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Reconciliatio et Paenitentia (1984)
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
RECONCILIATIO ET PAENITENTIA
DE SUA SANTIDADE
JOÃO PAULO II
AO EPISCOPADO, AO CLERO E AOS FIÉIS SOBRE A
RECONCILIAÇÃO E A PENITÊNCIA
NA MISSÃO DA IGREJA HOJE
INTRODUÇÃO
ORIGEM E SIGNIFICADO DO DOCUMENTO
1. Falar de Reconciliação e Penitência, para os homens e mulheres do nosso tempo, é convidá-los a reencontrar, traduzidas na sua linguagem, as próprias palavras com que o nosso Salvador e Mestre Jesus Cristo quis iniciar a sua pregação: «Convertei-vos e acreditai no Evangelho», (1) ou seja, acolhei o anúncio jubiloso do amor, da adopção como filhos de Deus e, consequentemente, da fraternidade.
Porque é que a Igreja propõe de novo este tema e este convite?
A ânsia de conhecer melhor e de compreender o homem de hoje e o mundo contemporâneo, de lhe decifrar o enigma e desvendar o seu mistério, de discernir os fermentos de bem ou de mal que nele se agitam, leva muitos, de há um certo tempo a esta parte, a fixar no mesmo homem e neste mundo um olhar interrogativo. É o olhar do historiador e do sociólogo, do filósofo e do teólogo, do psicólogo e do humanista, do poeta e do místico; e é, sobretudo, o olhar preocupado, se bem que carregado de esperança, do pastor.
Um tal olhar revela-se, de modo exemplar, em cada uma das páginas da importante Constituição pastoral do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo contemporâneo, particularmente na sua ampla e perspicaz introdução. Esse olhar revela-se, de igual modo, em alguns Documentos emanados da sabedoria e da caridade pastoral dos meus veneráveis Predecessores, cujos luminosos pontificados ficaram marcados pelo acontecimento histórico e profético que foi esse Concílio Ecuménico.
Como os outros olhares, também o olhar do pastor descobre, infelizmente, entre diversas características do mundo e da humanidade do nosso tempo, a existência de numerosas, profundas e dolorosas divisões.
Um mundo despedaçado
2. Estas divisões manifestam-se nas relações entre as pessoas e entre os grupos, como também ao nível das colectividades mais amplas: Nações contra Nações, e blocos de países contrapostos, numa árdua busca de hegemonia. Na raiz das rupturas não é difícil identificar conflitos que, em vez de serem resolvidos mediante o diálogo, se agudizam no confronto e na oposição.
Ao indagar sobre os elementos geradores de divisão, observadores atentos apontam os mais variados: desde a crescente disparidade entre grupos, classes sociais e países, aos antagonismos ideológicos, nem por sombras extintos; desde a contraposição dos interesses económicos às polarizações políticas; desde as divergências tribais à s discriminações por motivos sócio-religiosos. De resto, algumas realidades, bem à vista de todos, constituem como que o rosto lastimoso da divisão, de que são fruto e de que acentuam a gravidade, com irrefutável realismo. Podem recordar-se, entre tantos outros dolorosos fenómenos sociais do nosso tempo:
- o espezinhar dos direitos fundamentais da pessoa humana, sendo o primeiro entre eles o direito à vida e a uma digna qualidade de vida; e isso apresenta-se mais escandaloso, na medida em que coexiste com uma retórica, nunca antes conhecida, sobre os mesmos direitos;
- as insídias e as pressões contra a liberdade dos indivíduos e das colectividades, sem excluir a liberdade de manter, professar e praticar a própria fé, que é mesmo das mais atingidas e ameaçadas;
- as várias formas de discriminação: racial, cultural, religiosa, etc.;
- a violência e o terrorismo;
- o uso da tortura e as formas injustas e ilegítimas de repressão;
- a acumulação de armas convencionais ou atómicas, a corrida aos armamentos, com despesas bélicas que poderiam servir para aliviar a miséria imerecida de povos social e economicamente em condições deprimentes;
- a distribuição iníqua dos recursos do mundo e dos bens da civilização, que atinge o seu cúmulo num tipo de organização social, por força da qual a distância entre as condições humanas dos ricos e dos pobres aumenta cada vez mais. (2) A potência avassaladora desta divisão faz do mundo em que vivemos um mundo despedaçado, (3) até mesmo nos seus fundamentos.
Por outro lado, uma vez que a Igreja, sem se identificar com o mundo, nem ser do mundo, está inserida no mundo e está em diálogo com o mundo, (4) não é para admirar que se notem na sua própria estrutura repercussões e sinais da divisão que dilacera a sociedade humana. Para além das cisões entre as Comunidades cristãs que de há séculos a contristam, a Igreja experimenta hoje no seu seio, aqui e além, divisões entre as suas próprias componentes, causadas pela diversidade de pontos de vista e de escolhas, no campo doutrinal e pastoral. (5) Também estas divisões podem, por vezes, parecer irremediáveis.
Por mais impressionantes que se apresentem tais lacerações à primeira vista, só observando-as em profundidade se consegue individuar a sua raiz: esta encontra-se numa ferida no íntimo do homem. À luz da fé chamamos-lhe pecado, começando pelo pecado original, que cada um traz consigo desde o nascimento, como uma herança recebida dos primeiros pais, até aos pecados que cada um comete, abusando da própria liberdade.
Nostalgia de reconciliação
3. E, no entanto, o mesmo olhar indagador, se é suficientemente perspicaz, captará no seio da divisão um desejo inconfundível, da parte dos homens de boa vontade e dos verdadeiros cristãos, de recompor as fracturas, de cicatrizar as lacerações e de instaurar, a todos os níveis, uma unidade essencial. Este desejo comporta, em muitos casos, uma verdadeira nostalgia de reconciliação, mesmo quando não é usada tal palavra.
Para alguns, trata-se como que de uma utopia, a qual poderia tornar-se a alavanca ideal para uma verdadeira transformação da sociedade; para outros, apresenta-se, ao contrário, como o objecto de uma árdua conquista e, portanto, uma meta a atingir, através de um sério empenhamento de reflexão e de acção. Em qualquer caso, a aspiração a uma reconciliação sincera e consistente é, sem sombra de dúvida, um móbil fundamental da nossa sociedade, como que reflexo de um irreprimível desejo de paz; e é-o tão vigorosamente — por mais paradoxal que pareça — quanto mais perigosos são os próprios factores de divisão.
A reconciliação, todavia, não poderá ser menos profunda do que se apresenta a divisão. A nostalgia da reconciliação e a própria reconciliação serão plenas e eficazes, na medida em que atingirem — para a curar — aquela dilaceração primordial, que é a raiz de todas as outras, ou ou seja, o pecado.
A visão do Sínodo
4. Portanto, todas as instituições ou organizações, que se destinam ao serviço do homem e interessadas em salvá-lo nas suas dimensões fundamentais, hão-de volver um olhar penetrante para a reconciliação, para aprofundar o seu significado e todo o seu alcance e tirar daí as necessárias consequências para a acção.
A um olhar assim não podia eximir-se a Igreja de Jesus Cristo. Com dedicação de Mãe e inteligência de Mestra, ela, solícita e atenta, aplica-se em captar na sociedade, com os sinais da divisão, também aqueles outros não menos eloquentes e significativos da busca de uma reconciliação. A Igreja sabe, de facto, que lhe foi dada, especialmente a ela, a possibilidade e lhe está confiada a missão de tornar conhecido o sentido verdadeiro, profundamente religioso, e as dimensões integrais da reconciliação, contribuindo assim, já só com isso, para esclarecer os termos essenciais da questão da unidade e da paz.
Os meus Predecessores não cessaram de pregar a reconciliação e de convidar a pô-la em prática a humanidade inteira, bem como cada sector e cada parcela da comunidade humana que viam dilacerada e dividida. (6) E eu próprio, por um impulso interior, que obedecia ao mesmo tempo — estou certo disso — à inspiração do Alto e aos apelos da humanidade, em dois momentos diversos, ambos solenes e bem importantes, quis pôr em foco a tema da reconciliação: em primeiro lugar, convocando a VI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos; e, em segundo lugar, fazendo dele o ponto central do Ano Jubilar, proclamado para celebrar o 1950° aniversário da Redenção. (7) E quando houve de designar um tema para o Sínodo encontrei-me plenamente de acordo com o que tinha sido sugerido por muitos dos meus Irmãos no Episcopado, ou seja, quanto ao tão fecundo tema de reconciliação, em estreita ligação com o da penitência. (8)
O termo e o próprio conceito de penitência são bastante complexos. Se a relacionarmos com a metánoia, a que se referem os Sinópticos, a penitência significa então a íntima mudança do coração sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino. (9) Mas penitência quer dizer também mudar de vida, em coerência com a mudança do coração; e, neste sentido, o fazer penitência completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento: (10) é a existência toda que se torna penitêncial, aplicada numa contínua caminhada em tensão para o que é melhor. Fazer penitência, no entanto, só será algo de autêntico e eficaz se se traduzir em actos e gestos de penitência. Neste sentido, penitência significa, no vocabulário cristão teológico e espiritual, a ascese, isto é, o esforço concreto e quotidiano do homem, amparado pela graça de Deus, por perder a própria vida, por Cristo, como único modo de a ganhar: (11) esforço por se despojar do homem velho e revestir-se do novo; (12) por superar em si mesmo o que é carnal, para que prevaleça o que é espiritual; (13) e esforço por se elevar continuamente das coisas de cá de baixo para as lá do alto, onde está Cristo. (14) A penitência, portanto, é a conversão que passa do coração as obras e, por conseguinte, à vida toda do cristão.
Em cada um destes significados, a penitência anda intimamente ligada com a reconciliação, uma vez que reconciliar-se com Deus, consigo mesmo e com os outros pressupõe que se supera a ruptura radical, que é o pecado; ora isto só se realiza através da transformação interior ou conversão, que frutifica na vida mediante os actos de penitência.
O documento-base do Sínodo (chamado também Lineamenta = Esboço), preparado só com a finalidade de apresentar o tema, acentuando alguns dos seus aspectos fundamentais, permitiu as Comunidades eclesiais, que existem pelo mundo, reflectir durante quase dois anos, sobre estes aspectos de uma questão — qual é a da conversão e da reconciliação — que interessa a todos; e, além disso, de a ela ir buscar um renovado dinamismo para a vida e para o apostolado cristão. A reflexão foi mais aprofundada depois, na preparação imediata para os trabalhos sinodais, graças ao Documento de trabalho («Instrumentum laboris»), enviado a seu tempo aos Bispos e aos seus colaboradores. E, por fim, durante um mês inteiro, os Padres sinodais, assistidos por todos aqueles que foram chamados para a Assembleia propriamente dita, com grande sentido de responsabilidade trataram do mesmo tema e dos problemas, numerosos e variados, com ele conexos. Do debate, do estudo em comum e da assídua e cuidadosa indagação promanou um amplo e precioso tesouro, que as Propostas («Propositiones») finais resumem na sua essência.
A visão do Sínodo não ignora os actos de reconciliação (alguns dos quais passam quase inobservados na sua verificação quotidiana) que, embora em graus diversos, servem para acabar com as muitas tensões, para superar os muitos conflitos e para vencer as pequenas e grandes divisões, restabelecendo a unidade. A preocupação principal do Sínodo, porém, era a de encontrar, no âmago destes actos dispersos, a raiz escondida, uma reconciliação «fontal», por assim dizer, operante no coração e na consciência do homem.
O carisma e, simultaneamente, a originalidade da Igreja, no que respeita à reconciliação, qualquer que seja o nível em que deva ser posta em prática, residem no facto de a mesma Igreja ir sempre buscar a sua origem àquela reconciliação fontal. Em virtude da sua missão essencial, a Igreja sente-se, de facto, no dever de chegar até as raizes da laceração primordial do pecado, para aí operar o saneamento e restabelecer como que uma reconciliação, também ela primordial, que seja o princípio eficaz de toda a verdadeira reconciliação. Foi isto que a Igreja teve em vista e propôs, mediante o Sínodo.
Desta reconciliação nos fala a Sagrada Escritura, convidando-nos a fazer todos os esforços para alcançá-la; (15) mas diz-nos, por outro lado, que ela é, primeiro que tudo, um dom misericordioso de Deus ao homem. (16) A história da Salvação — a salvação de toda a humanidade, como a de cada homem, em qualquer momento — é a história admirável de uma reconciliação: aquela reconciliação pela qual Deus, que é Pai, no Sangue e na Cruz do Seu Filho feito homem, reconciliou consigo o mundo, fazendo nascer assim una nova família de reconciliados.
A reconciliação torna-se necessária porque se deu a ruptura do pecado, da qual derivaram todas as outras formas de ruptura no íntimo do homem e à sua volta. A reconciliação, portanto, para ser total exige necessariamente a libertação do pecado, rejeitado nas suas raízes mais profundas. Por isso, há uma estreita ligação interna, que une conversão e reconciliação: é impossível dissociar as duas realidades, ou falar de uma sem falar da outra.
O Sínodo falou, ao mesmo tempo, da reconciliação de toda a família humana e da conversão do coração de cada pessoa, do seu regresso a Deus, querendo confirmar e proclamar que a união entre os homens não se poderá realizar sem a mudança interior de cada um. A conversão pessoal é o caminho necessário para a concórdia entre as pessoas. (17) Quando a Igreja anuncia a boa nova da reconciliação ou se propõe torná-la realidade através dos Sacramentos, desempenha um verdadeiro papel profético, denunciando os males do homem na sua nascente contaminada indicando a raiz das divisões e infundindo a esperança de poder superar as tensões e os conflitos, para chegar à fraternidade, à concórdia e à paz, em todos os níveis e em todas as camadas da sociedade humana. Ela transforma uma condição histórica de ódio e de violência numa civilização de amor; ela proporciona a todos o princípio evangélico e sacramental daquela reconciliação «fontal», da qual brotam todos os outros gestos ou actos de reconciliação, mesmo a nível social. É desta reconciliação, fruto da conversão, que trata a presente Exortação Apostólica.
Com efeito, como já aconteceu depois das três precedentes Assembleias sinodais, também desta vez os próprios Padres quiseram deixar nas mãos do Bispo de Roma, Pastor universal da Igreja e Chefe do Colégio episcopal, na sua qualidade de Presidente do Sínodo, as conclusões do próprio trabalho. Aceitei, como grave e grato dever do meu ministério, a tarefa de colher na imensa riqueza do Sínodo para apresentar ao Povo de Deus, qual fruto do mesmo Sínodo, uma mensagem doutrinal e pastoral sobre o tema da penitência e da reconciliação. Tratarei, pois, na primeira parte, da Igreja no desempenho da sua missão reconciliadora e na actividade de conversão dos corações, pelo abraço renovado entre o homem e Deus, entre o homem e o seu irmão e entre o homem e tudo o que foi criado; na segunda parte, será indicada a causa radical de todas as dilacerações ou divisões entre os homens e, antes de mais, em relação com Deus: o pecado; por fim, apontarei aqueles meios que permitem à Igreja promover e suscitar a plena reconciliação dos homens com Deus e, consequentamente, dos homens entre si.
