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Pós-pandemia COVID-19: Uma reflexão sobre o sofrimento
Há 2 anos e meio, no dia 16 de março de 2020, o governador do Rio de Janeiro decretava medidas restritidas para o enfrentamento da COVID-19 no Estado. Começava ali um período de muitas provações, incertezas, perdas e inseguranças, não apenas para o Rio de Janeiro, mas para todo o Brasil.
Lembro do horror das primeiras semanas de lockdown. Pouco antes desse acontecimento, muitos moradores da cidade do Rio de Janeiro começaram a estocar água mineral em casa, diante do caso de geosmina nos reservatórios da CEDAE. Parecia um ensaio para o pandemônio. Depois do anúncio do Governo, muitas pessoas foram às compras de suprimentos diversos para uma temporada de reclusão dentro de casa.
Era assustador ver as ruas vazias, as pessoas trancafiadas dentro de casa. Os poucos que iam às ruas, saíam de máscaras e frascos de ácool gel, seguindo todas as recomendações dadas exaustivamente pelas emissoras de TV com especiais de exibição quase que de maneira ininterrupta em sua grade.
O medo tomou conta e um período tenebroso chegou efetivamente para a grande maioria das pessoas que não desfrutam de privilégios em maior ou menor grau. Muitos sofreram transtornos pelo isolamento, pela restrição do trabalho e a consequente falta de recursos para levar comida para casa e atender às necessidades da família; crianças perderam o convívio com os amigos; pais foram forçados a uma nova rotina de dedicação integral a seus filhos dentro de casa; salários foram reduzidos; empregos perdidos; relacionamentos desfeitos; transtornos emocionais e psíquicos decorrente do estado de medo, insegurança e incertezas do futuro; milhões de pessoas morreram, gente boa, gente má, rico, pobre, famoso ou desconhecido. Foram, e ainda são para muitos, dias de sofrimento.
E é sobre este tema que gostaria de meditar nas próximas linhas: o sofrimento. Vi muita gente lamentar vidas que se foram e que não pareciam merecer uma morte tão precoce; gente de bem que morreu enquanto tantas de caráter duvidoso permaneceram vivas; pessoas saudáveis ou de aparente saúde sofreram gravemente os sintomas dessa terrível doença enquanto tantos outros com comorbidades parecem ter pego apenas uma gripezinha.
E aí vem a questão que se aplica a toda situação de sofrimento que só quem está vivo sofre: por que os justos sofrem enquanto tantos ímpios vivem uma vida de conforto e fartura?
Essa é a grande reflexão do livro de Jó, no Antigo Testamento da Sagrada Escritura. Jó era um homem justo, próspero e de posses. Tinha uma família numerosa e um grande rebanho, sinais de prosperidade para os judeus de sua época. De repente, a tragédia se impõe sobre a sua vida e Jó perde seu rebanho, todos os seus bens, os seus filhos e a sua saúde.
Conta-nos o autor sagrado que em certa ocasião, depois de ouvir Deus elogiar o seu filho Jó, satanás afirma que Jó só é temente a Deus porque possui tudo o que necessita e goza de uma vida abastada. Bastaria que perdesse seus bens que Jó amaldiçoaria o seu Senhor.
Deus então permite que Satanás prove a fé de Jó, desde que nada fizesse contra a sua vida. E assim satanás o fez (Cf. Jo 1, 12).
Primeiro, foram levados os rebanhos de Jó; depois, a vida de seus filhos. Também sua saúde foi posta à prova, quando feridas acometeram seu corpo dos pés à cabeça. A dor o abateu e Jós rasgou suas roupas e raspou a cabeça em sinal de humilhação. Mas em nenhum momento Jó blasfemou Deus, pelo contrário, bendizia o nome do Senhor a todo momento: "Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja o nome do Senhor!" (Jo 1, 21).
No pensamento judeu daquela época, acreditava-se que, nesta vida, colhemos aquilo que plantamos. Se somos justos e retos, temos uma vida próspera; se somos ímpios, porém, sofremos as penas de nossos pecados. Se assim fosse, não testemunhariam tantas pessoas de bem, corretas e justas, que sofrem tragédias sem aviso prévio e, por outro lado, pessoas reconhecidamente más que desfrutam de uma vida repleta de bens, conforto e fartura.
Baseados nesse pensamento de que o justo prospera e o ímpio padece, surgem 3 amigos de Jó que o incentivaram a reconhecer suas culpas e seus pecados para redimir-se com Deus e ter a sua boa vida restabelecida. Jó, no entanto, insistia com firmeza de consciência de que nada fizera para merecer tanta desgraça.
Mesmo mantendo-se fiel a Deus e submisso à Sua vontade, a dor se impõe a Jó, que deseja comparecer parante Deus para questioná-lo, com toda a humildade, do porquê de tanto sofrimento se ele nada fizera para merecer. Mas de Deus Jó nada recebe além do silêncio.
