aquele que sou » (Ex 3,14). No mistério da Encarnação, porém, o Filho de Deus tornou-Se visível em carne e osso: « Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher » (Gl 4,4). Deus fez-Se homem em Jesus Cristo, que Se tornou assim « o centro de referência para se poder compreender o enigma da existência humana, do mundo criado, e mesmo de Deus ».[6]

Esta manifestação fundamental do « Deus-Mistério » apresenta-se como estímulo e desafio para os cristãos, inclusive no plano da criação artística. E gerou-se um florescimento de beleza, cuja linfa proveio precisamente daqui, do mistério da Encarnação. De facto, quando Se fez homem, o Filho de Deus introduziu na história da humanidade toda a riqueza evangélica da verdade e do bem e, através dela, pôs a descoberto também uma nova dimensão da beleza: a mensagem evangélica está completamente cheia dela.

A Sagrada Escritura tornou-se, assim, uma espécie de « dicionário imenso » (P. Claudel) e de « atlas iconográfico » (M. Chagall), onde foram beber a cultura e a arte cristã. O próprio Antigo Testamento, interpretado à luz do Novo, revelou mananciais inexauríveis de inspiração. Desde as narrações da criação, do pecado, do dilúvio, do ciclo dos Patriarcas, dos acontecimentos do êxodo, passando por tantos outros episódios e personagens da História da Salvação, o texto bíblico atiçou a imaginação de pintores, poetas, músicos, autores de teatro e de cinema. Uma figura como a de Job, só para dar um exemplo, com a problemática pungente e sempre actual da dor, continua a suscitar conjuntamente interesse filosófico, literário e artístico. E que dizer então do Novo Testamento? Desde o Nascimento ao Gólgota, da Transfiguração à Ressurreição, dos milagres aos ensinamentos de Cristo, até chegar aos acontecimentos narrados nos Actos dos Apóstolos ou previstos no Apocalipse em chave escatológica, inúmeras vezes a palavra bíblica se fez imagem, música, poesia, evocando com a linguagem da arte o mistério do « Verbo feito carne ».

Tudo isto constitui, na história da cultura, um amplo capítulo de fé e de beleza. Dele tiraram proveito sobretudo os crentes para a sua experiência de oração e de vida. Para muitos deles, em tempos de escassa alfabetização, as expressões figurativas da Bíblia constituíram mesmo um meio concreto de catequização.[7] Mas para todos, crentes ou não, as realizações artísticas inspiradas na Sagrada Escritura permanecem um reflexo do mistério insondável que abraça e habita o mundo.

Entre Evangelho e arte, uma aliança profunda

6. Com efeito, toda a intuição artística autêntica ultrapassa o que os sentidos captam e, penetrando na realidade, esforça-se por interpretar o seu mistério escondido. Ela brota das profundidades da alma humana, lá onde a aspiração de dar um sentido à própria vida se une com a percepção fugaz da beleza e da unidade misteriosa das coisas. Uma experiência partilhada por todos os artistas é a da distância incolmável que existe entre a obra das suas mãos, mesmo quando bem sucedida, e a perfeição fulgurante da beleza vislumbrada no ardor do momento criativo: tudo o que conseguem exprimir naquilo que pintam, modelam, criam, não passa de um pálido reflexo daquele esplendor que brilhou por instantes diante dos olhos do seu espírito.

O crente não se maravilha disto: sabe que se debruçou por um instante sobre aquele abismo de luz que tem a sua fonte originária em Deus. Há porventura motivo para admiração, se o espírito fica de tal modo inebriado que não sabe exprimir-se senão por balbuciações? Ninguém mais do que o verdadeiro artista está pronto a reconhecer a sua limitação e fazer suas as palavras do apóstolo Paulo, segundo o qual Deus « não habita em santuários construídos pela mão do homem », pelo que « não devemos pensar que a Divindade seja semelhante ao ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e engenho do homem » (Act 17,24.29). Se já a realidade íntima das coisas se situa « para além » das capacidades de compreensão humana, quanto mais Deus nas profundezas do seu mistério insondável!

Já de natureza diversa é o conhecimento de fé: este supõe um encontro pessoal com Deus em Jesus Cristo. Mas também este conhecimento pode tirar proveito da intuição artística. Modelo eloquente duma contemplação estética que se sublima na fé são, por exemplo, as obras do Beato Fra Angélico. A este respeito, é igualmente significativa a lauda extasiada, que S. Francisco de Assis repete duas vezes na chartula, redigida depois de ter recebido os estigmas de Cristo no monte Alverne: « Vós sois beleza... Vós sois beleza! ».[8] S. Boaventura comenta: « Contemplava nas coisas belas o Belíssimo e, seguindo o rasto impresso nas criaturas, buscava por todo o lado o Dilecto ».[9]

Uma perspectiva semelhante aparece na espiritualidade oriental, quando Cristo é designado como « o Belíssimo de maior beleza que todos os mortais ».[10] Assim comenta Macário, o Grande, a beleza transfigurante e libertadora que irradia do Ressuscitado: « A alma que foi plenamente iluminada pela beleza inexprimível da glória luminosa do rosto de Cristo, fica cheia do Espírito Santo (...) é toda olhos, toda luz, toda rosto ».[11]

Toda a forma autêntica de arte é, a seu modo, um caminho de acesso à realidade mais profunda do homem e do mundo. E, como tal, constitui um meio muito válido de aproximação ao horizonte da fé, onde a existência humana encontra a sua plena interpretação. Por isso é que a plenitude evangélica da verdade não podia deixar de suscitar, logo desde os primórdios, o interesse dos artistas, sensíveis por natureza a todas as manifestações da beleza íntima da realidade.

Os primórdios

7. A arte, que o cristianismo encontrou nos seus inícios, era o fruto maduro do mundo clássico, exprimia os seus cânones estéticos e, ao mesmo tempo, veiculava os seus valores. A fé impunha aos cristãos, tanto no campo da vida e do pensamento como no da arte, um discernimento que não permitia a aceitação automática deste património. Assim, a arte de inspiração cristã começou em surdina, ditada pela necessidade que os crentes tinham de elaborar sinais para exprimirem, com base na Escritura, os mistérios da fé e simultaneamente de arranjar um « código simbólico » para se reconhecerem e identificarem especialmente nos tempos difíceis das perseguições. Quem não recorda certos símbolos que foram os primeiros vestígios duma arte pictórica e plástica? O peixe, os pães, o pastor... Evocavam o mistério, tornando-se quase insensivelmente esboços de uma arte nova.