O Documento que agora confio aos filhos da Igreja, bem como a todos aqueles que, crentes ou não, olham a mesma Igreja com interesse e ânimo sincero, pretende ser a resposta que se impõe a tudo aquilo que o Sínodo me pediu. Entretanto, ele é também — faço questão de o declarar, para satisfazer a um imperativo de verdade e de justiça — obra do mesmo Sínodo. O conteúdo destas páginas, de facto, dele é proveniente: da sua preparação remota ou próxima, do Documento de trabalho, das intervenções na «Sala Sinodal», nas reuniões de grupo («circuli minores») e, sobretudo, das sessenta e três Propostas («Propositiones»): encontra-se aqui o fruto do trabalho conjunto dos Padres, entre os quais não faltavam os representantes das Igrejas Orientais, cujo património teológico, espiritual e litúrgico é tão rico e venerável, também pelo que respeita à matéria que aqui nos interessa. Além disso, o Conselho da Secretaria do Sínodo, em duas importantes sessões, avaliou os resultados e as orientações da Assembleia sinodal, logo que esta terminou, pôs em evidência a dinâmica das referidas Propostas («Propositiones») e traçou as linhas julgadas mais idóneas, para a estrutura do presente Documento. Estou grato a todos aqueles que realizaram este trabalho, enquanto, fiel à minha missão, quero aqui transmitir aquilo que, no tesouro doutrinal e pastoral do Sínodo, me parece providencial para a vida de tantos homens, nesta hora, a um tempo magnífica e difícil, da história.
Convém fazê-lo — e afigura-se algo especialmente significativo — enquanto está ainda viva a recordação do Ano Santo, todo ele vivido sob o signo da penitência, conversão e reconciliação. Que esta minha Exortação, confiada aos Irmãos no Episcopado e aos seus colaboradores Presbíteros e Diáconos, aos Religiosos e Religiosas, a todos os Fiéis e aos homens e mulheres de consciência recta, possa constituir não apenas um instrumento de purificação, de enriquecimento e aprofundamento da própria fé pessoal, mas também um fermento capaz de estimular no coração do mundo, a paz e a fraternidade, a esperança e a alegria, valores que brotam do Evangelho acolhido, meditado e vivido, dia a dia, olhando para o exemplo de Maria, Mãe de nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual aprouve a Deus reconciliar consigo todas as coisas. (18)
PRIMEIRA PARTE
CONVERSÃO E RECONCILIAÇÃO: TAREFA E COMPROMISSO DA IGREJA
CAPÍTULO PRIMEIRO: UMA PARÁBOLA DA RECONCILIAÇÃO
5. Ao iniciar esta Exortação Apostólica, vem-me à mente aquela página extraordinária de São Lucas, que já procurei ilustrar num Documento precedente. (19) Refiro-me à parábola do filho pródigo.(20)
Do irmão que se tinha perdido...
«Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao Pai: "Pai, dá-me a parte da herança que me compete", conta Jesus ao apresentar as dramáticas vicissitudes daquele jovem: a aventurosa partida da casa paterna, a dissipação de todos os seus bens numa vida dissoluta e vazia, os dias tenebrosos da distância e da fome e, pior ainda, da dignidade perdida, da humilhação e da vergonha; e, por fim, a nostalgia da própria casa, a coragem de regressar e o acolhimento do pai. Este, certamente, não tinha esquecido o filho; ao contrário, conservara intactos o afecto e a estima para com ele. E assim, esperara-o sempre; e agora abraça-o, enquanto inicia a grande festa do regresso «daquele que estava morto e voltou à vida, se tinha perdido e foi encontrado».
O homem, — cada um dos homens — é este filho pródigo: fascinado pela tentação de se separar do Pai para viver de modo independente a própria existência; caído na tentação; desiludido do nada que, como miragem, o tinha deslumbrado; sozinho, desonrado e explorado no momento em que tenta construir um mundo só para si; atormentado, mesmo no mais profundo da própria miséria, pelo desejo de voltar à comunhão com o Pai. Como o pai da parábola, Deus fica à espreita do regresso do filho, abraça-o à sua chegada e põe a mesa para o banquete do novo encontro, com que se festeja a reconciliação.
O que nesta parábola sobressai mais é o acolhimento festivo e amoroso do pai ao filho que regressa: imagem da misericórdia de Deus sempre pronto a perdoar. Assentemos desde já nisto: a reconciliação é principalmente um dom do Pai celeste.
...ao irmão que ficara em casa
6. Mas a parábola faz entrar em cena também o irmão mais velho, que recusa ocupar o seu lugar no banquete. Reprocha ao irmão mais novo os seus extravios e ao pai o acolhimento que lhe dispensou, enquanto a ele, morigerado e trabalhador, fiel ao pai e à casa, nunca foi permitido — diz ele — fazer uma festa com os amigos. Sinal de que não compreende a bondade do pai. Enquanto este irmão, demasiado seguro de si mesmo e dos próprios méritos, ciumento e desdenhoso, cheio de azedume e de raiva, não se converteu e se reconciliou com o pai e com o irmão, o banquete ainda não era, no sentido pleno, a festa do encontro e do convívio recuperado.
O homem — cada um dos homens — é também este irmão mais velho. O egoísmo torna-o ciumento, endurece-lhe o coração, cega-o e leva-o a fechar-se aos outros e a Deus. A benignidade e a misericórdia do pai irritam-no e incomodam-no; a felicidade do irmão reencontrado tem um sabor amargo para ele. (21) Também sob este aspecto ele precisa de se converter para se reconciliar.
A parábola do filho pródigo é, antes de mais, a história inefável do grande amor de um Pai — Deus — que oferece ao filho, que a Ele retorna, o dom da reconciliação plena. E ao evocar, na figura do irmão mais velho, o egoísmo que divide os irmãos entre si, ela torna-se também a história da família humana: mostra a nossa situação e indica o caminho a percorrer. O filho pródigo, com a sua ânsia de conversão, de regresso aos braços do pai e de perdão, representa aqueles que pressentem no fundo da própria consciência a nostalgia de uma reconciliação a todos os níveis e sem reserva, e têm a intuição, com íntima certeza, de que ela só será possível, se derivar de uma primeira e fundamental reconciliação: aquela reconciliação que leva o homem da distância à amizade filial com Deus, do qual reconhece a misericórdia infinita. Lida, porém, na perspectiva do outro filho, a parábola retrata a situação da família humana dividida pelos egoísmos, põe em evidência a dificuldade em secundar o desejo e a nostalgia de uma só família reconciliada e unida; e, por conseguinte, apela para a necessidade de uma profunda transformação dos corações, pela redescoberta da misericórdia do Pai e pela vitória sobre a incompreensão e a hostilidade entre irmãos.
À luz desta inesgotável parábola da misericórdia que apaga o pecado, a Igreja, acolhendo o apelo que nela está contido, compreende a sua missão de empenhar-se, seguindo as pegadas do Senhor, pela conversão dos corações e pela reconciliação dos homens com Deus e entre si, duas realidades que estão intimamente conexas.
CAPÍTULO SEGUNDO: NAS FONTES DA RECONCILIAÇÃO
À luz de Cristo Reconciliador
7. Como se deduz da parábola do filho pródigo, a reconciliação é um dom de Deus e uma iniciativa sua. Mas a nossa fé ensina-nos que esta iniciativa se concretiza no mistério de Cristo redentor e reconciliador, que liberta o homem do pecado sob todas as suas formas. O próprio São Paulo não hesita em resumir em tal tarefa e função a incomparável missão de Jesus de Nazaré, Verbo e Filho de Deus feito homem.
Também nós podemos partir deste mistério central da economia da salvação e ponto-chave da cristologia do Apóstolo. «Se, de facto, sendo nós inimigos, fomos reconciliados com Deus, mediante a morte do Seu Filho — escreve ele aos Romanos — muito mais, agora que estamos reconciliados, seremos salvos pela sua vida. E não só isto; mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual, agora, obtivemos a reconciliação». (22) Sendo assim, uma vez que «Deus nos reconciliou consigo por meio de Cristo» Paulo sente-se inspirado a exortar os cristãos de Corinto: «Reconciliai-vos com Deus».(23)
De tal missão reconciliadora mediante a morte na Cruz, falava noutros termos o evangelista João, ao observar que Cristo devia morrer «para que fossem reconduzidos à unidade os filhos de Deus que andavam dispersos». (24)
São Paulo permite-nos, ainda, alargar a nossa visão da obra de Cristo a dimensões cósmicas, quando escreve que n'Ele o Pai reconciliou consigo todas as criaturas, as do céu e as da terra. (25) Pode dizer-se de Cristo Redentor, justamente, que «no tempo da ira foi feito reconciliação», (26) e que, se Ele é «a nossa paz», (27) é também a nossa reconciliação.
É com toda a razão que a sua paixão e morte, sacramentalmente renovadas na Eucaristia, são chamadas pela Liturgia «sacrifício de reconciliação»: (28) reconciliação com Deus e com os irmãos, dado que o próprio Jesus ensina que a reconciliação fraterna deve realizar-se antes do sacrifício. (29)
A partir destas e de outras significativas passagens do Novo Testamento, é legitimo, portanto, fazer convergir as reflexões sobre todo o mistério de Cristo, em torno da sua missão de Reconciliador. Há que proclamar, portanto, mais uma vez, a fé da Igreja no acto redentor de Cristo, no mistério pascal da sua morte e ressurreição, enquanto causa da reconciliação do homem, no seu duplo aspecto de libertação do pecado e de comunhão de graça com Deus.
E exactamente perante o quadro doloroso das divisões e das dificuldades da reconciliação entre os homens, convido a olhar para o mistério da Cruz («mysterium Crucis»), como para o drama mais alto, no qual Cristo conhece e sofre profundamente o drama da divisão do homem em relação a Deus, ao ponto de clamar com o Salmista: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?»; (30) e realiza ao mesmo tempo a nossa reconciliação. O olhar fixo no mistério do Gólgota deve fazer-nos recordar sempre aquela dimensão «vertical» da divisão e da reconciliação, que diz respeito à relação homem-Deus, e que, numa visão de fé, prevalece sempre sobre a dimensão «horizontal», isto é, sobre a realidade da divisão e sobre a necessidade da reconciliação entre os homens. Sabemos, de facto, que tal reconciliação entre os homens não é e não pode ser senão o fruto do acto redentor de Cristo, morto e ressuscitado para destroçar o reino do pecado, restabelecer a aliança com Deus e abater assim o muro de separação, (31) que o pecado tinha erguido entre os homens.
A Igreja reconciliadora
8. Mas — como dizia São Leão Magno, ao falar, da paixão de Cristo — «tudo aquilo que o Filho de Deus fez e ensinou para a reconciliação do mundo, nós não o conhecemos somente pela história das suas acções passadas, mas sentimo-lo, também, na eficácia do que Ele realiza no presente». (32) Sentimos a reconciliação, operada na sua humanidade, na eficácia dos sagrados mistérios celebrados pela sua Igreja, pela qual Ele se entregou a si mesmo, constituindo-a sinal e, conjuntamente, instrumento de salvação. é isto que afirma São Paulo, ao escrever que Deus deu aos Apóstolos de Cristo uma participação na sua obra reconciliadora. «Deus - diz ele - confiou-nos o ministério da reconciliação ... as palavras da reconciliação». (33)
Nas mãos e na boca dos Apóstolos, seus mensageiros, o Pai depôs misericordiosamente um ministério de reconciliação, que eles exercem de maneira singular, em virtude do poder de agir «in persona Christi». Mas também a toda a comunidade dos fiéis, à inteira estrutura da Igreja, é confiada a mensagem da reconciliação, ou seja, a obrigação de fazer todo o possível para testemunhar a reconciliação e para a actuar no mundo.
Pode dizer-se que também o Concílio Vaticano II, ao definir a Igreja como «sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano», e ao indicar como sua função própria a de obter a «plena unidade em Cristo» para os «homens, hoje mais intimamente ligados por vários vínculos», (34) reconhecia que a mesma Igreja deve tender, sobretudo, para reconduzir os homens à plena reconciliação.
Em íntima conexão com a missão de Cristo, a missão da Igreja, assaz rica e complexa, pode, portanto, resumir-se na tarefa, central para ela, da reconciliação do homem: com Deus, consigo mesmo, com os irmãos e com toda a criação; e isto de maneira permanente, porque — como já disse uma outra vez — «a Igreja é, por sua natureza, sempre reconciliadora». (35)
A Igreja é reconciliadora, na medida em que proclama a mensagem da reconciliação, como sempre fez na sua história, desde o Concílio apostólico de Jerusalém (36) até ao último Sínodo dos Bispos e ao recente Jubileu da Redenção. A originalidade desta proclamação está no facto de que, para a Igreja, a reconciliação está estreitamente ligada à conversão do coração: é esta a via necessária para o entendimento entre os seres humanos.
A Igreja é reconciliadora, ainda, na medida em que mostra ao homem os caminhos e lhe oferece os meios para a referida reconciliação em quatro dimensões. Os caminhos são exactamente os da conversão do coração e da vitória sobre o pecado, seja ele o egoísmo ou a injustiça, a prepotência ou a exploração de outrem, o apego aos bens materiais ou a busca desenfreada do prazer. Os meios são os da fiel e amorosa escuta da Palavra de Deus, da oração pessoal e comunitária e, sobretudo, dos Sacramentos, verdadeiros sinais e instrumentos de reconciliação, entre os quais sobressai, precisamente sob este aspecto, aquele a que, com razão, costumamos chamar o Sacramento da Reconciliação ou da Penitência, ao qual voltarei em seguida.
A Igreja reconciliada
9. O meu venerável Predecessor Paulo VI teve o mérito de esclarecer que, para ser evangelizadora, a Igreja deve começar por se mostrar ela própria evangelizada, isto é, aberta ao anúncio pleno e integral da Boa Nova de Jesus Cristo, para a escutar e pôr em prática. (37) Também eu, coligindo num documento orgânico as reflexões da IV Assembleia Geral do Sínodo, falei de uma Igreja que se catequiza na medida em que faz catequese. (38)
Não hesito agora em retomar, aqui neste ponto, o paralelismo, porquanto ele se aplica ao tema que estou a tratar, para afirmar que a Igreja, para ser reconciliadora, deve começar por ser uma Igreja reconciliada. Nesta expressão simples e linear está subjacente a convicção de que a Igreja, para anunciar e propôr de modo cada vez mais eficaz ao mundo a reconciliação, deve tornar-se cada vez mais uma comunidade (ainda que fosse o «pequeno rebanho» dos primeiros tempos) de discípulos de Cristo, unidos no empenho em se converterem continuamente ao Senhor e em viverem como homens novos no espírito e na prática da reconciliação.
Perante os nossos contemporâneos, tão sensíveis à prova dos testemunhos concretos de vida, a Igreja é chamada a dar o exemplo da reconciliação, antes de mais no seu interior; e para isto, todos devemos esforçar-nos por apaziguar os ânimos, moderar as tensões, superar as divisões, sanar as feridas eventualmente infligidas entre irmãos, quando se agudiza o contraste entre opções no campo do opinável, e procurar de preferência estar unidos naquilo que é essencial para a fé e a vida cristã, segundo a antiga máxima: In dubiis libertas, in necessariis unitas, in omnibus caritas (liberdade naquilo que é duvidoso, unidade no que é necessário e caridade em todas as coisas).