Também em nossa vida muitas vezes nos sentimos como Jó. Nos esforçamos para viver uma vida correta e justa, mas parece que nada acontece de bom em nossa vida. Ao mesmo tempo, pessoas de muito pouco caráter conseguem viver os sonhos que nós desejaríamos viver. Somos acometidos por doenças, perdas irreparavéis de vidas, de bens ou de um emprego importante, provações de amigos, perseguições no trabalho, na vida acadêmica, na própria igreja. E, ao mesmo tempo, vemos pessoas levando uma vida desregrada gozando de felicidade e abundância.
E assim nos perguntamos: mas por quê? Por que comigo? Por que com aquela pessoa que eu amo e que faz tudo certinho?
O mesmo dilema que Jó viveu, também Jesus sofreu. O próprio Deus todo poderoso feito homem, que, para cumprir a promessa feita ao seu povo quanto à vinda do messias, tudo poderia fazer em seu favor, escolheu assumir a fragilidade da vida humana e escolheu, livremente, padecer as dores da flagelação e se submeter, livremente, à morte de Cruz. Jesus, que como o próprio Pilatos reconheceu, nenhum mal cometera para merecer tal condenação, mesmo sendo justo, sofreu imensamente mesmo sem merecer.
Depois de muito sofrer e permanecer sempre fiel e submisso a Deus, Jó tem todos os seus bens restituídos em dobro, seus bens e seus filhos. A conclusão de Jó é que nada nem ninguém pode perscrutar a sabedoria divina. Deus é mistério. Também o sofrimento o é. Deus permite que o sofrimento se precipite sobre nossas vidas, não para nos punir de nossos pecados, mas como remédio do próprio mal, para que o próprio sofrimento leve os seus filhos de volta à intimidade com Deus, aos Seus cuidados. O homem não sofre unicamente para pagar um tributo à justiça, mas para se purificar do pecado e para voltar ao Pai com Cristo, que é o Sumo Bem, a Suma Felicidade.
Compreender esse mistério não torna magicamente nossa vida mais fácil.
Como podemos, então, enfrentar o sofrimento com caridade, fé e esperança?
Bom, existe um caminho muito claro. Na verdade, "O" caminho. Jesus nos revela no capítulo 14 do Evangelho de São João:
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim".
Jo 14, 6
Jesus faz essa revelação na Última Ceia, momento de grande aflição entre seus amigos e discípulos, pois acabara de revelar que seria traído. Mas Jesus também os consola.
"Não se perturbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim".
Jo 14, 1
Novamente, Jesus deixa o mesmo consolo no versículo 27 do mesmo capítulo:
"Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração, nem se atemorize!".
Jo 14, 27
Jesus é quem dá paz ao nosso coração. Ainda que tudo ao nosso redor pareça desmoronar, ainda que, materialmente, nossa vida não seja como gostaríamos, podemos viver os nossos dias com o coração em plena paz. Você provavelmente já conheceu alguém, seja pessoalmente ou através de outras obras, que mesmo com uma vida cheia de obstáculos, provações e sofrimentos, era capaz de sorrir e dar amor a outros à sua volta.
Como nos diz o salmo 90:
"Caiam mil homens à tua esquerda e dez mil à tua direita: tu não serás atingido".
Sl 90(91), 7
Ou ainda o salmo 22:
"Ainda que eu atravesse o vale escuro, nada temerei, pois estais comigo. Vosso bordão e vosso báculo são o meu amparo".
Sl 22(23), 4
Esse deve ser o nosso caminho: Jesus. Ele nos recomenda: "permanecei em mim e eu permanecerei em vós" (Jo 15, 4). E ainda: "Quem permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto" (Jo 15, 5). Esses frutos são espirituais, que nos garantirão a paz e a felicidade, independentemente de nossas circunstâncias nessa vida, e a vida eterna junto de Deus que é o Sumo Bem.
Um homem rico desejoso em alcançar a vida eterna, perguntou a Jesus o que deveria fazer, uma vez que já observava fielmente os mandamentos da Lei Mosaica. Jesus então diz:
"Ainda te falta uma coisa: vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me".
Lc 18, 22
Incapaz de fazer o que Jesus lhe propôs, o jovem retirou-se com tristeza. Para obter as graças da eternidade, a paz e a felicidade que tanto desejamos, devemos nos desapegar dos bens materiais, aceitar os sofrimentos que nos são impostos e carregar a nossa cruz:
"Se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me. Porque, quem quiser salvar a sua vida, irá perdê-la; mas quem sacrificar a sua vida por amor de mim, irá salvá-la".
Lc 9, 23-24
Alguém com o coração ainda endurecido poderia dizer: "na teoria isso é fácil, mas na vida real não é assim tão simples!"