Quando, pelo édito de Constantino, foi concedido aos cristãos exprimirem-se com plena liberdade, a arte tornou-se um canal privilegiado de manifestação da fé. Por todo o lado, começaram a despontar majestosas basílicas, nas quais os cânones arquitectónicos do antigo paganismo eram assumidos sim, mas reajustados às exigências do novo culto. Como não recordar pelo menos a antiga Basílica de S. Pedro e a de S. João de Latrão, construídas pelo imperador Constantino? Ou, no âmbito dos esplendores da arte bizantina, a Haghia Sophía de Constantinopla querida por Justiniano?

Enquanto a arquitectura desenhava o espaço sagrado, a necessidade de contemplar o mistério e de o propor de modo imediato aos simples levou progressivamente às primeiras expressões da arte pictórica e escultural. Ao mesmo tempo surgiam os primeiros esboços de uma arte da palavra e do som; e se Agostinho incluía também, entre as temáticas da sua produção, um De musica, Hilário, Ambrósio, Prudêncio, Efrém da Síria, Gregório de Nazianzo, Paulino de Nola, para citar apenas alguns nomes, faziam-se promotores de poesia cristã, que atinge frequentemente um alto valor não só teológico mas também literário. A sua produção poética valorizava formas herdadas dos clássicos, mas bebia na linfa pura do Evangelho, como justamente sentenciava o Santo poeta de Nola: « A nossa única arte é a fé, e Cristo é o nosso canto ».[12] Algum tempo mais tarde, Gregório Magno, com a compilação do Antiphonarium, punha as premissas para o desenvolvimento orgânico daquela música sacra tão original, que ficou conhecida pelo nome dele. Com as suas inspiradas modulações, o Canto Gregoriano tornar-se-á, com o passar dos séculos, a expressão melódica típica da fé da Igreja durante a celebração litúrgica dos Mistérios Sagrados. Assim, o « belo » conjugava-se com o « verdadeiro », para que, também através dos caminhos da arte, os ânimos fossem arrebatados do sensível ao eterno.

Não faltaram momentos difíceis neste caminho. A propósito precisamente do tema da representação do mistério cristão, a antiguidade conheceu uma áspera controvérsia, que passou à história com o nome de « luta iconoclasta ». As imagens sagradas, já então difusas na devoção do povo de Deus, foram objecto de violenta contestação. O Concílio celebrado em Niceia no ano 787, que estabeleceu a legitimidade das imagens e do seu culto, foi um acontecimento histórico não só para a fé mas também para a própria cultura. O argumento decisivo a que recorreram os Bispos para debelar a controvérsia, foi o mistério da Encarnação: se o Filho de Deus entrou no mundo das realidades visíveis, lançando, pela sua humanidade, uma ponte entre o visível e o invisível, é possível pensar que analogamente uma representação do mistério pode ser usada, pela dinâmica própria do sinal, como evocação sensível do mistério. O ícone não é venerado por si mesmo, mas reenvia ao sujeito que representa.[13]

A Idade Média

8. Os séculos seguintes foram testemunhas dum grande desenvolvimento da arte cristã. No Oriente, continuou a florescer a arte dos ícones, vinculada a significativos cânones teológicos e estéticos e apoiada na convicção de que, em determinado sentido, o ícone é um sacramento: com efeito, de modo análogo ao que sucede nos sacramentos, ele torna presente o mistério da Encarnação nalgum dos seus aspectos. Por isso mesmo, a beleza dum ícone pode ser apreciada sobretudo no interior de um templo, com os candelabros que ardem e suscitam na penumbra infinitos reflexos de luz. A este respeito, escreve Pavel Florenskij: « Bárbaro, pesado, fútil à luz clara do dia, o ouro reanima-se com a luz trémula dum candelabro ou duma vela, que o faz cintilar aqui e ali com miríades de fulgores, fazendo pressentir outras luzes não terrestres que enchem o espaço celeste ».[14]

No Ocidente, são muito variadas as perspectivas e os pontos donde partem os artistas, dependendo também das convicções fundamentais presentes no ambiente cultural do respectivo tempo. O património artístico, que se foi acumulando ao longo dos séculos, conta um florescimento vastíssimo de obras sacras de alta inspiração, que deixam cheio de admiração mesmo o observador do nosso tempo. Em primeiro plano, situam-se as grandes construções do culto, onde a funcionalidade sempre se une ao génio artístico, e este último se deixa inspirar pelo sentido do belo e pela intuição do mistério. Nascem daí estilos bem conhecidos na História da Arte. A força e a simplicidade do românico, expressa nas catedrais ou nas abadias, vai-se desenvolvendo gradualmente nas ogivas e esplendores do gótico. Dentro destas formas, não existe só o génio dum artista, mas a alma dum povo. Nos jogos de luzes e sombras, nas formas ora maciças ora ogivadas, intervêm certamente considerações de técnica estrutural, mas também tensões próprias da experiência de Deus, mistério « tremendo » e « fascinante ». Como sintetizar em poucos traços, nas diversas expressões da arte, a força criativa dos longos séculos da Idade Média cristã? Uma cultura inteira, embora com as limitações humanas sempre presentes, impregnara-se de Evangelho, e onde o pensamento teológico realizava a Summa de S. Tomás, a arte das igrejas submetia a matéria à adoração do mistério, ao mesmo tempo que um poeta admirável como Dante Alighieri podia compor « o poema sagrado, para o qual concorreram céu e terra »,[15] como ele próprio classifica a Divina Comédia.