É segundo este mesmo critério, que a Igreja deve actuar também no que se refere à sua dimensão ecuménica. De facto, para ser inteiramente reconciliada, a Igreja sabe que deve prosseguir na busca da unidade entre aqueles que se prezam de chamar-se cristãos, mas se encontram separados entre si, mesmo como Igrejas ou Comunhões, e da Igreja de Roma. Esta procura uma unidade que, para ser fruto e expressão de verdadeira reconciliação, não quer seja fundamentada nem na dissimulação dos aspectos que dividem, nem em compromissos tão fáceis quanto superficiais e frágeis. A unidade deve ser o resultado de uma verdadeira conversão de todos, do perdão recíproco, do diálogo teológico e das relações fraternais, da oração e da plena docilidade à acção do Espírito Santo, que é também Espírito de reconciliação.
Por fim, a Igreja, para poder dizer-se plenamente reconciliada, sente o dever de se aplicar cada vez mais em levar o Evangelho a todos os povos, promovendo o «diálogo da salvação» (39)com aqueles vastos sectores da humanidade que, no mundo contemporâneo, não compartilham a sua fé e que, devido a um crescente secularismo, até mesmo se mantêm distantes dela e lhe opõem uma indiferença fria, quando não a hostilizam e perseguem. A Igreja sente o dever de repetir a todos com São Paulo: «Reconciliai-vos com Deus». (40)
Em qualquer caso, a Igreja promove uma reconciliação na verdade, pois sabe bem que não são possíveis nem a reconciliação nem a unidade, fora ou contra a verdade.
CAPÍTULO TERCEIRO: A INICIATIVA DE DEUS E O MINISTÉRIO DA IGREJA
10. Comunidade reconciliada e reconciliadora, a Igreja não pode esquecer que na origem do seu dom e da sua missão de reconciliação se encontra a iniciativa, cheia de amor compassivo e de misericórdia, daquele Deus que é amor (41) e que por amor criou os homens: (42) criou-os, com o fim de viverem em amizade com Ele e em comunhão entre si.
A reconciliação vem de Deus
Deus é fiel ao seu desígnio eterno mesmo quando o homem, induzido pelo Maligno (43) e arrastado pelo seu orgulho, abusa da liberdade que lhe foi dada para amar e procurar generosamente o bem, recusando a obediência ao seu Senhor e Pai; mesmo quando o homem, em vez de responder com amor ao amor de Deus, se opõe a Ele como a um seu rival, iludindo-se e presumindo das suas forças, com a consequente ruptura das relações com Aquele que o criou. Não obstante esta prevaricação do homem, Deus permanece fiel no amor. A narração do jardim do éden leva-nos, certamente, a meditar sobre as consequências funestas da rejeição do Pai, que se traduz na desordem interna do homem e na ruptura da harmonia entre o homem e a mulher e entre irmão e irmão. (44) Também é significativa a parábola evangélica dos dois filhos que se afastam do pai, de maneira diversa, cavando um abismo entre si. A recusa do amor de Deus e dos seus dons de amor está sempre na raiz das divisões da humanidade.
Mas nós sabemos que Deus, «rico em misericórdia» (45) tal como o pai da parábola, não fecha o coração a nenhum dos seus filhos. Espera-os, procura-os, vai alcançá-los precisamente no ponto em que a recusa da comunhão os aprisiona no isolamento e na divisão e chama-os a reunirem-se à volta da sua mesa, na alegria da festa do perdão e da reconciliação.
Esta iniciativa de Deus concretiza-se e manifesta-se no acto redentor de Cristo, que se irradia no mundo mediante o ministério da Igreja.
De acordo com a nossa fé, de facto, o Verbo de Deus fez-se carne e veio habitar a terra dos homens, entrou na história do mundo, assumindo-a e recapitulando-a em si. (46) Ele revelou-nos que Deus é amor e deu-nos o «mandamento novo» (47) do amor, comunicando-nos, ao mesmo tempo, a certeza de que o caminho do amor está aberto a todos os homens, de tal modo que não é vão o esforço para instaurar a fraternidade universal. (48) Vencendo, com a sua morte na Cruz, o mal e a força do pecado, pela sua obediência cheia de amor trouxe a salvação a todos e tornou-se para todos «reconciliação». N'Ele, Deus reconciliou o homem consigo.
A Igreja, continuando o anúncio de reconciliação que Cristo apregoou nas aldeias da Galileia e de toda a Palestina, (49) não cessa de convidar a humanidade inteira a converter-se e a acreditar na Boa Nova; ela fala em nome de Cristo, fazendo seu o apelo do Apóstolo Paulo, que já recordámos: «Nós somos ... embaixadores ao serviço de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Suplicamo-vos, pois, em nome de Cristo: Reconciliai-vos com Deus». (50)
Quem aceita este apelo entra na economia da reconciliação e faz a experiência da verdade contida naquele outro anúncio de São Paulo, segundo o qual Cristo «é a nossa paz, ele que fez de dois povos um só, destruindo o muro de separação, isto é, de inimizade que constituía a barreira (...) estabelecendo a paz para reconciliar uns e outros com Deus». (51) Embora este texto diga directamente respeito à superação da divisão religiosa entre Israel, como povo eleito do Antigo Testamento, e os outros povos, todos chamados a fazer parte da Nova Aliança, ele contém, todavia, a afirmação da nova universalidade espiritual, querida por Deus e por Ele realizada, mediante o sacrifício do seu Filho, o Verbo feito homem, sem limites nem exclusões de qualquer género, para todos aqueles que se convertem e acreditam em Cristo. Todos, portanto, somos chamados a usufruir dos frutos desta reconciliação querida por Deus: todos e cada um dos homens, todos e cada um dos povos.
A Igreja, grande sacramento de reconciliação
11. A Igreja tem a missão de anunciar esta reconciliação e de ser o seu sacramento no mundo. A Igreja é sacramento, isto é, sinal e instrumento de reconciliação, por diversos títulos, de valor diferente, mas todos convergentes para a obtenção daquilo que a iniciativa divina de misericórdia quer conceder aos homens.
É-o, acima de tudo, pela sua própria existência de comunidade reconciliada, que testemunha e representa no mundo a obra de Cristo.
É-o, depois, pelo seu serviço de guardiã e intérprete da Sagrada Escritura, que é Boa Nova de reconciliação, na medida em que faz conhecer de geração em geração o desígnio de amor de Deus e indica a cada um as vias da reconciliação universal em Cristo.
É-o, por fim, pelos sete Sacramentos que, de um modo peculiar a cada um deles, «perfazem a Igreja». (52) Efectivamente, uma vez que comemoram e renovam o mistério da Páscoa de Cristo, todos os Sacramentos são fonte de vida para a Igreja e, nas mãos dela, instrumento de conversão a Deus e de reconciliação dos homens.
Outros caminhos de reconciliação
12. A missão reconciliadora é própria de toda a Igreja, mesmo e sobretudo daquela já foi admitida à plena participação da glória divina, com a Virgem Maria e com os Anjos e os Santos, os quais contemplam e adoram o Deus três vezes santo. Igreja do Céu, Igreja da Terra e Igreja do Purgatório estão misteriosamente unidas nesta cooperação com Cristo para reconciliar o mundo com Deus.
A primeira via desta acção salvadora é a oração. Sem dúvida a Virgem Santíssima, Mãe de Cristo e da Igreja, (53) e os Santos, que já chegaram ao termo da caminhada terrena e à posse da glória de Deus, sustentam, com a sua intercessão, os seus irmãos peregrinos no mundo, no empenho de conversão, de fé, de recuperação após cada queda, de actividade para fazer crescer a comunhão e a paz na Igreja e no mundo. É no mistério da Comunhão dos Santos, que a reconciliação universal é actuada na sua forma mais profunda e mais frutuosa para a salvação de todos.
Há, depois, uma outra via: a da pregação. Discípula do único Mestre Jesus Cristo, a Igreja, por sua vez como Mãe e Mestra, não se cansa de propor aos homens a reconciliação e não hesita em denunciar a maldade do pecado, em proclamar a necessidade da conversão, em convidar e em pedir aos homens que «se deixem reconciliar». Na realidade, é essa a sua missão profética no mundo de hoje, como no de ontem: é a mesma missão do seu Mestre e Cabeça, Jesus. Como ele, a Igreja há-de realizar sempre tal missão com sentimentos de amor misericordioso e levar a todos as palavras do perdão e o convite à esperança, que vêm da Cruz.
Há ainda a via, tantas vezes difícil e árdua, da acção pastoral para trazer cada um dos homens — sejam eles quem forem e onde quer que se encontrem — ao caminho, por vezes longo, do retorno ao Pai na comunhão com todos os irmãos.
Há, por fim, a via do testemunho, quase sempre silencioso, que nasce duma dupla consciência da Igreja: a de ser em si «indefectivelmente santa», (54) mas ao mesmo tempo necessitada de continuar «a purificar-se, dia a dia, até que Cristo a faça comparecer na sua presença, gloriosa, sem mancha nem ruga», dado que, por causa dos nossos pecados, por vezes «o seu rosto resplandece menos» aos olhos de quem a vê. (55) Este testemunho não pode deixar de assumir duas manifestações fundamentais: ser sinal daquela caridade universal que Jesus Cristo deixou como herança aos seus seguidores, como prova da pertença ao seu Reino; e traduzir-se em factos sempre novos de conversão e de reconciliação no interior e no exterior da Igreja, com a superação das tensões, com o perdão recíproco e com o crescimento no espírito de fraternidade e de paz, que tem de ser propagado no mundo inteiro. Percorrendo esta via a Igreja poderá actuar validamente para fazer com que nasça aquilo a que o meu Predecessor Paulo VI chamava «a civilização do amor».
SEGUNDA PARTE
O AMOR MAIOR DO QUE O PECADO
O drama do homem
13. Como escreve o Apóstolo São João «se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós próprios e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, Ele que é fiel e justo perdoar-nos-á os pecados». (56) Estas palavras inspiradas, escritas nos alvores da Igreja, introduzem melhor do que qualquer outra expressão humana a reflexão sobre o pecado, que está intimamente relacionada com o discurso sobre a reconciliação. Elas apreendem o problema do pecado no seu horizonte antropológico, enquanto parte integrante da verdade acerca do homem, mas inserem-no imediatamente no horizonte divino, no qual o pecado é confrontado com a verdade do amor de Deus, justo, generoso e fiel, que se manifesta sobretudo pelo perdão e pela redenção. Por isso, o próprio São João escreve pouco depois que «se (o nosso coração) de alguma coisa nos acusa, Deus é maior do que o nosso coração». (57)
Reconhecer o próprio pecado, ou melhor — indo mais ao fundo na consideração da própria personalidade — reconhecer-se pecador, capaz de pecar e de ser induzido ao pecado, é o princípio indispensável do retorno a Deus. É a experiência exemplar de David, que depois de «ter feito o mal aos olhos do Senhor», repreendido pelo profeta Natan, (58) exclama: «Reconheço a minha culpa, o meu pecado está sempre diante de mim. Pequei contra Vós, só contra Vós; pratiquei aquilo que é mal aos vossos olhos». (59) De resto, Jesus põe na boca e no coração do filho pródigo aquelas palavras significativas: «Pai, pequei contra o Céu e contra ti». (60)
Na realidade, reconciliar-se com Deus supõe e inclui o apartar-se com lucidez e determinação do pecado, no qual se caiu. Supõe e inclui, portanto, o fazer penitência no sentido mais pleno do termo: arrepender-se, manifestar o arrependimento, assumir a atitude concreta do arrependido, que é a de quem se coloca no caminho do regresso ao Pai. Isto é uma lei geral, que cada um deve seguir na situação particular em que se encontra. A exposição sobre o pecado e a conversão, de facto, não pode ser desenvolvida somente em termos abstractos.
Na condição concreta do homem pecador, em que não pode haver conversão sem reconhecimento do próprio pecado, o ministério de reconciliação da Igreja intervém, em qualquer hipótese, com uma finalidade claramente penitencial, isto é, para levar o homem ao «conhecimento de si», segundo a expressão de Santa Catarina de Sena, (61) ao desapego do mal, ao restabelecimento da amizade com Deus, à reordenação interior e à nova conversão eclesial. Acrescente-se que, para além do âmbito da Igreja e dos fiéis, a mensagem e o ministério da penitência são dirigidos a todos os homens, uma vez que todos têm necessidade de conversão e de reconciliação. (62)
Para exercitar adequadamente tal ministério penitencial, será também necessário avaliar, com os «olhos iluminados» (63) pela fé, as consequências do pecado, que são motivo de divisão e de ruptura, não só no interior de cada homem, mas também nos vários círculos em que ele vive: familiar, ambiencial, profissional e social, como tantas vezes se pode verificar pela experiência, em confirmação da página bíblica referente à cidade de Babel e à sua torre. (64) Tendo a intenção de construir aquilo que devia ser, a um tempo, símbolo e foco de unidade, aqueles homens encontraram-se mais dispersos do que antes, confundidos na linguagem, divididos entre si e incapazes de consenso e de convergência.
Porque falhou o ambicioso projecto? Porque «se afadigaram em vão os construtores»? (65) Porque os homens tinham colocado como sinal e garantia da desejada unidade unicamente uma obra das suas mãos, esquecidos da acção do Senhor. Calcularam apenas com a dimensão horizontal do trabalho e da vida social, descurando a dimensão vertical, pela qual se teriam encontrado radicados em Deus, seu Criador e Senhor, e voltados na direcção dele como fim último do seu caminho.
Ora, pode dizer-se que o drama do homem de hoje, como o do homem de todos os tempos, consiste precisamente no seu carácter babélico.
CAPÍTULO PRIMEIRO: O MISTÉRIO DO PECADO
14. Se lermos a página bíblica da cidade e da torre de Babel à luz da novidade evangélica e a confrontarmos com a outra página da queda dos primeiros pais, podemos tirar daí elementos preciosos para uma tomada de consciência do mistério do pecado. Esta expressão, na qual se repercute o que São Paulo escreve acerca do mistério da iniquidade (66) tem em vista fazer-nos perceber o que se esconde de obscuro e de inexplicável no pecado. Este, sem dúvida, é obra da liberdade do homem; mas por dentro da realidade desta experiência humana agem factores, pelos quais ela se situa para além do humano, na zona limite onde a consciência, a vontade e a sensibilidade do homem estão em contacto com forças obscuras que, segundo São Paulo, agem no mundo até ao ponto de quase o senhorearem. (67)
A desobediência a Deus
Da narração bíblica relativa à construção da torre de Babel emerge um primeiro elemento, que nos ajuda a compreender o pecado: os homens pretenderam edificar uma cidade, reunir-se numa estrutura social, ser fortes e poderosos sem Deus, se bem que, talvez, não contra Deus. (68) Neste sentido, a narração do primeiro pecado no éden e a narração de Babel, não obstante as diferenças notáveis, de conteúdo e de forma, têm um ponto de convergência: em ambas nos encontramos diante de uma exclusão de Deus, pela oposição frontal a um mandamento seu, por uma atitude de rivalidade em relação a Ele, pela ilusória pretensão de ser «como Ele». (69) Na narração de Babel a exclusão de Deus não aparece tanto num tom de contraste com Deus, mas como esquecimento e indiferença em relação a ele, como se e o mesmo Deus não merecesse nenhum interesse no âmbito dos desígnios empreendedores e associativos do homem. Mas em ambos os casos a relação com Deus é cortada com violência. No caso do éden aparece com toda a sua gravidade e dramaticidade aquilo que constitui a essência mais íntima e mais obscura do pecado: a desobediência a Deus, à sua lei, à norma moral que ele deu ao homem, gravando-lha no coração e confirmando-a e aperfeiçoando-a com a revelação.