Bom, propor alguns conselhos práticos tirados tanto da Sagrada Escritura como da própria Sagrada Tradição da Igreja que nos ajudam a carregar a nossa cruz, quem em nada se compara à Cruz que Cristo carregou por nós.
Primeiro conselho: sejamos fiéis!
Fiéis a Deus, fiéis aos nossos compromissos, às nossas responsabilidades, nas pequenas coisas do nosso dia-a-dia. Assim, se formos fiéis nas coisas mais ordinárias da vida, também seremos fiéis nas maiores provações, como Jó permaneceu fiel a Deus e teve toda a sua sorte restaurada.
"Aquele que é fiel nas coisas pequenas será também fiel nas coisas grandes. E quem é injusto nas coisas pequenas o será também nas grandes".
Lc 16, 10
Segundo conselho: busquemos a pureza de coração
Procuremos manter a pureza dos pequeninos em nossos corações, para que nos afastemos dos vícios capitais (avareza, gula, inveja, luxúria, preguiça, ira e soberba) que trazem a desordem ao nosso espírito. Afinal, "Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino dos Céus!" (Mt 5, 3).
"Disse-lhes Jesus: Deixai vir a mim estas criancinhas e não as impeçais, porque o Reino dos céus é para aqueles que se lhes assemelham".
Mt 19, 14
Terceiro conselho: amar ao próximo
Suportar nosso próximo em suas necessidades, viver a caridade, doar-se aos mais necessitados. Toda vez que agimos desse modo a outros que mais necessitam, é ao próprio Cristo que fazemos estes bens e, assim, seremos recompensados pelas graças de Deus.
"Responderá o Rei: - Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes".
Mt 25, 40
"Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amo".
Jo 15, 12
Quarto conselho: vida sacramental
Os sacramentos são sinais sensíveis (palavras e ações) estabelecidos pelo próprio Cristo para a santificação da nossa alma. Recebendo os sacramentos, especialmente os da confissão e a Eucaristia, fortalecemos o nosso espírito para o enfrentamento de todas as provações que se impõem sobre nossa vida.
"Os sacramentos são sinais sensíveis (palavras e acções), acessíveis à nossa humanidade atual. Realizam eficazmente a graça que significam, em virtude da ação de Cristo e pelo poder do Espírito Santo".
CIC, 1084
Quinto conselho: vida de oração
Vemos no Novo Testamento diversos relatos de Jesus se retirando a sós para orar a Deus Pai. Não é preciso grande conhecimento da escritura ou palavras articuladas para elevar nossa oração a Deus. Apenas um coração aberto, sincero e fiel.
Na tradição da Igreja católica, desde os Apóstolos, Nossa Senhora é tida como nossa intercessora e medianeira de todas as graças. Aquela que é a bem aventurada e repleta de graças (Lc 1, 28-30), conduz todos os filhos de Deus ao seu Filho dado por Deus, que é o próprio Deus feito homem. Através da oração do Santo Rosário, meditamos toda a vida de Jesus. Ainda que seja a repetição de orações prontas, é impressionante como, de fato, Nossa Senhora transforma o nosso coração e nos leva para mais perto de Jesus.
Sexto conselho: ter um santo de devoção
Jesus é o Santo dos Santos e é Ele quem opera milagres na vida dos filhos de Deus. Sua vida é o grande exemplo que devemos seguir, mas, mesmo tendo-o como principal exemplo, o Deus feito homem habitou a Terra em um momento histórico específico e um contexto cultural próprio. Jesus assumiu em tudo nossa humanidade, exceto no pecado.
Eu e você somos pecadores e é, de fato, muito difícil imitar Jesus no nosso dia-a-dia, com contextos e desafios próprios do nosso tempo. Nem tudo o que vivemos hoje foi vivido por Jesus para que tivéssemos um modelo para saber como agir.
Nos santos encontramos exemplos de santidade que se assemelham a Cristo, pela sua fidelidade, obediência e devoção a Deus. Em contexto culturais e históricos mais próximos ao nosso e também com temperamentos e situações do quotidiano mais próximos aos nossos, encontramos na vida dos santos exemplos que podem nos inspirar e nos orientar e nos aproximarmos a Cristo. Também podemos contar com a intercessão dos santos, que vivem na eternidade junto de Deus e intercedem em nosso favor.
Para fechar essa reflexão, gostaria de propor aqui uma bela canção. Nela, Israel Salazar, cantor gospel, pede a Deus a fé inabalável de Jó, que tanto lutou, tanto sofreu e jamais murmurou contra o Deus todo poderoso. Desejo que a mesma fé de Jó, a mesma fé de Israel Salazar e de tantos cristãos espalhados pelo mundo possa habitar no seu coração e trazer a paz que Cristo nos promete e concede.