Humanismo e Renascimento

9. A feliz estação cultural, em que tem origem o florescimento artístico extraordinário do Humanismo e do Renascimento, apresenta também reflexos significativos do modo como os artistas desse período concebiam o tema religioso. Naturalmente as inspirações são tão variadas como os seus estilos, ou pelo menos como os mais importantes deles. Mas, não é minha intenção lembrar coisas que vós, artistas, bem conheceis. Dado que vos escrevo deste Palácio Apostólico, escrínio de obras-primas talvez único no mundo, quero antes fazer-me voz dos maiores artistas que por aqui disseminaram as riquezas do seu génio, permeado frequentemente de grande profundidade espiritual. Daqui fala Miguel Ângelo, que na Capela Sistina de algum modo compendiou, desde a Criação ao Juízo Universal, o drama e o mistério do mundo, retratando Deus Pai, Cristo Juiz, o homem no seu fatigante caminho desde as origens até ao fim da História. Daqui fala o génio delicado e profundo de Rafael, apontando, na variedade das suas pinturas e de modo especial na « Disputa » da Sala da Assinatura, o mistério da revelação de Deus Trinitário, que na Eucaristia Se faz companheiro do homem, e projecta luz sobre as questões e os anelos da inteligência humana. Daqui, da majestosa Basílica dedicada ao Príncipe dos Apóstolos, da colunata que sai dela como dois braços abertos para acolher a humanidade, falam ainda Bramante, Bernini, Borromini, Maderno, para citar apenas os maiores, oferecendo plasticamente o sentido do mistério que faz da Igreja uma comunidade universal, hospitaleira, mãe e companheira de viagem para todo o homem à procura de Deus.

A arte sacra encontrou, neste conjunto extraordinário, uma força expressiva excepcional, atingindo níveis de imorredoiro valor quer estético quer religioso. O que vai caracterizando cada vez mais tal arte, sob o impulso do Humanismo e do Renascimento e das sucessivas tendências da cultura e da ciência, é um crescente interesse pelo homem, pelo mundo, pela realidade histórica. Esta atenção, por si mesma, não é de modo algum um perigo para a fé cristã, centrada sobre o mistério da Encarnação e, portanto, sobre a valorização do homem por parte de Deus. Precisamente os maiores artistas acima mencionados no-lo demonstram. Bastaria pensar no modo como Miguel Ângelo exprime nas suas pinturas e esculturas, a beleza do corpo humano.[16]

Aliás, mesmo no novo clima dos últimos séculos quando parte da sociedade parece indiferente à fé, a arte religiosa não cessou de avançar. A constatação torna-se ainda mais palpável, se da vertente das artes figurativas se passa a considerar o grande desenvolvimento que, neste mesmo período de tempo, teve a música sacra, composta para as necessidades litúrgicas, ou apenas relacionada com temas religiosos. Sem contar tantos artistas que a ela se dedicaram amplamente (como não lembrar Pero Luís de Palestrina, Orlando de Lasso, Tomás Luís de Victoria?), é sabido que muitos dos grandes compositores — de Händel a Bach, de Mozart a Schubert, de Beethoven a Berlioz, de Listz a Verdi — nos ofereceram obras de altíssima inspiração também neste campo.

A caminho dum renovado diálogo

10. Verdade é que, na Idade Moderna, ao lado deste humanismo cristão que continuou a produzir significativas expressões de cultura e de arte, foi-se progressivamente afirmando também uma forma de humanismo caracterizada pela ausência de Deus senão mesmo pela oposição a Ele. Este clima levou por vezes a uma certa separação entre o mundo da arte e o da fé, pelo menos no sentido de menor interesse de muitos artistas pelos temas religiosos.

Mas, vós sabeis que a Igreja continuou a nutrir grande apreço pelo valor da arte enquanto tal. De facto esta, mesmo fora das suas expressões mais tipicamente religiosas, mantém uma afinidade íntima com o mundo da fé, de modo que, até mesmo nas condições de maior separação entre a cultura e a Igreja, é precisamente a arte que continua a constituir uma espécie de ponte que leva à experiência religiosa. Enquanto busca do belo, fruto duma imaginação que voa mais acima do dia-a-dia, a arte é, por sua natureza, uma espécie de apelo ao Mistério. Mesmo quando perscruta as profundezas mais obscuras da alma ou os aspectos mais desconcertantes do mal, o artista torna-se de qualquer modo voz da esperança universal de redenção.

Compreende-se, assim, porque a Igreja está especialmente interessada no diálogo com a arte e quer que se realize na nossa época uma nova aliança com os artistas, como o dizia o meu venerando predecessor Paulo VI no seu discurso veemente aos artistas, durante um encontro especial na Capela Sistina a 7 de Maio de 1964.[17] A Igreja espera dessa colaboração uma renovada « epifania » de beleza para o nosso tempo e respostas adequadas às exigências próprias da comunidade cristã.

No espírito do Concílio Vaticano II

11. O Concílio Vaticano II lançou as bases para uma renovada relação entre a Igreja e a cultura, com reflexos imediatos no mundo da arte. Tal relação é proposta na base da amizade, da abertura e do diálogo. Na Constituição pastoral Gaudium et spes, os Padres Conciliares sublinharam a « grande importância » da literatura e das artes na vida do homem: « Elas procuram dar expressão à natureza do homem, aos seus problemas e à experiência das suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam identificar a sua situação na história e no universo, dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades e energias, e desvendar um futuro melhor ».[18]

Baseados nisto, os Padres, no final do Concílio, dirigiram aos artistas uma saudação e um apelo, nestes termos: « O mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, é a que traz alegria ao coração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passar do tempo, que une as gerações e as faz comungar na admiração ».[19] Neste mesmo espírito de profunda estima pela beleza, a Constituição sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium lembrou a histórica amizade da Igreja pela arte e, falando mais especificamente da arte sacra, « vértice » da arte religiosa, não hesitou em considerar como « nobre ministério » a actividade dos artistas, quando as suas obras são capazes de reflectir de algum modo a beleza infinita de Deus e orientar para Ele a mente dos homens.[20] Também através do seu contributo, « o conhecimento de Deus é mais perfeitamente manifestado e a pregação evangélica torna-se mais compreensível ao espírito dos homens ».[21] À luz disto, não surpreende a afirmação do Padre Marie-Dominique Chenu, segundo o qual o historiador da Teologia deixaria a sua obra incompleta, se não dedicasse a devida atenção às realizações artísticas, quer literárias quer plásticas, que a seu modo constituem « não só ilustrações estéticas, mas verdadeiros “lugares” teológicos ».[22]

A Igreja precisa da arte

12. Para transmitir a mensagem que Cristo lhe confiou, a Igreja tem necessidade da arte. De facto, deve tornar perceptível e até o mais fascinante possível o mundo do espírito, do invisível, de Deus. Por isso, tem de transpor para fórmulas significativas aquilo que, em si mesmo, é inefável. Ora, a arte possui uma capacidade muito própria de captar os diversos aspectos da mensagem, traduzindo-os em cores, formas, sons que estimulam a intuição de quem os vê e ouve. E isto, sem privar a própria mensagem do seu valor transcendente e do seu halo de mistério.