Exclusão de Deus, ruptura com Deus, desobediência a Deus: é isto o que tem sido, ao longo de toda a história humana, e continua a ser, sob formas diversas, o pecado, que pode chegar até à negação de Deus e da sua existência: é o fenómeno chamado ateísmo.
Desobediência do homem, que — com um acto da sua liberdade — não reconhece o senhorio de Deus sobre a sua vida, pelo menos naquele momento determinado em que viola a sua lei.
A divisão entre os irmãos
15. Nas narrações bíblicas acima recordadas a ruptura com Deus desemboca dramaticamente na divisão entre os irmãos.
Na descrição do «primeiro pecado», a ruptura com Javé espedaçou, ao mesmo tempo, o fio da amizade que unia a família humana; tanto assim que as páginas do Génesis que se seguem nos mostram o homem e a mulher, como que a apontarem com o dedo acusador um contra o outro; (70) depois o irmão que, hostil ao irmão, acaba por tirar-lhe a vida. (71)
Segundo a narração dos factos de Babel, a consequência do pecado é a desagregação da família humana, que já começara com o primeiro pecado e agora chega ao extremo na sua forma social.
Quem quiser indagar sobre o mistério do pecado não pode deixar de considerar esta concatenação de causa e efeito. Como ruptura com Deus, o pecado é o acto de desobediência de uma criatura que, pelo menos implicitamente, enjeita Aquele do qual proveio e que a mantém em vida; é, portanto, um acto suicida.
E dado que com o pecado o homem se recusa a submeter-se a Deus, também se transtorna o seu equilíbrio interior; e, precisamente no seu íntimo, irrompem contradições e conflitos. Assim dilacerado, o homem produz, quase inevitavelmente, uma laceração no tecido das suas relações com os outros homens e com o mundo criado. É uma lei e um facto objectivo, que têm confirmação em muitos momentos da psicologia humana e da vida espiritual, como aliás na realidade da vida social, onde é fácil observar as repercussões e os sinais da desordem interior.
O mistério do pecado é formado por esta dupla ferida, que o pecador abre no seu próprio seio e na relação com o próximo. Por isso, pode falar-se de pecado pessoal e social: todo o pecado sob um aspecto é pessoal, e todo o pecado sob um outro aspecto é social, enquanto e porque tem também consequências sociais.
Pecado pessoal e pecado social
16. O pecado, no sentido próprio e verdadeiro, é sempre um acto da pessoa, porque é um acto de um homem, individualmente considerado, e não propriamente de um grupo ou de uma comunidade. Este homem pode ser condicionado, pressionado, impelido por numerosos e ponderosos factores externos, como também pode estar sujeito a tendências, taras e hábitos relacionados com a sua condição pessoal. Em não poucos casos, tais factores externos e internos podem atenuar, em maior ou menor grau, a sua liberdade e, consequentemente, a sua responsabilidade e culpabilidade. No entanto, é uma verdade de fé, também confirmada pela nossa experiência e pela nossa razão, que a pessoa humana é livre. E não se pode ignorar esta verdade, para descarregar em realidades externas — as estruturas, os sistemas, os outros - o pecado de cada um. Além do mais, isso seria obliterar a dignidade e a liberdade de pessoa, que se revelam — se bem que negativa e desastrosamente — também nessa responsabilidade do pecado cometido. Por isso, em todos e em cada um dos homens, não há nada tão pessoal e intransferível como o mérito da virtude ou a responsabilidade da culpa.
Como acto da pessoa, o pecado tem as suas primeiras e mais importantes consequências no próprio pecador; ou seja, na relação dele com Deus, que é o próprio fundamento da vida humana; e também no seu espírito, enfraquecendo-lhe a vontade e obscurecendo-lhe a inteligência.
Chegados a este ponto, devemos perguntar-nos: a que realidade se referiam os que, na preparação do Sínodo e no decorrer dos trabalhos sinodais, mencionaram não poucas vezes o pecado social? A realidade que está subjacente a tal expressão e conceito faz com estes tenham, na verdade, diversos significados.
Falar de pecado social quer dizer, primeiro que tudo, reconhecer que, em virtude de uma solidariedade humana tão misteriosa e imperceptível quanto real e concreta, o pecado de cada um se repercute, de algum modo, sobre os outros. Está nisto uma outra faceta daquela solidariedade que, a nível religioso, se desenvolve no profundo e magnífico mistério da Comunhão dos Santos, graças à qual se pode dizer que «cada alma que se eleva, eleva o mundo». (72) A esta lei da elevação corresponde, infelizmente, a lei da descida, de tal modo que se pode falar de uma comunhão no pecado, em razão da qual uma alma que se rebaixa pelo pecado arrasta consigo a Igreja, e, de certa maneira, o mundo inteiro. Por outras palavras não há nenhum pecado, mesmo o mais íntimo e secreto, o mais estritamente individual, que diga respeito exclusivamente àquele que o comete. Todo o pecado se repercute, com maior ou menor veemência, com maior ou menor dano, em toda a estrutura eclesial e em toda a família humana. Segundo esta primeira acepção, a cada pecado pode atribuir-se indiscutivelmente o carácter de pecado social.
Há certos pecados, no entanto, que constituem, pelo seu próprio objecto, uma agressão directa ao próximo e — mais exactamente, com base na linguagem evangélica — ao irmão. Estes são uma ofensa a Deus, porque ofendem o próximo. A tais pecados costuma dar-se a qualificação de sociais; e é esta a segunda acepção do termo. Neste sentido, é social o pecado contra o amor do próximo, que é tanto mais grave na Lei de Cristo, porquanto está em jogo o segundo mandamento, que é «semelhante ao primeiro». (73) é igualmente social todo o pecado cometido contra a justiça, quer nas relações de pessoa a pessoa, quer nas da pessoa com a comunidade, quer, ainda, nas da comunidade com a pessoa. É social todo o pecado contra os direitos da pessoa humana, a começar pelo direito à vida, incluindo a do nascituro, ou contra a integridade física de alguém; todo o pecado contra a liberdade de outrem, especialmente contra a suprema liberdade de crer em Deus e de o adorar; todo o pecado contra a dignidade e a honra do próximo. É social todo o pecado contra o bem comum e contra as suas exigências, em toda a ampla esfera dos direitos e dos deveres dos cidadãos. Pode ser social tanto o pecado de comissão como o de omissão: da parte dos dirigentes políticos, económicos e sindicais, por exemplo, que, embora podendo, não se empenhem com sabedoria no melhoramento ou na transformação da sociedade, segundo as exigências e as possibilidades do momento histórico; como também da parte dos trabalhadores, que faltem aos seus deveres de presença e de colaboração, para que as empresas possam continuar a proporcionar o bem-estar a eles próprios, as suas famílias e à inteira sociedade.
A terceira acepção de pecado social diz respeito as relações entre as várias comunidades humanas. Estas relações nem sempre estão em sintonia com a desígnio de Deus, que quer no mundo justiça, liberdade e paz entre os indivíduos, os grupos, os povos. Assim, a luta de classes, seja quem for o seu responsável ou, por vezes, o sistematizador, é um mal social. Assim, a contraposição obstinada dos blocos de Nações e duma Nação contra a outra e de grupos contra outros grupos no seio da mesma Nação, é igualmente um mal social. Em ambos os casos, pode fazer-se a pergunta, se é possível atribuir a alguém a responsabilidade moral de tais males e, por conseguinte, o pecado. Ora, deve admitir-se que realidades e situações como as que acabam de ser indicadas, ao generalizarem-se e até mesmo ao agigantarem-se como factos sociais, quase sempre se tornam anónimas, assim como são complexas e nem sempre identificáveis as suas causas. Por isso, ao falar-se aqui de pecado social, a expressão tem um significado claramente analógico. Em todo o caso, falar de pecados sociais, mesmo que seja em sentido analógico, não deve induzir ninguém a subestimar a responsabilidade individual das pessoas; mas tem em vista constituir um alerta para as consciências de todos, a fim de que cada um assuma as próprias responsabilidades, no sentido de serem séria e corajosamente modificadas essas realidades nefastas e essas situações intoleráveis.
Dito isto, de maneira clara e inequívoca, como premissa, é preciso acrescentar imediatamente que não é legítima nem aceitável uma acepção do pecado social, não obstante esteja muito em voga nos nossos dias nalguns ambientes, (74) a qual, ao opôr, não sem ambiguidade, pecado social a pecado pessoal, mais ou menos inconscientemente leva a diluir e quase a eliminar o pessoal, para admitir somente as culpas e responsabilidades sociais. Segundo esta concepção, que revela com facilidade a sua derivação de ideologias e sistemas não cristãos — hoje, talvez, já postos de parte por aqueles mesmos que a certa altura foram os seus fautores oficiais — praticamente todos os pecados seriam sociais, no sentido de serem imputáveis não tanto à consciência moral duma pessoa, quanto a uma entidade vaga e colectividade anónima, que poderia ser a situação, o sistema, a sociedade, as estruturas, a instituição etc.
Pois bem: a Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos colectivos de grupos sociais, mais ou menos vastos, ou até mesmo de Nações inteiras e blocos de Nações, sabe e proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais. Trata-se dos pecados pessoalíssimos de quem gera ou favorece a iniquidade ou a desfruta; de quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, ou eliminar, ou pelo menos limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença; de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo; e, ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior. As verdadeiras responsabilidades, portanto, são das pessoas.
Uma situação — e de igual modo uma instituição, uma estrutura, uma sociedade — não é, de per si, sujeito de actos morais; por isso, não pode ser, em si mesma, boa ou má.
No fundo de cada situação de pecado, porém, encontram-se sempre pessoas pecadoras. Isto é tão verdadeiro que, se tal situação vier a ser mudada nos seus aspectos estruturais e institucionais pela força da lei, ou — como acontece com mais frequência, infelizmente — pela lei da força, a mudança revela-se, na realidade, incompleta, de pouca duração e, no fim de contas, vã e ineficaz — para não dizer mesmo contraproducente — se não se converterem as pessoas directa ou indirectamente responsáveis por essa mesma situação.
Pecado mortal e pecado venial
17. Mas há no mistério do pecado uma outra dimensão, sobre a qual a inteligência do homem, nunca deixou de meditar: a da sua gravidade. É um problema inevitável, ao qual a consciência cristã nunca se esquivou de dar uma resposta: porquê e em que medida o pecado é grave na ofensa que faz a Deus e na sua repercussão sobre o homem? A Igreja tem uma doutrina própria a propósito disto e reafirma-a nos seus elementos essenciais, sabendo embora que nem sempre é fácil, no concreto das situações, fazer delimitações nítidas de fronteiras.
Já no Antigo Testamento e para numerosos pecados — os cometidos com deliberação, (76) as várias formas de impureza, (76) de idolatria, (77) de culto dos falsos deuses (78) — se declarava que o réu devia ser «eliminado do seu povo», o que podia significar mesmo ser condenado à morte. (79) A estes contrapunham-se outros pecados, sobretudo os cometidos por ignorância, que eram perdoados mediante um sacrifício. (80)
Com referência também a esses textos, a Igreja, já há séculos, fala constantemente em pecado mortal e pecado venial. Mas esta distinção e estes termos recebem luz sobretudo do Novo Testamento, no qual se encontram muitos textos que enumeram e reprovam, com expressões enérgicas, os pecados particularmente merecedores de condenação, (81) além e na continuidade da confirmação dos do Decálogo feita pelo próprio Jesus. (82) Quereria referir-me aqui, especialmente, a duas páginas significativas e impressionantes.
Numa passagem da sua primeira Carta, São João fala de um pecado que leva à morte (pròs thánaton) em contraposição a outro pecado que não leva à morte (mè pròs thánaton). (83) No conceito de morte, aqui, como é óbvio, subentende-se espiritual: trata-se da perda da verdadeira vida ou «vida eterna», que, para São João, é o conhecimento do Pai e do Filho (84) e a comunhão e a intimidade com eles. O pecado que leva à morte parece ser, nesta passagem, a negação do Filho, (85) ou o culto de falsas divindades. (86) Seja como for, com essa distinção de conceitos, São João parece querer acentuar a incomensurável gravidade daquilo que é a essência do pecado, a recusa de Deus, actuada sobretudo na apostasia e na idolatria; ou seja, no repúdio da fé na verdade revelada e na equiparação a Deus de certas realidades criadas, erigindo-as em ídolos ou falsos deuses. (87) Mas o Apóstolo, nessa mesma página, quer também pôr em evidência a certeza que provém para o cristão do facto de ser «nascido de Deus» pela vinda do Filho: há nele uma força que o preserva da queda no pecado; Deus guarda-o «e o Maligno não o toca». No caso de pecar por fraqueza ou ignorância, subsiste nele a esperança da remissão, também pelo apoio que lhe advém da oração feita em conjunto pelos irmãos.
Noutra página do Novo Testamento, no Evangelho de São Mateus, (88) o próprio Jesus fala duma «blasfémia contra o Espírito Santo», que é «irremissível», porque, nas suas manifestações, ela aparece como uma obstinada recusa de conversão ao amor do Pai das misericórdias.
Trata-se, é claro, de expressões extremas e radicais: rejeição de Deus, rejeição da sua graça e, portanto, oposição ao próprio princípio da salvação, (89) pela qual o homem parece fechar voluntariamente a si mesmo o caminho da remissão. Há que ter esperança, porém, que bem poucos queiram obstinar-se até ao fim nesta atitude de rebelião ou até de desafio a Deus, o qual, aliás, no seu amor misericordioso é maior do que o nosso coração, como nos ensina ainda São João. (90) Deus pode, de facto, vencer todas as nossas resistências psicológicas e espirituais, de tal modo que — como escreve Santo Tomás de Aquino — «não há que desesperar da salvação de ninguém nesta vida, consideradas a omnipotência e a misericórdia de Deus». (91)
Mas, diante do problema do embate de uma vontade rebelde com Deus infinitamente justo, não se pode deixar de nutrir sentimentos de salutar «temor e tremor», como sugere São Paulo; (92)e o aviso de Jesus sobre o pecado que não é «remissível» confirma a existência de culpas que podem trazer para o pecador, como pena, a «morte eterna».
À luz destes e de outros textos da Sagrada Escritura, os doutores e teólogos, os mestres espirituais e os pastores de almas distinguiram os pecados em mortais e veniais. Santo Agostinho, entre outros, fala de letalia ou mortifera crimina, opondo-os a venialia, levia ou quotidiana. (93) O significado que ele atribui a estes qualificativos influirá posteriormente no Magistério da Igreja. Depois dele seria Santo Tomás de Aquino a formular, nos termos mais claros que foi possível, a doutrina que se tornou constante na Igreja.