A Igreja precisa particularmente de quem saiba realizar tudo isto no plano literário e figurativo, trabalhando com as infinitas possibilidades das imagens e suas valências simbólicas. O próprio Cristo utilizou amplamente as imagens na sua pregação, em plena coerência, aliás, com a opção que, pela Encarnação, fizera d'Ele mesmo o ícone do Deus invisível.

A Igreja tem igualmente necessidade dos músicos. Quantas composições sacras foram elaboradas, ao longo dos séculos, por pessoas profundamente imbuídas pelo sentido do mistério! Crentes sem número alimentaram a sua fé com as melodias nascidas do coração de outros crentes, que se tornaram parte da Liturgia ou pelo menos uma ajuda muito válida para a sua decorosa realização. No cântico, a fé é sentida como uma exuberância de alegria, de amor, de segura esperança da intervenção salvífica de Deus.

A Igreja precisa de arquitectos, porque tem necessidade de espaços onde congregar o povo cristão e celebrar os mistérios da salvação. Depois das terríveis destruições da última guerra mundial e com o crescimento das cidades, uma nova geração de arquitectos se amalgamou com as exigências do culto cristão, confirmando a capacidade de inspiração que possui o tema religioso relativamente também aos critérios arquitectónicos do nosso tempo. De facto, não raro se construíram templos, que são simultaneamente lugares de oração e autênticas obras de arte.

A arte precisa da Igreja?

13. Portanto, a Igreja tem necessidade da arte. Pode-se dizer também que a arte precisa da Igreja? A pergunta pode parecer provocatória. Mas, se for compreendida no seu recto sentido, obedece a uma motivação legítima e profunda. Na realidade, o artista vive sempre à procura do sentido mais íntimo das coisas; toda a sua preocupação é conseguir exprimir o mundo do inefável. Como não ver então a grande fonte de inspiração que pode ser, para ele, esta espécie de pátria da alma que é a religião? Não é porventura no âmbito religioso que se colocam as questões pessoais mais importantes e se procuram as respostas existenciais definitivas?

De facto, o tema religioso é dos mais tratados pelos artistas de cada época. A Igreja tem feito sempre apelo às suas capacidades criativas, para interpretar a mensagem evangélica e a sua aplicação à vida concreta da comunidade cristã. Esta colaboração tem sido fonte de mútuo enriquecimento espiritual. Em última instância, dela tirou vantagem a compreensão do homem, da sua imagem autêntica, da sua verdade. Sobressaiu também o laço peculiar que existe entre a arte e a revelação cristã. Isto não quer dizer que o génio humano não tenha encontrado estímulos também noutros contextos religiosos; basta recordar a arte antiga, sobretudo grega e romana, e a arte ainda florescente das vetustas civilizações do Oriente. A verdade é que o cristianismo, em virtude do dogma central da encarnação do Verbo de Deus, oferece ao artista um horizonte particularmente rico de motivos de inspiração. Que grande empobrecimento seria para a arte o abandono desse manancial inexaurível que é o Evangelho!

Apelo aos artistas

14. Com esta Carta dirijo-me a vós, artistas do mundo inteiro, para vos confirmar a minha estima e contribuir para o restabelecimento duma cooperação mais profícua entre a arte e a Igreja. Convido-vos a descobrir a profundeza da dimensão espiritual e religiosa que sempre caracterizou a arte nas suas formas expressivas mais nobres. Nesta perspectiva, faço-vos um apelo a vós, artistas da palavra escrita e oral, do teatro e da música, das artes plásticas e das mais modernas tecnologias de comunicação. Este apelo dirijo-o de modo especial a vós, artistas cristãos: a cada um queria recordar que a aliança que sempre vigorou entre Evangelho e arte, independentemente das exigências funcionais, implica o convite a penetrar, pela intuição criativa, no mistério de Deus encarnado e contemporaneamente no mistério do homem.

Cada ser humano é, de certo modo, um desconhecido para si mesmo. Jesus Cristo não Se limita a manifestar Deus, mas « revela o homem a si mesmo ».[23] Em Cristo, Deus reconciliou consigo o mundo. Todos os crentes são chamados a dar testemunho disto; mas compete a vós, homens e mulheres que dedicastes a vossa vida à arte, afirmar com a riqueza da vossa genialidade que, em Cristo, o mundo está redimido: está redimido o homem, está redimido o corpo humano, está redimida a criação inteira, da qual S. Paulo escreveu que « aguarda ansiosa a revelação dos filhos de Deus » (Rm 8,19). Aguarda a revelação dos filhos de Deus, também através da arte e na arte. Esta é a vossa tarefa. Em contacto com as obras de arte, a humanidade de todos os tempos — também a de hoje — espera ser iluminada acerca do próprio caminho e destino.

Espírito Criador e inspiração artística

15. Na Igreja, ressoa muitas vezes esta invocação ao Espírito Santo: Veni, Creator Spiritus..., « Vinde, Espírito Criador, as nossas mentes visitai, enchei da vossa graça os corações que criastes ».[24]

Ao Espírito Santo, « o Sopro » (ruah), acena já o livro do Génesis: « A terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-Se sobre a superfície das águas » (1,2). Existe grande afinidade lexical entre « sopro — expiração » e « inspiração ». O Espírito é o misterioso artista do universo. Na perspectiva do terceiro milénio, faço votos de que todos os artistas possam receber em abundância o dom daquelas inspirações criativas donde tem início toda a autêntica obra de arte.

Queridos artistas, como bem sabeis, são muitos os estímulos, interiores e exteriores, que podem inspirar o vosso talento. Toda a autêntica inspiração, porém, encerra em si qualquer frémito daquele « sopro » com que o Espírito Criador permeava, já desde o início, a obra da criação. Presidindo às misteriosas leis que governam o universo, o sopro divino do Espírito Criador vem ao encontro do génio do homem e estimula a sua capacidade criativa. Abençoa-o com uma espécie de iluminação interior, que junta a indicação do bem à do belo, e acorda nele as energias da mente e do coração, tornando-o apto para conceber a ideia e dar-lhe forma na obra de arte. Fala-se então justamente, embora de forma analógica, de « momentos de graça », porque o ser humano tem a possibilidade de fazer uma certa experiência do Absoluto que o transcende.

A « Beleza » que salva

16. Já no limiar do terceiro milénio, desejo a todos vós, artistas caríssimos, que sejais abençoados, com particular intensidade, por essas inspirações criativas. A beleza, que transmitireis às gerações futuras, seja tal que avive nelas o assombro. Diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, o assombro é a única atitude condigna.

De tal assombro poderá brotar aquele entusiasmo de que fala Norwid na poesia, a que me referi ao início. Os homens de hoje e de amanhã têm necessidade deste entusiasmo, para enfrentar e vencer os desafios cruciais que se prefiguram no horizonte. Com tal entusiasmo, a humanidade poderá, depois de cada extravio, levantar-se de novo e retomar o seu caminho. Precisamente neste sentido foi dito, com profunda intuição, que « a beleza salvará o mundo ».[25]

A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente. É convite a saborear a vida e a sonhar o futuro. Por isso, a beleza das coisas criadas não pode saciar, e suscita aquela arcana saudade de Deus que um enamorado do belo, como S. Agostinho, soube interpretar com expressões incomparáveis: « Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! ».[26]

Que as vossas múltiplas sendas, artistas do mundo, possam conduzir todas àquele Oceano infinito de beleza, onde o assombro se converte em admiração, inebriamento, alegria inexprimível.

Sirva-vos de guia e inspiração o mistério de Cristo ressuscitado, em cuja contemplação se alegra a Igreja nestes dias.

Acompanhe-vos a Virgem Santa, a « toda bela », cuja efígie inumeráveis artistas delinearam e o grande Dante contempla nos esplendores do Paraíso como « beleza, que alegria era dos olhos de todos os outros santos ».[27]

« Eleva-se do caos o mundo do espírito »! A partir destas palavras, que Adam Mickiewicz escrevera numa hora de grande aflição para a pátria polaca,[28] formulo um voto para vós: que a vossa arte contribua para a consolidação duma beleza autêntica que, como revérbero do Espírito de Deus, transfigure a matéria, abrindo os ânimos ao sentido do eterno!

Com os meus votos mais cordiais!

Vaticano, 4 de Abril de 1999, Solenidade da Páscoa da Ressurreição.

JOÃO PAULO PP. II


[1] Dialogus de ludo globi, liv. II: Philosophisch-Theologische Schriften, III (Viena 1967), p. 332.

[2] As virtudes morais, particularmente a prudência, dão ao sujeito a possibilidade de agir de harmonia com o critério do bem e do mal moral: segundo recta ratio agibilium (o justo critério dos comportamentos). A arte, diversamente, é definida pela filosofia como recta ratio factibilium (o justo critério das realizações).

[3] Promethidion, Bogumil, vv. 185-186: Pisma wybrane, II (Varsóvia 1968), p. 216.

[4] A versão grega dos Setenta exprime claramente este aspecto, ao traduzir o termo hebraico t(o-)b (bom) por kalón (belo).

[5] Filebo, 65 A.

[6] João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 80: AAS 91 (1999), 67.

[7] Este princípio pedagógico foi enunciado pela pena autorizada de S. Gregório Magno, numa carta, do ano 599, escrita ao Bispo Sereno de Marselha: « A pintura é usada nas igrejas, para que as pessoas analfabetas possam ler, pelo menos nas paredes, aquilo que não são capazes de ler nos livros » (Epistulæ, IX, 209: CCL 140A, 1714).

[8] Lodi di Dio Altissimo, vv. 7 e 10: Fonti francescane, n. 261 (Pádua 1982), p. 177.

[9] Legenda maior, IX, 1: Fonti francescane, n. 1162 (Pádua 1982), p. 911.

[10] Enkomia na celebração do Orthrós do Grande Sábado Santo.

[11] Homilia I, 2: PG 34, 451.

[12] « At nobis ars una fides et musica Christus » (Carmen 20, 31: CCL 203, 144).

[13] Cf. João Paulo II, Carta ap. Duodecimum sæculum (4 de Dezembro de 1987), 8-9: AAS 80 (1988), 247-249.

[14] A perspectiva invertida e outros escritos (Roma 1984), p. 63.

[15] Paradiso XXV, 1-2.

[16] Cf. João Paulo II, Homilia da Missa celebrada na conclusão dos restauros dos frescos de Miguel Ângelo na Capela Sistina (8 de Abril de 1994): L'Osservatore Romano (ed. port. de 16 de Abril de 1994), p. 7.

[17] Cf. AAS 56 (1964), 438-444.

[18] N. 62.

[19] Mensagem do Concílio aos artistas (8 de Dezembro de 1965): AAS 58 (1966), 13.

[20] Cf. n. 122.

[21] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 62.

[22] A teologia no século XII (Milão 1992), p. 9.

[23] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 22.

[24] Hino de Vésperas, na Solenidade de Pentecostes.

[25] F. Dostoevskij, O Idiota, parte III, cap. V (Milão 1998), p. 645.

[26] « Sero te amavi! Pulchritudo tam antiqua e tam nova, sero te amavi! » (Confessiones 10, 27: CCL 27, 251).

[27] Paradiso XXXI, 134-135.

[28] Ode à juventude, v. 69: Wybór poezji, I (Wroclaw 1986), p. 63.