Na definição e distinção dos pecados mortais e veniais, não podia estar ausente para Santo Tomás e para a Teologia do pecado que nele se foi inspirar, a referência bíblica e, portanto, o conceito da morte espiritual. Segundo o Doutor Angélico, para viver espiritualmente, o homem deve permanecer em comunhão com o princípio supremo da vida, que é Deus, enquanto fim último de todo o seu ser e do seu agir. Ora o pecado é uma desordem perpetrada pelo homem contra este princípio vital. E quando, «por meio do pecado, a alma provoca uma desordem que vai até à separação do fim último — Deus — ao qual se encontra ligada pela caridade, então há pecado mortal; de outro modo, todas as vezes que a desordem fica aquém da separação de Deus, então o pecado é venial». (94) Por esta razão, o pecado venial não priva da graça santificante, da amizade com Deus, da caridade, nem, por conseguinte, da bem-aventurança eterna; ao passo que tal privação é exactamente consequência do pecado mortal.
Considerando o pecado, ademais, sob o aspecto da pena que implica, Santo Tomás com outros doutores, chama mortal ao pecado que, se não for remido, faz contrair uma pena eterna; venial, ao pecado que merece uma simples pena temporal (quer dizer, parcial e expiável na terra ou no Purgatório).
Se se atender, depois, à matéria do pecado, as ideias de morte, de ruptura radical com Deus, sumo bem, de desvio do caminho que leva a Deus ou de interrupção da caminhada em direcção a ele (tudo modos de definir o pecado mortal) conjugam-se com a ideia da gravidade do conteúdo objectivo; por isso, o pecado grave identifica-se praticamente, na doutrina e na acção pastoral da Igreja, com o pecado mortal.
Atingimos aqui o núcleo do ensino tradicional da Igreja, recordado muitas vezes e com vigor no decorrer do recente Sínodo. Este, de facto, não só reafirmou tudo aquilo que foi proclamado no Concílio de Trento sobre a existência e a natureza dos pecados mortais e veniais, (95) mas quis ainda lembrar que é pecado mortal aquele que tem por objecto uma matéria grave e que, conjuntamente, é cometido com plena advertência e consentimento deliberado. E impõe-se acrescentar — como se fez também no mesmo Sínodo — que alguns pecados, quanto à sua matéria, são intrinsecamente graves e mortais. Quer dizer, há determinados actos que, por si mesmos e em si mesmos, independentemente das circunstâncias, são sempre gravemente ilícitos, por motivo do seu objecto. Esses actos, se forem praticados com suficiente advertência e liberdade, são sempre culpa grave. (96)
Esta doutrina, fundamentada no Decálogo e na pregação do Antigo Testamento e retomada no kérigma dos Apóstolos, e que faz parte do mais antigo ensino que a Igreja tem vindo a repetir até hoje, tem uma comprovação cabal na experiência humana de todos os tempos. O homem sabe bem, por experiência, que na caminhada da fé e da justiça, que o leva ao conhecimento e ao amor de Deus nesta vida e à perfeita união com ele na eternidade, pode parar ou distrair-se, sem abandonar, no entanto, o rumo de Deus: neste caso há efectivamente pecado venial. Este, porém, não deverá ser atenuado, como se, automaticamente, se tratasse de algo que pudesse ser transcurado ou de um «pecado de pouca monta».
Sucede também que o homem igualmente sabe, por dolorosa experiência, que com um acto consciente e livre da sua vontade pode inverter a marcha, caminhar no sentido oposto à vontade de Deus e, desse modo, afastar-se dele (aversio a Deo), recusando a comunhão de amor com ele, afastando-se do princípio de vida que ele é, e escolhendo, por isso mesmo, a morte.
Com toda a tradição da Igreja, chamamos pecado mortal a este acto pelo qual um homem, com liberdade e advertência, rejeita Deus, a sua lei, a aliança de amor que Deus lhe propõe, preferindo voltar-se para si mesmo, para qualquer realidade criada e finita, para algo contrário ao querer divino (conversio ad creaturam). Isto pode acontecer de modo directo e formal, como nos pecados de idolatria, apostasia e ateísmo; ou de modo equivalente, como em todas as desobediências aos mandamentos de Deus em matéria grave. O homem sente que esta desobediência a Deus corta a ligação com o seu princípio vital: é um pecado mortal, ou seja, um acto que ofende gravemente a Deus e acaba por se voltar contra o próprio homem, com uma força obscura e potente de destruição.
Durante a Assembleia sinodal foi proposta por alguns Padres uma distinção tripartida entre os pecados, que haveriam de passar a ser classificados com veniais, graves e mortais. A tripartição poderia pôr em realce o facto de que entre os pecados graves existe uma gradação. Mas permanece sempre verdadeiro que a distinção essencial e decisiva é a que existe entre pecados que destroem a caridade e pecados que não matam a vida sobrenatural: entre a vida e a morte não há lugar para um meio termo.
De igual modo, há-de evitar-se reduzir o pecado mortal a um acto de «opção fundamental» contra Deus — como hoje em dia se costuma dizer — entendendo com isso um desprezo explícito e formal de Deus e do próximo. Dá-se, efectivamente, o pecado mortal também quando o homem, sabendo e querendo, por qualquer motivo escolhe alguma coisa gravemente desordenada. Com efeito, numa escolha assim já está incluído um desprezo do preceito divino, uma rejeição do amor de Deus para com a humanidade e para com toda a criação: o homem afasta-se a si próprio de Deus e perde a caridade. A orientação fundamental pode, pois, ser radicalmente modificada por actos particulares. Podem, sem dúvida, verificar-se situações muito complexas e obscuras sob o ponto de vista psicológico, que influem na imputabilidade subjectiva do pecador. Mas da consideração da esfera psicológica não se pode passar para a constituição de uma categoria teológica, como é precisamente a da «opção fundamental», entendendo-a de tal modo que, no plano objectivo, mudasse ou pusesse em dúvida a concepção tradicional do pecado mortal.
Se bem que sejam de apreciar todas as tentativas sinceras e prudentes de esclarecer o mistério psicológico e teológico do pecado, a Igreja tem no entanto o dever de recordar a todos os estudiosos desta matéria: a necessidade, por um lado, de serem fiéis à Palavra de Deus, que nos elucida também sobre o pecado; e, por outro, o risco que se corre de contribuir para atenuar ainda mais, no mundo contemporâneo, o sentido do pecado.
Perda do sentido do pecado
18. A partir do Evangelho lido na comunhão eclesial, a consciência cristã adquiriu, no decurso das gerações, uma fina sensibilidade e uma perspicaz percepção dos fermentos de morte que estão contidos no pecado; sensibilidade e capacidade de percepção, também para individuar tais fermentos nas mil formas assumidas pelo pecado, nos mil carizes com que ele se apresenta. É a isto que se costuma chamar o sentido do pecado.
Este sentido tem a sua raiz na consciência moral do homem e é como que o seu termómetro. Anda ligado ao sentido de Deus, uma vez que deriva da consciência da relação que o homem tem com o mesmo Deus, como seu Criador, Senhor e Pai. E assim como não se pode apagar completamente o sentido de Deus nem extinguir a consciência, também não se dissipa nunca inteiramente o sentido do pecado.
Entretanto, não raro no decurso da história, por períodos mais ou menos longos e sob o influxo de múltiplos factores, acontece ficar gravemente obscurecida a consciência moral em muitos homens. «Temos nós uma ideia justa da consciência?» - perguntava eu há dois anos num colóquio com os fiéis - «Não vive o homem contemporâneo sob a ameaça de um eclipse da consciência, de uma deformação da consciência e de um entorpecimento ou duma "anestesia" das consciências?». (97) Demasiados sinais indicam que no nosso tempo existe tal eclipse, tanto mais inquietante quanto esta consciência, definida pelo Concílio como «o núcleo mais secreto e o sacrário do homem», (98) anda «estreitamente ligada à liberdade do homem (...). Por isso, a consciência, com relevância principal, está na base da dignidade interior do homem e ao mesmo tempo, da sua relação com Deus». (99) é inevitável, portanto, que nesta situação fique obnubilado também o sentido do pecado, o qual está intimamente ligado à consciência moral, à procura da verdade e à vontade de fazer um uso responsável da liberdade. Conjuntamente com a consciência, fica também obscurecido o sentido de Deus, e então, perdido este decisivo ponto de referência interior, desaparece o sentido do pecado. Foi este o motivo por que o meu Predecessor Pio XII, com palavras que se tornaram quase proverbiais, pôde declarar um dia que «o pecado do século é a perda do sentido do pecado». (100)
Porquê este fenómeno no nosso tempo? Uma vista de olhos de algumas componentes da cultura contemporânea pode ajudar-nos a compreender a atenuação progressiva do sentido do pecado, exactamente por causa da crise da consciência e do sentido de Deus, acima realçada.
O «secularismo», que, pela sua própria natureza e definição, é um movimento de ideias e de costumes, o qual propugna um humanismo que abstrai de Deus totalmente, concentrado só no culto do empreender e do produzir e arrastado pela embriaguez do consumo e do prazer, sem preocupações com o perigo de «perder a própria alma», não pode deixar de minar o sentido do pecado. Reduzir-se-á este último, quando muito, àquilo que ofende o homem. Mas é precisamente aqui que se impõe a amarga experiência a que já aludia na minha primeira Encíclica; ou seja, que o homem pode construir um mundo sem Deus, mas esse mundo acabará por voltar-se contra o mesmo homem. (101) Na realidade, Deus é a origem e o fim supremo do homem e este leva consigo um gérmen divino. (102) Por isso, é a realidade de Deus, que desvenda e ilumina o mistério do homem. É inútil, pois, esperar que ganhe consistência um sentido do pecado, no que respeita ao homem e aos valores humanos, quando falta o sentido da ofensa cometida contra Deus, isto é, o verdadeiro sentido do pecado.
Desvanece-se este sentido do pecado na sociedade contemporânea também pelos equívocos em que se cai ao apreender certos resultados das ciências humanas. Com base nalgumas afirmações da psicologia, a preocupação de não tachar alguém como culpado nem pôr freio à liberdade leva a nunca reconhecer uma falta. Por indevida extrapolação dos critérios da ciência sociológica acaba-se — como já aludi — por descarregar sobre a sociedade todas as culpas, de que o indivíduo é declarado inocente. E uma certa antropologia cultural, por seu lado, à força de aumentar os condicionamentos e influxos ambientais e históricos, aliás inegáveis, que agem sobre o homem, limita-lhe tanto a responsabilidade que não lhe reconhece já a capacidade de fazer verdadeiros actos humanos e, por consequência, a possibilidade de pecar.
O sentido do pecado decai facilmente, ainda, sob a influência de uma ética que deriva dum certo relativismo historicista. Pode tratar-se da ética que relativiza a norma moral, negando o seu valor absoluto e incondicionado e negando, por consequência, que possam existir actos intrinsecamente ilícitos, independentemente das circunstâncias em que são realizados pelo sujeito. Trata-se de uma verdadeira «reviravolta e derrocada dos valores morais»; e «o problema não é tanto de ignorância da ética cristã», «mas sobretudo do sentido dos fundamentos e critérios das atitudes morais». (103) O efeito desta reviravolta ética é sempre também o de mitigar a tal ponto a noção de pecado, que se acaba quase por afirmar que o pecado existe, mas não se sabe quem o comete.
Esvai-se, por fim, o sentido do pecado quando — como pode acontecer no ensino aos jovens, nas comunicações de massa e na própria educação famíliar — esse sentido do pecado é erroneamente identificado com o sentimento morboso da culpa ou com a simples transgressão das normas e preceitos legais.
A perda do sentido do pecado, portanto, é uma forma ou um fruto da negação de Deus: não só da negação ateísta, mas também da negação secularista. Se o pecado é a interrupção da relação filial com Deus para levar a própria existência fora da obediência a ele devida, então pecar não é só negar Deus; pecar é também viver como se ele não existisse, bani-lo do próprio quotidiano. Um modelo de sociedade mutilado ou desequilibrado num ou noutro sentido, como é frequentemente veiculado pelos meios de comunicação, favorece bastante a progressiva perda do sentido do pecado. Em tal situação, o ofuscamento ou a debilitação do sentido do pecado resulta: seja da recusa de qualquer referência ao transcendente, em nome da aspiração à autonomia pessoal; seja da sujeição a modelos éticos impostos pelo consenso e costume generalizado, mesmo quando são condenados pela consciência individual; seja das dramáticas condições sócio-económicas, que oprimem grande parte da humanidade, causando a tendência para se verem erros e culpas apenas no âmbito do social; seja, por fim e sobretudo, do obscurecimento da ideia da paternidade de Deus e do seu domínio sobre a vida do homem.
Até mesmo no campo do pensamento e da vida eclesial, algumas tendências favorecem inevitavelmente o declínio do sentido do pecado. Alguns, por exemplo, tendem a substituir posições exageradas do passado por outros exageros; assim, da atitude de ver o pecado em toda a parte, passa-se a não o vislumbrar em lado nenhum; da demasiada acentuação do temor das penas eternas, à pregação dum amor de Deus, que excluiria toda e qualquer pena merecida pelo pecado; da severidade no esforço para corrigir as consciências erróneas, a um pretenso respeito pela consciência, até suprimir o dever de dizer a verdade. E por que não acrescentar que a confusão criada na consciência de muitos fiéis pelas divergências de opiniões e de ensinamentos na teologia, na pregação, na catequese e na direcção espiritual, acerca de questões graves e delicadas da moral cristã, acaba por fazer diminuir, quase até à sua extinção, o verdadeiro sentido do pecado? E não podem deixar-se em silêncio alguns defeitos na prática da Penitência sacramental: tal é a tendência a ofuscar o significado eclesial do pecado e da conversão, reduzindo-os a factos meramente individuais, ou vice-versa, a anular o valor pessoal do bem e do mal para considerar nestes exclusivamente a dimensão comunitária; tal é também o perigo, que nunca foi totalmente esconjurado, do ritualismo rotineiro, que tira ao Sacramento o seu significado pleno e a sua eficácia formativa.
Restabelecer o justo sentido do pecado é a primeira forma de combater a grave crise espiritual que impende sobre o homem do nosso tempo. Mas o sentido do pecado só se restabelecerá com uma chamada a atenção clara para os inderrogáveis princípios de razão e de fé, que a doutrina moral da Igreja sempre sustentou.
É lícito esperar que, sobretudo no mundo cristão eclesial, reaflore um salutar sentido do pecado. A isso levarão uma boa catequese, iluminada pela teologia bíblica da Aliança, a escuta atenta e o acolhimento confiante do Magistério da Igreja, que não cessa de proporcionar luz as consciências, e uma prática cada vez mais cuidada do Sacramento da Penitência.
CAPÍTULO SEGUNDO: «MYSTERIUM PIETATIS»
19. Para conhecer o pecado, era necessário fixarmos o olhar na sua natureza, tal como a revelação da economia da Salvação no-la deu a conhecer: ele é o mistério da iniquidade («mysterium iniquitatis»). Mas nesta economia o pecado não é protagonista nem, menos ainda, vencedor. Contrasta, antes, como antagonista, com um outro princípio operante, que — usando uma bela e sugestiva expressão de São Paulo — podemos chamar o mistério ou sacramento da piedade («mysterium», ou «sacramentum pietatis»). O pecado do homem seria vencedor e, por fim, destruidor, e o desígnio salvífico de Deus ficaria incompleto ou mesmo vencido, se este mistério da piedade não se tivesse inserido no dinamismo da história para vencer o pecado do homem.
Encontramos esta expressão numa das Cartas Pastorais de São Paulo, a primeira a Timóteo. Aparece aí, repentina, como por uma inspiração impetuosa! O Apóstolo, na verdade, consagrara em precedência longos parágrafos da sua mensagem ao discípulo predilecto, para explicar o significado da organização da comunidade (litúrgica e, ligada a esta, hierárquica); falara depois do papel dos chefes da comunidade, para se referir em seguida ao comportamento do próprio Timóteo na «Igreja do Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade». E depois, no final da passagem, evoca quase ex abrupto, mas com intuito profundo, aquilo que dá significado a tudo o que escrevera: «é grande, sem dúvida, o mistério da piedade...». (104)
Sem trair minimamente o sentido literal do texto, podemos alargar esta magnífica intuição teológica do Apóstolo a uma visão mais completa do papel que a verdade por ele anunciada tem na economia da Salvação. «é verdadeiramente grande — repitamos com o mesmo Apóstolo — o mistério da piedade», porque vence o pecado.
Mas o que é, na concepção paulina, esta «piedade»?
É o próprio Cristo
20. É profundamente significativo que, para apresentar este «mistério da piedade», São Paulo transcreva simplesmente, sem estabelecer uma ligação gramatical com o texto precedente, (105) três linhas de um Hino cristológico, que — segundo a opinião de autorizados estudiosos — era usado nas comunidades helénico-cristãs.
Com as palavras desse Hino, densas de conteúdo teológico e ricas de nobre beleza, esses cristãos do século primeiro professavam a sua fé no mistério de Cristo, pelo qual
- Ele se manifestou na realidade da carne humana e foi pelo Espírito Santo constituído como o Justo, que se oferece pelos injustos;
- Ele apareceu aos Anjos, tornado maior que eles, e foi pregado aos povos, como portador de salvação;
- Ele foi acreditado no mundo, como enviado do Pai, e pelo mesmo Pai assumido no céu, como Senhor. (106)
- O mistério ou sacramento da piedade, portanto, é o próprio mistério de Cristo, E, numa síntese bem densa, ele é o mistério da Encarnação e da Redenção, da plena Páscoa de Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria: mistério da sua paixão e morte, da sua ressurreição e glorificação. O que São Paulo, ao referir as frases do Hino, quis recordar foi que este mistério é o recôndito princípio vital que faz da Igreja a casa de Deus, a coluna e o fundamento da verdade. E na peugada do ensino paulino, nós podemos afirmar que este mesmo mistério da infinita piedade de Deus para connosco é capaz de penetrar até as raízes escondidas da nossa iniquidade, para suscitar na alma um movimento de conversão, para redimi-la, e fazê-la de vela em direcção à reconciliação.
Referindo-se sem dúvida a este mistério, também São João, com a sua linguagem característica, que é diversa da de São Paulo, pôde escrever que «aquele que nasceu de Deus, não peca»: o Filho de Deus salva-o e «o Maligno não o toca». (107) Nesta afirmação joanina há uma indicação de esperança, fundada sobre as promessas divinas: o cristão recebeu a garantia e as forças necessárias para não pecar. Não se trata, pois, de uma impecabilidade adquirida por virtude própria e, menos ainda, ínsita no homem, como pensavam os Gnósticos. É um resultado da acção de Deus. Para não pecar, o cristão dispõe do conhecimento de Deus, recorda São João nesta passagem. Mas, pouco antes, já tinha escrito: «Todo o que nasceu de Deus não comete pecado, porque habita nele uma semente divina». (108) Se por esta «semente de Deus» entendermos — como propõem alguns comentadores — Jesus, o Filho de Deus, então podemos dizer que para não pecar — ou para libertar-se do pecado — o cristão dispõe da presença em si do próprio Cristo e do mistério de Cristo, que é mistério de piedade.
O esforço do cristão
21. Mas há no mistério da piedade um outro aspecto: à piedade de Deus para com o cristão há-de corresponder a piedade do cristão para com Deus. Nesta segunda acepção, a piedade (eusébeia) significa exactamente o comportamento do cristão, que à piedade paterna de Deus corresponde com a sua piedade filial.
Também neste sentido podemos afirmar com São Paulo que «é grande o mistério da piedade»; e ainda, que esta piedade, qual força de conversão e de reconciliação, combate a iniquidade e o pecado. Neste caso, ainda, os aspectos essenciais do mistério de Cristo são objecto da piedade, enquanto o cristão acolhe o mistério, o contempla e a ele vai buscar a força espiritual necessária para modelar a sua vida segundo o Evangelho. Também aqui se deve dizer que «quem nasceu de Deus não comete pecado»; mas a expressão tem sentido imperativo: sustentado pelo mistério — e pelos mistérios — de Cristo, como por uma nascente interior de energia espiritual, o cristão é avisado para não pecar e, mais ainda, recebe o mandamento de não pecar: há-de comportar-se dignamente «na casa de Deus, que é a Igreja do Deus vivo», (109) sendo como é um filho de Deus.
Para una vida reconciliada
22. Assim a Palavra da Escritura, ao revelar-nos o mistério da piedade, abre a inteligência humana para a conversão e para a reconciliação, entendidas não como abstracções, mas como valores cristãos concretos a conquistar no dia a dia.
Insidiados pela perda do sentido do pecado, tentados, algumas vezes, pela ilusão bem pouco cristã de impecabilidade, também os homens de hoje precisam de ouvir de novo, como dirigida a cada um deles, pessoalmente, a advertência de São João: «Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós»; (110) e mais ainda, que «todo o mundo jaz sob o jugo do Maligno». (111) Cada um, pois, é convidado pela voz da Verdade divina a ler realisticamente na própria consciência e a confessar que foi gerado na iniquidade, como dizemos no Salmo Miserere. (112)
Ameaçados pelo medo e pelo desespero, os homens de hoje podem, no entanto, sentir-se consolados pela promessa divina, que os abre à esperança da plena reconciliação.
O mistério da piedade, da parte de Deus, é a misericórdia de que o Senhor e nosso Pai — repito-o mais uma vez — é infinitamente rico. (113) Como disse na Encíclica dedicada ao tema da misericórdia divina, (114) esta é um amor mais poderoso do que o pecado, mais forte do que a morte. Quando nos damos conta de que o amor que Deus nos dispensa não se detém diante do nosso pecado, não retrocede diante das nossas ofensas, mas se torna ainda mais solícito e generoso; quando nos apercebemos de que este amor chegou a causar a paixão e a morte do Verbo feito carne, que aceitou remir-nos pagando com o seu Sangue, então prorrompemos em reconhecimento: «Sim, o Senhor é rico em misericórdia», e dizemos mesmo: «O Senhor é misericórdia».
O mistério da piedade é o caminho aberto pela misericórdia divina à vida reconciliada.
TERCEIRA PARTE
A PASTORAL DA PENITÊNCIA E DA RECONCILIAÇÃO
Promoção da penitência e da reconciliação
23. Suscitar no coração do homem a conversão e a penitência e proporcionar-lhe o dom da reconciliação é a missão conatural da Igreja, como continuadora da obra redentora do seu divino Fundador. Trata-se de uma missão que não será cumprida só com algumas afirmações teóricas e com a proposta de um ideal ético não acompanhado por energias operativas; mas está destinada a expressar-se em funções ministeriais bem precisas, em ordem à prática concreta da penitência e da reconciliação.
A este ministério, fundado e iluminado pelos princípios de fé acima ilustrados, orientado para objectivos precisos e apoiado em meios adequados, podemos dar o nome de pastoral da penitência e da reconciliação. O seu ponto de partida é a convicção da Igreja, de que o homem, a quem se destinam todas as formas de pastoral, mas principalmente a pastoral da penitência e da reconciliação, é o homem marcado pelo pecado, retratado no exemplo significativo do rei David. Repreendido pelo profeta Natan, David aceita olhar de frente as suas próprias torpezas, confessando: «Pequei contra o Senhor». (115) E proclama: «Reconheço os meus pecados, tenho sempre diante de mim as minhas culpas». (116) Mas também suplica: «Purificai-me, Senhor, e ficarei limpo; lavai-me e ficarei mais branco do que a neve»; (117) e recebe a resposta da misericórdia divina: «O Senhor perdoou o teu pecado, não morrerás». (118)
A Igreja encontra-se, pois, diante do homem — de todo um mundo humano — ferido pelo pecado e por ele atingido naquilo que tem de mais íntimo, na profundidade do seu ser; mas, ao mesmo tempo, movido interiormente por um incontível desejo de libertação do pecado e também, especialmente se for cristão, consciente de que o mistério da piedade, Cristo Senhor, já está a actuar nele e no mundo com a força da Redenção.
A função reconciliadora da Igreja deve desenvolver-se, pois, segundo aquele nexo íntimo que cônjunge estreitamente o perdão e a remissão dos pecados de cada homem com a reconciliação plena e fundamental da humanidade, que foi realizada pela Redenção. Este nexo leva-nos a compreender que, sendo o pecado o princípio activo da divisão — divisão entre o homem e o Criador, divisão no coração e no ser do homem, divisão entre os indivíduos e entre os grupos humanos, divisão entre o homem e a natureza criada por Deus — só a conversão do pecado é capaz de operar uma reconciliação profunda e duradoura onde quer que a divisão tenha penetrado.
Não é necessário repetir tudo o que já disse a respeito da importância deste ministério da reconciliação (119) e da correspondente pastoral que o põe em prática na consciência e na vida da Igreja. Esta, de facto, falharia num aspecto essencial do seu ser e deixaria por realizar uma sua função inabdicável, se não apregoasse, com clareza e firmeza, a tempo e fora de tempo, a «palavra da reconciliação» (120) e não proporcionasse ao mundo o dom da reconciliação. Mas, convém repeti-lo, a importância do serviço eclesial da reconciliação estende-se para além das fronteiras visíveis da Igreja, ao mundo inteiro.
Falar de pastoral da penitência e da reconciliação, portanto, equivale a referir-se ao conjunto das tarefas de que a Igreja está incumbida, a todos os níveis, para a promoção de uma e outra. Mais concretamente, falar desta pastoral significa recordar todas as actividades práticas, mediante as quais a Igreja, em todas e cada uma das suas componentes — Pastores e fiéis, a todos os níveis e em todos os campos — e com todos os meios à sua disposição — palavra e acção, ensino e oração — procura levar os homens, individualmente ou em grupo, à verdadeira penitência e introduzi-los assim no caminho da plena reconciliação.
Os Padres do Sínodo, como representantes dos seus Irmãos Bispos, guias do povo que lhes está confiado, debruçaram-se sobre esta pastoral nos seus elementos mais práticos e concretos. E é para mim motivo de alegria fazer-me eco deles, associando-me as suas inquietudes e esperanças, acolhendo os frutos dos seus esforços de procura e experiências e encorajando-os nos seus planos e realizações. Que eles possam encontrar nesta parte da Exortação Apostólica a contribuição que deram para o Sínodo, cuja utilidade desejaria tornar extensiva, mediante estas páginas, à Igreja inteira.
Desejaria, pois, pôr em evidência o essencial da pastoral da penitência e da reconciliação, salientando nela, com a Assembleia do Sínodo, os dois pontos seguintes:
- Os meios usados e as vias seguidas pela Igreja para promover a penitência e a reconciliação,
- O Sacramento por excelência da penitência e da reconciliação.
CAPÍTULO PRIMEIRO: MEIOS E VIAS PARA A PROMOÇÃO
DA PENITÊNCIA E DA RECONCILIAÇÃO
24. Para promover a penitência e a reconciliação, a Igreja tem ao seu dispor dois meios, principalmente, que lhe foram confiados pelo seu próprio Fundador: a catequese e os Sacramentos. A utilização destes meios, considerada sempre pela Igreja plenamente conforme as exigências da sua missão salvífica e igualmente susceptível de corresponder as exigências e necessidades espirituais dos homens de todos os tempos, pode ser levada a efeito seguindo formas e modos antigos e novos, entre os quais será bom recordar, especialmente, o que, em continuidade com o meu Predecessor Paulo VI, podemos designar por método do diálogo.
O Diálogo
25. O diálogo é para a Igreja, em certo sentido, um meio e sobretudo um modo de desenvolver a sua acção no mundo contemporâneo.
De facto, o Concílio Vaticano II, depois de ter proclamado que «a Igreja, em virtude da missão que tem de iluminar todo o mundo com a mensagem evangélica e reunir num só Espírito todos os homens (...), torna-se sinal daquela fraternidade que permite e robustece um diálogo sincero», acrescenta que a mesma Igreja deve ser capaz de «estabelecer um diálogo cada vez mais frutuoso entre todos os que constituem o único Povo de Deus», (121) assim como de «estabelecer um diálogo com a sociedade humana». (122)
O meu Predecessor Paulo VI dedicou ao diálogo uma parte notável da sua primeira Encíclica Ecclesiam Suam, na qual o descreve e caracteriza significativamente como diálogo da salvação. (123)
Na verdade, a Igreja usa o método do diálogo para melhor conduzir os homens — aqueles que pelo Baptismo e a profissão de fé se reconhecem membros da comunidade cristã e aqueles que lhe são estranhos — à conversão e à penitência, pelos caminhos de uma profunda renovação da própria consciência e da própria vida à luz do mistério da Redenção e da Salvação, realizadas por Cristo e confiadas ao ministério da sua Igreja. O diálogo autêntico, por conseguinte, tem em vista, antes de mais, a regeneração de cada um, mediante a conversão interior e a penitência, sempre com profundo respeito pelas consciências e com a paciência e o processo gradual requeridos pelas condições dos homens do nosso tempo.
O diálogo pastoral, em vista da reconciliação, continua a ser hoje uma solicitude fundamental da Igreja em diversos âmbitos e a vários níveis.
Antes de mais, a Igreja promove um diálogo ecuménico, ou seja, um diálogo entre Igrejas e Comunidades eclesiais que se atêm à fé em Cristo, Filho de Deus e único Salvador, e um diálogo com as outras comunidades de homens que buscam a Deus e desejam estabelecer uma relação de comunhão com Ele.
Como base desse diálogo com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais e com as outras religiões, e como condição da sua credibilidade e eficácia, deve haver um sincero esforço de diálogo permanente e renovado no interior da própria Igreja católica. Esta tem a consciência de ser, por natureza, sacramento da comunhão universal de caridade; (124) mas também sabe que existem no seu seio tensões que correm o risco de se transformar em factores de divisão.