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Sexta, 06 Setembro 2024 07:15

Tra Le Sollicitude, Pio X (1903)

MOTU PROPRIO
TRA LE SOLLICITUDE
DO SUMO PONTÍFICE PIO X
SOBRE A MÚSICA SACRA

INTRODUÇÃO

Entre os cuidados do ofício pastoral, não somente desta Suprema Cátedra, que por imperscrutável disposição da Providência, ainda que indigno, ocupamos, mas também de todas as Igrejas particulares, é, sem dúvida, um dos principais o de manter e promover o decoro da Casa de Deus, onde se celebram os augustos mistérios da religião e o povo cristão se reúne, para receber a graça dos Sacramentos, assistir ao Santo Sacrifício do altar, adorar o augustíssimo Sacramento do Corpo do Senhor e unir-se à oração comum da Igreja na celebração pública e solene dos ofícios litúrgicos.

Nada, pois, deve suceder no templo que perturbe ou, sequer, diminua a piedade e a devoção das fiéis, nada que dê justificado motivo de desgosto ou de escândalo, nada, sobretudo, que diretamente ofenda o decoro e a santidade das sacras funções e seja por isso indigno da Casa de Oração e da majestade de Deus.

Não nos ocupamos de cada um dos abusos que nesta matéria podem ocorrer. A nossa atenção dirige-se hoje para um dos mais comuns, dos mais difíceis de desarraigar e que às vezes se deve deplorar em lugares onde tudo o mais é digno de máximo encômio para beleza e suntuosidade do templo, esplendor e perfeita ordem das cerimônias, freqüência do clero, gravidade e piedade dos ministros do altar. Tal é o abuso em matéria de canto e Música Sacra. E de fato, quer pela natureza desta arte de si flutuante e variável, quer pela sucessiva alteração do gosto e dos hábitos no correr dos tempos, quer pelo funesto influxo que sobre a arte sacra exerce a arte profana e teatral, quer pelo prazer que a música diretamente produz e que nem sempre é fácil conter nos justos limites, quer, finalmente, pelos muitos preconceitos, que em tal assunto facilmente se insinuam e depois tenazmente se mantêm, ainda entre pessoas autorizadas e piedosas, há uma tendência contínua para desviar da reta norma, estabelecida em vista do fim para que a arte se admitiu ao serviço do culto, e expressa nos cânones eclesiásticos, nas ordenações dos Concílios gerais e provinciais, nas prescrições várias vezes emanadas das Sagradas Congregações Romanas e dos Sumos Pontífices Nossos Predecessores.

Com verdadeira satisfação da alma nos apraz recordar o muito bem que nesta parte se tem feito nos últimos decênios, também nesta nossa augusta cidade de Roma e em muitas Igrejas da Nossa pátria, mas em modo muito particular em algumas nações, onde homens egrégios e zelosos do culto de Deus, com aprovação desta Santa Sé e dos Bispos, se uniram em florescentes sociedades e reconduziram ao seu lugar de honra a Música Sacra em quase todas as suas Igrejas e Capelas. Este progresso está todavia ainda muito longe de ser comum a todos; e se consultarmos a nossa experiência pessoal e tivermos em conta as reiteradas queixas, que de todas as partes Nos chegaram neste pouco tempo decorrido, desde que aprouve ao Senhor elevar a Nossa humilde Pessoa à suprema culminância do Pontificado Romano, sem protrairmos por mais tempo, cremos que é nosso primeiro dever levantar a voz para reprovação e condenação de tudo que nas funções do culto e nos ofícios eclesiásticos se reconhece desconforme com a reta norma indicada.

Sendo de fato nosso vivíssimo desejo que o espírito cristão refloresça em tudo e se mantenha em todos os fiéis, é necessário prover antes de mais nada à santidade e dignidade do templo, onde os fiéis se reúnem precisamente para haurirem esse espírito da sua primária e indispensável fonte: a participação ativa nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja. E debalde se espera que para isso desça sobre nós copiosa a bênção do Céu, quando o nosso obséquio ao Altíssimo, em vez de ascender em odor de suavidade, vai pelo contrário repor nas mãos do Senhor os flagelos, com que uma vez o Divino Redentor expulsou do templo os indignos profanadores. Portanto, para que ninguém doravante possa alegar a desculpa de não conhecer claramente o seu dever, e para que desapareça qualquer equívoco na interpretação de certas determinações anteriores, julgamos oportuno indicar com brevidade os princípios que regem a Música Sacra nas funções do culto e recolher num quadro geral as principais prescrições da Igreja contra os abusos mais comuns em tal matéria.

E por isso, de própria iniciativa e ciência certa, publicamos a Nossa presente instrução; será ela como que um código jurídico de Música Sacra; e, em virtude da plenitude de Nossa Autoridade Apostólica, queremos que se lhe dê força de lei, impondo a todos, por este Nosso quirógrafo, a sua mais escrupulosa observância.

I. Princípios gerais

1. A música sacra, como parte integrante da Liturgia solene, participa do seu fim geral, que é a glória de Deus e a santificação dos fiéis. A música concorre para aumentar o decoro e esplendor das sagradas cerimônias; e, assim como o seu ofício principal é revestir de adequadas melodias o texto litúrgico proposto à consideração dos fiéis, assim o seu fim próprio é acrescentar mais eficácia ao mesmo texto, a fim de que por tal meio se excitem mais facilmente os fiéis à piedade e se preparem melhor para receber os frutos da graça, próprios da celebração dos sagrados mistérios.

2. Por isso a música sacra deve possuir, em grau eminente, as qualidades próprias da liturgia, e nomeadamente a santidade e a delicadeza das formas, donde resulta espontaneamente outra característica, a universalidade.

Deve ser santa, e por isso excluir todo o profano não só em si mesma, mas também no modo como é desempenhada pelos executantes.

Deve ser arte verdadeira, não sendo possível que, doutra forma, exerça no ânimo dos ouvintes aquela eficácia que a Igreja se propõe obter ao admitir na sua liturgia a arte dos sons. Mas seja, ao mesmo tempo, universal no sentido de que, embora seja permitido a cada nação admitir nas composições religiosas aquelas formas particulares, que em certo modo constituem o caráter específico da sua música própria, estas devem ser de tal maneira subordinadas aos caracteres gerais da música sacra que ninguém doutra nação, ao ouvi-las, sinta uma impressão desagradável.