A exortação dorida e firme, feita a seu tempo pelo meu Predecessor, com vista ao Ano Santo de 1975, (125) continua válida ainda no momento actual. Para se obter a superação dos conflitos e fazer com que as normais tensões não resultem nocivas para a unidade da Igreja, é preciso que todos nos confrontemos com a Palavra de Deus e, postas de parte as próprias maneiras de ver subjectivas, procuremos a verdade onde ela se encontra, ou seja, na mesma Palavra divina e na interpretação autêntica que dela nos dá o Magistério da Igreja. Sob esta luz, a escuta recíproca, o respeito e a abstenção de todo o juízo apressado, a paciência, a capacidade de evitar que a fé, que une, seja subordinada as opiniões, as modas e as opções ideológicas, que dividem, são outras tantas qualidades de um diálogo que, no interior da Igreja, deve ser assíduo, cheio de boa vontade e sincero. E é claro que não o seria, nem se tornaria num factor de reconciliação, sem a atenção ao Magistério e a aceitação do mesmo.
Aplicada deste modo, efectivamente, na busca da sua própria comunhão interna, a Igreja católica pode dirigir o apelo à reconciliação - como de há tempos já vem fazendo - as outras Igrejas com as quais não se verifica plena comunhão, bem como as outras religiões e até mesmo a quem simplesmente procura Deus com coração sincero.
À luz do Concílio e do Magistério dos meus Predecessores, cuja preciosa herança recebi e me esforço por conservar e pôr em actuação, posso afirmar que a Igreja católica, com todas as suas componentes, se empenha com lealdade no diálogo ecuménico, sem optimismos fáceis, mas também sem desalento e sem hesitações ou perdas de tempo. As regras fundamentais que ela procura seguir nesse diálogo são: por um lado, a persuasão de que somente um ecumenismo espiritual — ou seja, fundado na oração comum e na comum docilidade ao único Senhor — permitirá corresponder sincera e seriamente as outras exigências da acção ecuménica; (126) e, por outro lado, a convicção de que um certo irenismo em matéria doutrinal e sobretudo dogmática, poderia talvez levar a um a forma de convivência superficial e não duradoura, mas nunca àquela comunhão profunda e estável que todos desejamos. Chegar-se-á a esta comunhão, no momento em que a divina Providência quiser; mas para se chegar lá, a Igreja católica, pelo que lhe diz respeito, sabe que deve estar aberta e sensível a todos «os valores verdadeiramente cristãos, que promanam do património comum e se encontram também entre os irmãos de nós separados»; (127) mas sabe igualmente que deve colocar na base de um diálogo leal e construtivo a clareza na posição dos problemas, a fidelidade e a coerência com a fé transmitida e definida na esteira da tradição perene pelo seu Magistério. Apesar da ameaça dum aparente derrotismo e malgrado a inevitável lentidão que a inconsideração não poderá nunca corrigir, a Igreja católica continua a procurar com todos os outros Irmãos cristãos as vias da unidade, e com os seguidores das outras religiões um diálogo sincero. Que este diálogo inter-religioso possa fazer chegar pelo menos à superação das atitudes de hostilidade, de desconfiança, de mútua condenação e quiçá de mútuas invectivas. Nisto está uma condição preliminar para que possamos encontrar-nos pelo menos na fé num Deus único e na certeza da vida eterna para a alma imortal. Que o Senhor faça, em particular, com que o diálogo ecuménico leve a uma sincera reconciliação centralizada em tudo aquilo que já possamos ter em comum com as outras Igrejas cristãs: a fé em Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, Salvador e Senhor, a escuta da Palavra, o estudo da Revelação e o sacramento da Baptismo.
Na medida em que a Igreja for capaz de suscitar a concórdia activa — a unidade na variedade — no seu próprio interior e de se apresentar como testemunha e humilde artífice de reconciliação nas relações com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais e com as outras religiões, ela tornar-se-á, segundo a expressiva definição de Santo Agostinho, «mundo reconciliado». (128) E então poderá ser sinal de reconciliação no mundo e para o mundo.
Com a consciência da imensa gravidade da situação criada pelas forças da divisão e da guerra, que constitui hoje uma séria ameaça, não só para o equilíbrio e a harmonia das Nações, mas também para a própria sobrevivência da humanidade, a Igreja sente-se no dever de oferecer e propor a sua colaboração específica para a superação dos conflitos e para o restabelecimento da concórdia.
Trata-se de um complexo e delicado diálogo de reconciliação, no qual a Igreja está empenhada, antes de mais, mediante a actividade da Santa Sé e dos seus diversos Organismos. A Santa Sé esforça-se quer por intervir junto dos governantes das Nações e dos responsáveis das várias Instituições internacionais, quer por associar-se a eles, dialogando com eles ou estimulando-os a um diálogo entre si, em favor da reconciliação no meio dos numerosos conflitos. E faz isto não com segundos fins ou interesses ocultos — dado que os não tem — mas «por uma preocupação humanitária», (129) pondo a sua estrutura institucional e a sua autoridade moral, absolutamente singulares, ao serviço da concórdia e da paz. Fá-lo na convicção de que, assim como «na guerra há duas facções que se levantam uma contra a outra», assim também «na questão da paz há sempre duas partes que necessariamente devem saber empenhar-se»; e nisto «se encontra o verdadeiro sentido do diálogo para a paz». (130)
No diálogo em favor da reconciliação, a Igreja também se empenha por intermédio dos Bispos, com a competência e a responsabilidade que lhes é própria, quer individualmente na orientação das respectivas Igrejas particulares, quer reunidos nas Conferências Episcopais, com a colaboração dos Presbíteros e de todas as componentes das Comunidades cristãs. Eles desempenham regularmente essas suas tarefas, quando promovem o diálogo que é indispensável e proclamam as exigências humanas e cristãs de reconciliação e de paz. Em comunhão com os seus Pastores, os leigos, que têm como «campo próprio da sua actividade evangelizadora o mundo vasto e complicado da politica, da realidade social e da economia (...), da vida internacional», (131) são chamados a empenhar-se directamente no diálogo ou em favor do diálogo para a reconciliação. Por intermédio deles, é ainda a Igreja que desenvolve a sua acção reconciliadora.
Na regeneração dos corações, mediante a conversão e a penitência, portanto, está o pressuposto fundamental e a base segura para toda e qualquer renovação social e para a paz entre as Nações.
Há que relembrar, por fim, que da parte da Igreja e dos seus membros, o diálogo, seja qual for a forma sob a qual ele se desenrole — e existem e podem existir formas muito diversas, pois o próprio conceito de diálogo tem valor analógico — não poderá nunca partir de uma atitude de indiferença em relação à verdade; mas tem de ser, sobretudo, uma apresentação da verdade, feita serenamente e com respeito pela inteligência e pela consciência dos outros. O diálogo da reconciliação não poderá nunca substituir ou atenuar o anúncio da verdade evangélica, que tem como objectivo preciso a conversão, abandonando o pecado, e a comunhão com Cristo e com a Igreja; mas deverá servir para a sua transmissão e realização, através dos meios deixados por Cristo à Igreja para a pastoral da reconciliação: a catequese e a Penitência.
A Catequese
26. Na vasta área em que a Igreja tem a missão de actuar com o instrumento do diálogo, a pastoral da penitência e da reconciliação dirige-se aos membros do corpo da Igreja, primeiro que tudo, por uma adequada catequese sobre as duas realidades distintas e complementares, as quais os Padres sinodais deram uma particular importância e que puseram em realce, em algumas das Propostas («Propositiones») conclusivas: a penitência e a reconciliação, precisamente. A catequese é, pois, o primeiro meio a utilizar.
Na base desta recomendação do Sínodo, tão oportuna, encontra-se um pressuposto fundamental: aquilo que é pastoral não se opõe ao doutrinal, e a acção pastoral não pode prescindir do conteúdo doutrinal; pelo contrário, a ele vai buscar a sua substância e a sua validade real. Ora, se a Igreja é «coluna e sustentáculo da verdade» (132) e está posta no mundo como Mãe e Mestra, como poderia ela descurar a tarefa de ensinar a verdade que constitui um caminho de vida?
Dos Pastores da Igreja espera-se, pois, antes de mais, uma catequese sobre a reconciliação. Esta não pode deixar de fundamentar-se no ensino bíblico, em especial no do Novo Testamento, sobre a necessidade de reconstituir a aliança com Deus em Cristo Redentor e Reconciliador; e, à luz desta nova comunhão e desta nova amizade e no seu prolongamento, sobre a necessidade de reconciliar-se com o irmão, mesmo à custa de ter de interromper a oferta do sacrifício. (133) Jesus insiste muito neste tema da reconciliação fraterna, quando, por exemplo, convida a oferecer a outra face a quem nos bateu, ou a deixar também a capa a quem já se apossou da túnica; (134) ou quando inculca a lei do perdão, que cada um recebe na medida em que sabe perdoar, (135) perdão a oferecer também aos inimigos, (136) perdão a conceder setenta vezes sete, (137) ou seja, na prática, sem limite algum. Com estas condições, que só são realizáveis num clima genuinamente evangélico, é possível uma verdadeira reconciliação, quer entre os indivíduos, quer entre as famílias, as comunidades, as Nações e os povos. Destes dados bíblicos sobre a reconciliação promanará, naturalmente, uma catequese teológica, que integrará também na sua síntese os dados da psicologia, da sociologia e das outras ciências humanas, os quais podem servir para esclarecer as situações, enquadrar bem os problemas e persuadir os ouvintes ou leitores a tomarem resoluções concretas.
Dos Pastores da Igreja espera-se, ainda, uma catequese sobre a penitência. Também aqui a riqueza da mensagem bíblica deve ser a fonte. Esta mensagem acentua na penitência, primeiro que tudo, o seu valor de conversão, termo com o qual se procura traduzir a palavra do texto grego metánoia, (138) que literalmente significa um reviramento do espírito para o fazer voltar-se para Deus. São estes, aliás, os dois elementos fundamentais que emergem da parábola do filho perdido e reencontrado: o «cair em si» (139) e a decisão de voltar para o pai. Não pode haver reconciliação sem estas atitudes primordiais de conversão, e a catequese deve explicá-las com conceitos e expressões adaptados as várias idades e as diversas condições culturais, morais e sociais.
Trata-se de um primeiro valor da penitência, que se prolonga no segundo: penitência significa também arrependimento. Os dois sentidos da metánoia aparecem na significativa norma dada por Jesus: «Se o teu irmão se arrepender ( = voltar a ti), perdoa-lhe. E se te ofender sete vezes ao dia e sete vezes voltar a ti, dizendo: "Estou arrependido", hás-de perdoar-lhe». (140) Uma boa catequese deverá mostrar que o arrependimento, assim como a conversão, bem longe de ser um sentimento superficial, é uma verdadeira reviravolta da alma.
Um terceiro valor está contido ainda na penitência; trata-se do movimento pelo qual as anteriores atitudes de conversão e arrependimento se manifestam externamente: é o fazer penitência. Este significado é bem perceptível no termo metánoia, como é usado pelo Precursor, segundo o texto dos Sinópticos. (141) Fazer penitência quer dizer, além do mais, restabelecer o equilíbrio e a harmonia alterados pelo pecado, mudar de direcção mesmo à custa de sacrifícios.
Em suma, uma catequese sobre a penitência, o mais completa e adequada possível, é impreterível, num tempo como o nosso, em que as atitudes dominantes na psicologia e nos comportamentos sociais contrastam abertamente com o tríplice valor que foi ilustrado: mais do que nunca, o homem contemporâneo parece encontrar dificuldade em reconhecer os seus próprios erros e em decidir voltar atrás para retomar o caminho exacto, fazendo uma rectificação de marcha; parece experimentar grande relutância em dizer: «arrependo-me» ou «tenho muita pena»; parece recusar instintivamente, e muitas vezes irresistivelmente, tudo aquilo que é penitência, no sentido do sacrifício aceito e praticado para se corrigir do pecado. A este respeito, desejo sublinhar que, embora mitigada de há algum tempo a esta parte, a disciplina penitencial da Igreja não pode ser abandonada sem grave prejuízo, quer para a vida interior dos cristãos e da comunidade eclesial, quer para a sua capacidade de irradiação missionária. Não é raro que alguns não-cristãos fiquem surpreendidos com o fraco testemunho de verdadeira penitência da parte dos discípulos de Cristo. É claro, de resto, que a penitência cristã será autêntica, se for inspirada pelo amor, e não pelo mero temor; se consistir num sério esforço para crucificar o «homem velho», a fim de que possa renascer o «novo», por obra de Cristo; se seguir como modelo o mesmo Cristo, que, embora fosse inocente, escolheu o caminho da pobreza, da paciência, da austeridade e, pode dizer-se, da vida penitente.
Dos Pastores da Igreja espera-se ainda — como recordou o Sínodo — uma catequese sobre a consciência e a sua formação. É um tema de viva actualidade, também este, visto que, no meio dos abalos a que está sujeita a cultura do nosso tempo, com muita frequência é agredido, posto à prova, perturbado e obscurecido esse santuário interior, ou seja, o eu mais íntimo do homem: a sua consciência. Para uma catequese sapiente sobre a consciência podem encontrar-se indicações preciosas, quer nos Doutores da Igreja, quer na teologia do Concílio Vaticano II e, especialmente, em dois dos seus Documentos: sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo (143) e sobre a Liberdade Religiosa. (143) Nesta mesma linha, o Sumo Pontífice Paulo VI pronunciou-se muitas vezes, para recordar a natureza e o papel da consciência na nossa vida. (144) Eu próprio, seguindo as suas pegadas, não deixo passar ocasião alguma para fazer luz sobre esta altíssima componente da grandeza e dignidade do homem, (145) sobre esta «espécie de sentido moral, que nos leva a distinguir o bem do mal (...), como que os olhos da alma, capacidade visual do espírito, em condições de guiar os nossos passos no caminho do bem; e insisto na necessidade de «formar cristãmente a própria consciência pessoal», a fim de esta não se tornar «numa força destruidora da humanidade verdadeira (da pessoa), mas ser sempre o lugar sagrado onde Deus lhe revela o seu verdadeiro bem». (146)
Também se espera que a catequese dos Pastores da Igreja incida sobre outros pontos, de não menor relevância para a reconciliação:
- Sobre o sentido do pecado, que — como disse — não pouco se tem vindo a atenuar no nosso mundo.
- Sobre a tentação e as tentações: o próprio Senhor Jesus, Filho de Deus, «provado em tudo, à nossa semelhança, excepto no pecado», (147) quis ser tentado pelo Maligno, (148) para indicar que, assim como ele, também os seus discípulos seriam submetidos à tentação; e, ainda, para mostrar como é necessário comportar-se na tentação. Para quem implora do Pai não ser tentado acima das próprias forças (149) e não sucumbir à tentação, (150) para quem não se expõe as ocasiões de pecado, o facto de ser submetido à tentação não significa ter pecado; mas é, prevalentemente, uma ocasião para crescer na fidelidade e na coerência, pela humildade e pela vigilância.
- Sobre o jejum: este pode praticar-se em formas antigas e novas, como sinal de conversão, de arrependimento e de mortificação pessoal; e, ao mesmo tempo, sinal de união com Cristo crucificado e de solidariedade com os que passam fome e que sofrem.
- Sobre a esmola: trata-se de um meio para tornar efectiva a caridade, partilhando aquilo que se possui com aqueles que sofrem as consequências da pobreza.