II. Gêneros de Música Sacra

3. Estas qualidades se encontram em grau sumo no canto gregoriano, que é por conseqüência o canto próprio da Igreja Romana, o único que ela herdou dos antigos Padres, que conservou cuidadosamente no decurso dos séculos em seus códigos litúrgicos e que, como seu, propõe diretamente aos fiéis, o qual estudos recentíssimos restituíram à sua integridade e pureza.

Por tais motivos, o canto gregoriano foi sempre considerado como o modelo supremo da música sacra, podendo com razão estabelecer-se a seguinte lei geral: uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo.

O canto gregoriano deverá, pois, restabelecer-se amplamente nas funções do culto, sendo certo que uma função eclesiástica nada perde da sua solenidade, mesmo quando não é acompanhada senão da música gregoriana.

Procure-se nomeadamente restabelecer o canto gregoriano no uso do povo, para que os fiéis tomem de novo parte mais ativa nos ofícios litúrgicos, como se fazia antigamente.

4. As sobreditas qualidades verificam-se também na polifonia clássica, especialmente na da Escola Romana, que no século XVI atingiu a sua maior perfeição com as obras de Pedro Luís de Palestrina, e que continuou depois a produzir composições de excelente qualidade musical e litúrgica. A polifonia clássica, aproximando-se do modelo de toda a música sacra, que é o canto gregoriano, mereceu por esse motivo ser admitida, juntamente com o canto gregoriano, nas funções mais solenes da Igreja, quais são as da Capela Pontifícia. Por isso também essa deverá restabelecer-se nas funções eclesiásticas, principalmente nas mais insignes basílicas, nas igrejas catedrais, nas dos Seminários e outros institutos eclesiásticos, onde não costumam faltar os meios necessários.

5. A Igreja tem reconhecido e favorecido sempre o progresso das artes, admitindo ao serviço do culto o que o gênio encontrou de bom e belo através dos séculos, salvas sempre as leis litúrgicas. Por isso é que a música mais moderna é também admitida na Igreja, visto que apresenta composições de tal qualidade, seriedade e gravidade que não são de forma alguma indigna das funções litúrgicas.

Todavia, como a música moderna foi inventada principalmente para uso profano, deverá vigiar-se com maior cuidado por que as composições musicais de estilo moderno, que se admitem na Igreja, não tenham coisa alguma de profana, não tenham reminiscências de motivos teatrais, e não sejam compostas, mesmo nas suas formas externas, sobre o andamento das composições profanas.

6. Entre os vários gêneros de música moderna, o que parece menos próprio para acompanhar as funções do culto é o que tem ressaibos de estilo teatral, que durante o século XVI esteve tanto em voga, sobretudo na Itália. Este, por sua natureza, apresenta a máxima oposição ao canto gregoriano e à clássica polifonia, por isso mesmo às leis mais importantes de toda a boa música sacra. Além disso, a íntima estrutura, o ritmo e o chamado convencionalismo de tal estilo não se adaptam bem às exigências da verdadeira música litúrgica.

III. Texto Litúrgico

7. A língua própria da Igreja Romana é a latina. Por isso é proibido cantar em língua vulgar, nas funções litúrgicas solenes, seja o que for, e muito particularmente, tratando-se das partes variáveis ou comuns da Missa e do Ofício.

8. Estando determinados, para cada função litúrgica, os textos que hão de musicar-se e a ordem por que se devem cantar, não é lícito alterar esta ordem, nem substituir os textos prescritos por outros, nem omiti-los na íntegra ou em parte, a não ser que as Rubricas litúrgicas permitam suprir, com órgão, alguns versículos do texto, que são simplesmente recitados no coro. É permitido somente, segundo o costume romano, cantar um motete em honra do S. Sacramento depois do Benedictus da Missa solene. Permite-se outrossim que, depois de cantado o ofertório prescrito, se possa executar, no tempo que resta, um breve motete sobre palavras aprovadas pela Igreja.

9. O texto litúrgico tem de ser cantado como se encontra nos livros aprovados, sem posposição ou alteração das palavras, sem repetições indevidas, sem deslocar as silabas, sempre de modo inteligível.

IV. Forma externa das composições sacras

10. As várias artes da Missa e Ofício devem conservar, até musicalmente, a forma que a tradição eclesiástica lhes deu, e que se encontra admiravelmente expressada no canto gregoriano. É, pois, diverso o modo de compor um Intróito, um Gradual, uma Antífona, um Salmo, um Hino, um Glória in excelsis, etc.

11. Observem-se, em particular, as normas seguintes:

a) O Kyrie, o Glória, o Credo, etc., da Missa, devem conservar a unidade de composição própria do texto. Por conseguinte, não é lícito compô-las como peças separadas, de modo que, cada uma destas forme uma composição musical tão completa que possa separar-se das restantes e ser substituída por outra.

b) No ofício de Vésperas deve seguir-se, ordinariamente, a norma do Caeremoniale Episcoporum que prescreve o canto gregoriano para a salmodia, e permite a música figurada nos versículos do Gloria Patri e no hino.

Contudo, é permitido, nas maiores solenidades, alternar o canto gregoriano do coro com os chamados "falsibordoni" ou com versos de modo semelhante convenientemente compostos. Poderá também conceder-se, uma vez por outra, que cada um dos salmos seja totalmente musicado, contanto que, em tais composições, se conserve a forma própria da salmodia, isto é, que os cantores pareçam salmodiar entre si, já com motivos musicais novos, já com motivos tirados do canto gregoriano, ou imitados deste.

Ficam proibidos, nas cerimônias litúrgicas, os salmos de concerto.

c) Conserve-se, nas músicas da Igreja, a forma tradicional do hino. Não é permitido compor, por exemplo, o Tantum ergo de modo que a primeira estrofe apresente a forma de romanza, cavatina ou adágio e o Genitori a de allegro.

d) As antífonas de Vésperas têm de ser cantadas, ordinariamente, com a melodia gregoriana que lhes é própria. Porém, se em algum caso particular se cantarem em música, não deverão nunca ter a forma de melodia de concerto, nem a amplitude dum motete ou de cantata.

V. Os cantores

12. Excetuadas as melodias próprias do celebrante e dos ministros, que sempre devem ser em gregoriano, sem acompanhamento de órgão, todo o restante canto litúrgico faz parte do coro dos levitas. Por isso, os cantores, ainda que leigos, realizam, propriamente, as funções de coro eclesiástico, devendo as músicas, ao menos na sua maior parte, conservar o caráter de música de coro.

Não se entende com isto excluir, de todo, os solos; mas estes não devem nunca predominar de tal maneira que a maior parte do texto litúrgico seja assim executada; deve antes ter o caráter de uma simples frase melódica e estar intimamente ligada ao resto da composição coral.

13. Os cantores têm na Igreja um verdadeiro ofício litúrgico e, por isso, as mulheres sendo incapazes de tal ofício, não podem ser admitidas a fazer parte do coro ou da capela musical. Querendo-se, pois, ter vozes agudas de sopranos e contraltos, empreguem-se os meninos, segundo o uso antiquíssimo da Igreja.

14. Finalmente, não se admitam a fazer parte da capela musical senão homens de conhecida piedade e probidade de vida, os quais, com a sua devota e modesta atitude, durante as funções litúrgicas, se mostrem dignos do santo ofício que exercem. Será, além disso, conveniente que os cantores, enquanto cantam na igreja, vistam hábito eclesiástico e sobrepeliz e que, se o coro estiver muito exposto à vista do público, seja resguardado por grades.

VI. Órgão e Instrumentos

15. Posto que a música própria da Igreja é a música meramente vocal, contudo também se permite a música com acompanhamento de órgão. Nalgum caso particular, com as convenientes cautelas, poderão admitir-se outros instrumentos nunca sem o consentimento especial do Ordinário, conforme as prescrições do Caeremoniale Episcoporum.

16. Como o canto tem de ouvir-se sempre, o órgão e os instrumentos devem simplesmente sustentá-lo, e nunca encobri-lo.

17. Não é permitido antepor ao canto extensos prelúdios, ou interrompê-lo com peças de interlúdios.

18. O som do órgão, nos acompanhamentos do canto, nos prelúdios, interlúdios e outras passagens semelhantes, não só deve ser de harmonia com a própria natureza de tal instrumento, isto é, grave, mas deve ainda participar de todas as qualidades que tem a verdadeira música sacra, acima mencionadas.

19. É proibido, na Igreja, o uso do piano bem como o de instrumentos fragorosos, o tambor, o bombo, os pratos, as campainhas e semelhantes.

20. É rigorosamente proibido que as bandas musicais toquem nas igrejas, e só em algum caso particular, com o consentimento do Ordinário, será permitida uma escolha limitada, judiciosa e proporcionada ao ambiente de instrumentos de sopro, contanto que a composição seja em estilo grave, conveniente e semelhante em tudo às do órgão.

21. Nas procissões, fora da igreja, pode o Ordinário permitir a banda musical, uma vez que não se executem composições profanas. Seria para desejar que a banda se restringisse a acompanhar algum cântico espiritual, em latim ou vulgar, proposto pelos cantores ou pias congregações que tomam parte na procissão.

VII. Amplitude da Música Sacra

22. Não é licito, por motivo do canto, fazer esperar o sacerdote no altar mais tempo do que exige a cerimônia litúrgica. Segundo as prescrições eclesiásticas, o Sanctus deve ser cantado antes da elevação, devendo o celebrante esperar que o canto termine, para fazer a elevação. A música da Glória e do Credo, segundo a tradição gregoriana, deve ser relativamente breve.

23. É condenável, como abuso gravíssimo, que nas funções eclesiásticas a liturgia esteja dependente da música, quando é certo que a música é que é parte da liturgia e sua humilde serva.

VIII. Meios principais

24. Para o exato cumprimento de quanto fica estabelecido, os Bispos, se ainda não o fizeram, instituam, nas suas dioceses, uma comissão especial de pessoas verdadeiramente competentes na música sacra, à qual confiarão o cargo de vigiar as músicas que se vão executando em suas igrejas para que sejam conformes com estas determinações. Nem atender somente a que sejam boas as músicas, senão também a que correspondam ao valor dos cantores, para haver boa execução.

25. Nos Seminários e nos Institutos eclesiásticos, segundo as prescrições tridentinas, consagrem-se todos os alunos ao estudo do canto gregoriano e os superiores sejam liberais em animar e louvar os seus súditos. Igualmente, onde for possível, promova-se entre os clérigos a fundação de uma Schola Cantorum para a execução da sagrada polifonia e da boa música litúrgica.

26. Nas lições ordinárias de Liturgia, Moral e Direito Canônico, que se dão aos estudantes de teologia, não se deixe de tocar naqueles pontos que, de modo mais particular, dizem respeito aos princípios e leis da música sacra, e procure-se completar a doutrina com alguma instrução especial acerca da estética da arte sacra, para que os clérigos não saiam dos seminários ignorando estas noções, tão necessária à plena cultura eclesiástica.

27. Tenha-se o cuidado de restabelecer, ao menos nas igrejas principais, as antigas Scholae Cantorum, como se há feito já, com ótimo fruto, em muitos lugares. Não é difícil, ao clero zeloso, instituir tais Scholae, mesmo nas igrejas de menor importância, e até encontrará nelas um meio fácil para reunir em volta de si os meninos e os adultos, com proveito para eles e edificação do povo.

28. Procure-se sustentar e promover, do melhor modo, as escolas superiores de música sacra, onde já existem, e concorrer para as fundar, onde as não há. É sumamente importante que a mesma igreja atenda à instrução dos seus mestres de música, organistas e cantores, segundo os verdadeiros princípios da arte sacra.

IX Conclusão

29. Por último, recomenda-se aos mestres de capela, aos cantores, aos clérigos, aos superiores dos Seminários, Institutos eclesiásticos e comunidades religiosas, aos párocos e reitores de igrejas, aos cônegos das colegiadas e catedrais, e sobretudo aos Ordinários diocesanos, que favoreçam, com todo o zelo, estas reformas de há muito desejadas e por todos unanimemente pedidas, para que não caia em desprezo a autoridade da Igreja que repetidamente as propôs e agora de novo as inculca.

Dado em o Nosso Palácio do Vaticano, na festa da Virgem e Mártir Santa Cecília, 22 de novembro de 1903, primeiro ano do nosso pontificado.

PAPA PIO X

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