- Sobre o nexo íntimo que concatena a superação das divisões no mundo com a comunhão plena com Deus e entre os homens, finalidade escatológica da Igreja.
- Sobre as circunstâncias concretas em que a reconciliação (na família, na comunidade civil, nas estruturas sociais) se deve realizar; e, particularmente, sobre as quatro reconciliações que consertam as quatro fracturas fundamentais: reconciliação do homem com Deus, consigo mesmo, com os irmãos e com o mundo criado.
E a Igreja não pode omitir, ainda, sem grave mutilação da sua mensagem essencial, uma constante catequese sobre as realidades que a linguagem cristã tradicional designa como os quatro novíssimos do homem: morte, juízo (particular e universal), inferno e paraíso. Numa cultura que tende a encerrar o homem nas suas vicissitudes terrestres, mais ou menos bem sucedidas, aos Pastores da Igreja é solicitada uma catequese que abra e ilumine, com as certezas da fé, o além da vida presente: para lá das misteriosas portas da morte, delineia-se uma eternidade de alegria na comunhão com Deus, ou de pena no afastamento d'Ele. Somente nesta visão escatológica é possível ter a medida exacta do pecado e sentir-se resolutamente impelido para a penitência e a reconciliação.
Não faltarão nunca aos Pastores de almas zelosos e dotados de inventiva as ocasiões para ministrar esta catequese assim, ampla e variada, tendo em conta a diversidade de cultura e de formação religiosa daqueles a quem se dirigem. Com frequência, proporcionam essas ocasiões as próprias leituras bíblicas e os ritos da Santa Missa e dos outros Sacramentos, bem como as próprias circunstâncias em que estes são celebrados. Muitos outras iniciativas podem ser tomadas com o mesmo objectivo, tais como: pregações, palestras, debates, encontros e cursos de cultura religiosa, etc., o que já sucede em muitas partes. Desejo aqui assinalar, em especial, a importância e a eficácia, que revestem para uma tal catequese, as antigas missões populares. Se forem adaptadas as peculiares exigências do nosso tempo, elas podem ser, hoje como ontem, um válido instrumento de educação na fé, também pelo que diz respeito ao sector da penitência e da reconciliação.
Dada a grande importância que tem a reconciliação, fundada sobre a conversão, no campo delicado da relações humanas e da convivência social a todos os níveis, incluindo o internacional, não pode faltar à catequese o precioso contributo da doutrina social da Igreja. O atento e preciso ensino dos meus Predecessores, a partir do Papa Leão XIII, ao qual veio unir-se a contribuição substanciosa da Constituição pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II e juntar-se a dos vários Episcopados, solicitados por diversas circunstâncias dos respectivos países, constitui um vasto e sólido corpo de doutrina a respeito das múltiplas exigências inerentes à vida da comunidade humana, as relações entre os indivíduos, famílias e grupos nos seus diversos âmbitos, e à própria constitução de uma sociedade que queira ser coerente com a lei moral, que é fundamento da civilização.
Na base deste ensino social da Igreja encontra-se, obviamente, a luz que ela vai buscar à Palavra de Deus: a respeito dos direitos e deveres dos indivíduos, da família e da comunidade; a respeito do valor da liberdade e das dimensões da justiça; a respeito do primado da caridade; a respeito da dignidade da pessoa humana e das exigências do bem comum, que deve ser tido em vista pela política e pela própria economia. É sobre estes princípios fundamentais do magistério social, que confirmam e reapresentam os ditames universais da razão e da consciência dos povos que se apoia, em grande parte, a esperança duma solução pacífica de tantos conflitos sociais e, em definitivo, da reconciliação universal.
Os Sacramentos
27. O segundo meio de instituição divina, que é oferecido pela Igreja à pastoral da penitência e da reconciliação, é constituído pelos Sacramentos.
No misterioso dinamismo dos Sacramentos, tão rico de simbolismos e de conteúdos, é possível perceber um aspecto nem sempre posto em realce: cada um deles, além da sua graça própria, é também sinal de penitência e reconciliação; e, por isso, em cada um deles, é possível reviver estas dimensões espirituais.
O Baptismo é, certamente, uma ablução salvífica que — como diz São Pedro — tem valor «não (como) purificação das impurezas do corpo, mas pela que consiste em pedir a Deus uma boa consciência». (151) é morte, sepultura e ressurreição com Cristo, morto, sepultado e ressuscitado. (152) é dom do Espírito Santo por intermédio de Cristo. (153) Mas esta dimensão constitutiva essencial e original do Baptismo, longe de eliminar, enriquece o elemento penitencial já presente no baptismo que o próprio Jesus recebeu de João «para se cumprir toda a justiça»: (154) um facto, portanto, de conversão e reintegração na justa ordem das relações com Deus, de reconciliação com Deus, com o apagamento da mancha original e a consequente inserção na grande família dos reconciliados.
Paralelamente, o Crisma, também como confirmação do Baptismo e, juntamente com ele, como Sacramento de iniciação, ao conferir a plenitude do Espírito Santo e ao encaminhar a vida cristã à idade adulta, significa e realiza, por isso exactamente, uma maior conversão do coração e uma mais íntima e efectiva inserção na assembleia dos reconciliados, que é a Igreja de Cristo.
A definição que dá Santo Agostinho da Eucaristia, como sacramento de piedade, sinal de unidade e vínculo da caridade («sacramentum pietatis, signum unitatis, vinculum caritatis»), (155) põe em evidência os efeitos de santificação pessoal (piedade) e de reconciliação comunitária (unidade e caridade), que derivam da própria essência do Mistério eucarístico, como renovação incruenta do sacrifício da Cruz e fonte de salvação e de reconciliação para todos os homens. É necessário, todavia, recordar que a Igreja, guiada pela fé neste augusto Sacramento, ensina que nenhum fiel cristão, consciente de estar em pecado grave, pode receber a Eucaristia sem ter obtido antes o perdão de Deus. Assim se lê na Instrução Eucharisticum Mysterium, a qual, devidamente aprovada pelo Papa Paulo VI, confirma todo o ensino do Concílio de Trento: «a Eucaristia há-de ser proposta aos fiéis "como antídoto que nos liberta das culpas de cada dia e nos preserva dos pecados mortais", e seja-lhes indicada a maneira conveniente para se utilizarem das partes penitênciais da liturgia da Missa. "A quem quiser comungar, seja recordado... o preceito: examine-se cada qual a si mesmo (1 Cor 11, 28). E a prática da Igreja demonstra que esse exame é necessário, para que ninguém, consciente de estar em pecado mortal, por mais contrito que se julgue, se aproxime da Sagrada Eucaristia antes da Confissão sacramental". E se alguém vier a encontrar-se em caso de necessidade e não tiver a possibilidade de se confessar, faça antes (de comungar) um acto de contrição perfeita». (156)
O Sacramento da Ordem destina-se a dar à Igreja os Pastores, os quais, além de mestres e guias, são chamados a ser também testemunhas e operadores de unidade, construtores da família de Deus, defensores e preservadores da comunhão desta família contra os fermentos de divisão e de dispersão.
O Sacramento do Matrimónio, exaltação do amor humano sob a acção da graça, é sinal, sim, do amor de Cristo pela Igreja, mas também da vitória que Ele concede aos esposos obterem sobre as forças que deformam e destroem o amor, de tal forma que a família, nascida deste Sacramento, se torna sinal também da Igreja reconciliada e reconciliadora, para um mundo reconciliado em todas as suas estruturas e instituições.
Por fim, a Unção dos Enfermos, na provação da doença e da velhice, especialmente na hora derradeira do cristão, é sinal da definitiva conversão ao Senhor, bem como da total aceitação da dor e da morte como penitência pelos pecados. E nisto actua-se a suprema reconciliação com o Pai.
Entre os Sacramentos, porém, há um, que, muito embora frequentemente chamado confissão, por motivo da acusação dos pecados que nele se faz, mais propriamente pode considerar-se o Sacramento da Penitência por antonomásia, como de facto se chama; e, por isso, é o Sacramento da conversão e da reconciliação. Foi deste Sacramento que a recente Assembleia do Sínodo tratou, em particular, dada a importância que ele tem para a reconciliação.
CAPÍTULO SEGUNDO: O SACRAMENTO DA PENITÊNCIA
E DA RECONCILIAÇÃO
28. Em todas as fases e a todos os níveis do seu decurso, o Sínodo considerou com a máxima atenção aquele sinal sacramental que representa e ao mesmo tempo realiza a penitência e a reconciliação. Este Sacramento não esgota em si mesmo, certamente, os conceitos de conversão e reconciliação. A Igreja, de facto, desde as suas origens, conhece e valoriza numerosas e variadas formas de penitência: algumas litúrgicas ou paralitúrgicas, que vão do acto penitencial da Missa as funções propiciatórias e as peregrinações; outras, de carácter ascético, como o jejum. No entanto, de todos esses actos nenhum é mais significativo, mais divinamente eficaz e mais elevado e ao mesmo tempo acessível no seu rito, do que o Sacramento da Penitência.
Desde a sua preparação e, sucessivamente, nas numerosas intervenções que se sucederam no seu decorrer, nos trabalhos de grupo e nas Propostas («Propositiones») finais, o Sínodo teve em conta a afirmação pronunciada muitas vezes em tons diversos e com diverso conteúdo: o Sacramento da Penitência está em crise; e desta crise tomou a devida nota. Recomendou uma aprofundada catequese, mas também, uma não menos aprofundada análise de carácter teológico, histórico, psicológico, sociológico e jurídico acerca da penitência em geral e do Sacramento da Penitência em particular. Com tudo isso teve a intenção de esclarecer os motivos da crise e abrir caminhos no sentido de uma sua solução positiva, para benefício da humanidade. Entretanto, do próprio Sínodo a Igreja recebeu uma confirmação clara da sua fé no que respeita ao Sacramento, pelo qual é dada a cada cristão e a toda a comunidade dos fiéis a certeza do perdão graças ao poder do Sangue redentor de Cristo.
É bom renovar e reafirmar esta fé num momento em que poderia debilitar-se, perder algo da sua integridade ou entrar numa zona de penumbra e de silêncio, ameaçada como se encontra pela já mencionada crise, no que ela tem de negativo. Insidiam, de facto, o Sacramento da Confissão: por um lado, o obscurecimento da consciência moral e religiosa, a atenuação do sentido do pecado, a adulteração do conceito do arrependimento, a escassa propensão para uma vida autenticamente cristã; por outro lado, a mentalidade, as vezes difundida, de que se poderia obter o perdão directamente de Deus, mesmo de modo ordinário, sem receber o Sacramento da Reconciliação, bem como a rotina de uma prática sacramental algumas vezes destituída de verdadeiro fervor e sem espontaneidade espiritual, originada, talvez, por uma consideração errada e degenerada dos efeitos do Sacramento.
Convém, portanto, recordar os principais aspectos deste grande Sacramento.
«A quem perdoardes»
29. O primeiro dado fundamental é-nos proporcionado pelos Livros sagrados do Antigo e do Novo Testamento, no que diz respeito à misericórdia do Senhor e ao seu perdão. Nos Salmos e na pregação dos Profetas o nome de misericordioso é talvez o que mais frequentemente se atribui ao Senhor, em oposição ao persistente cliché, segundo o qual o Deus do Antigo Testamento é apresentado sobretudo como severo e punidor. Assim, nos Salmos, um longo discurso sapiencial, remontando à tradição do êxodo, reevoca a acção benigna de Deus no meio do seu povo. Tal acção, apesar da sua representação antropomórfica, é talvez uma das mais eloquentes proclamações vetero-testamentárias da misericórdia divina. Basta aqui recordar o versículo: «E Ele, misericordioso, perdoava-lhes a falta e não os exterminava; antes, muitas vezes conteve a sua cólera e não deixou acender-se o seu furor, recordando que eram simples carne, sopro que se esvai e não volta». (157)
Na plenitude dos tempos, o Filho de Deus, vindo como o Cordeiro que tira e carrega sobre si o pecado do mundo, (158) aparece como aquele que tem poder, quer de julgar, (159) quer de perdoar os pecados (160) e que veio não para condenar, mas para perdoar e salvar. (161)
Ora este poder de perdoar os pecados Jesus confere-o, mediante o Espírito Santo, a simples homens, sujeitos também eles próprios à insídia do pecado, isto é, aos seus Apóstolos: «Recebei o Espírito Santo: a quem perdoardes os pecados ficar-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes ficar-lhes-ão retidos».(162) Esta é uma das mais formidáveis novidades evangélicas! Jesus confere tal poder aos Apóstolos também como transmissível — assim o entendeu a Igreja desde o seu dealbar — aos seus sucessores, investidos pelos mesmos Apóstolos na missão e na responsabilidade de continuar a sua obra de anunciadores do Evangelho e de ministros da obra redentora de Cristo.
Aqui aparece em toda a sua grandeza a figura do ministro do Sacramento da Penitência, chamado, por antiquíssimo costume, o confessor.
Como no altar onde celebra a Eucaristia e como em cada um dos Sacramentos, o Sacerdote, ministro da Penitência, age «in persona Christi». O mesmo Cristo, por ele tornado presente e que por meio dele actua o mistério da remissão dos pecados, é Aquele que aparece como irmão do homem, (163) pontífice misericordioso, fiel e cheio de compaixão, (164) pastor decidido a procurar a ovelha perdida, (165) médico que cura e conforta, (166) mestre único que ensina a verdade e indica os caminhos de Deus, (167) juiz dos vivos e dos mortos, (168) que julga segundo a verdade e não segundo as aparências. (169)
Trata-se, sem dúvida, do ministério mais difícil e delicado, do mais cansativo e exigente; mas também de um dos mais belos e consoladores ministérios do Sacerdote; e, precisamente por isto, atendendo à vigorosa chamada do Sínodo, nunca me cansarei de pedir aos meus Irmãos, Bispos e Presbíteros, o seu fiel e diligente desempenho. (170)
Perante a consciência do fiel, que a ele se abre, com um misto de tremor e de confiança, o confessor é chamado a uma tarefa sublime que é serviço à causa da penitência e da reconciliação humana: conhecer as fraquezas e as quedas, de um determinado fiel, avaliar o seu desejo de recuperação e os esforços para a conseguir, discernir a acção do Espírito santificador no seu coração, comunicar-lhe o perdão que só Deus pode conceder, «celebrar» a sua reconciliação com o Pai representada na parábola do filho pródigo, reinserir esse pecador resgatado na comunhão eclesial com os irmãos e advertir paternalmente esse penitente com um firme, encorajador e amigável «doravante não tornes a pecar». (171)
Para o exercício eficaz de tal ministério, o confessor tem de possuir necessariamente qualidades humanas de prudência, discreção, discernimento e firmeza temperada pela mansidão e bondade. Deve ter, ainda, séria e cuidada preparação, não fragmentária mas integral e harmónica, nos diversos ramos da teologia, na pedagogia e na psicologia, na didáctica catequética, na metodologia do diálogo e, sobretudo, no conhecimento vivo e comunicativo da Palavra de Deus. Mas é mais necessário ainda que ele viva uma vida espiritual intensa e genuína. Para guiar os outros pelos caminhos da perfeição cristã, o ministro da Penitência deve percorrer, ele próprio, primeiro, este caminho; e mais com obras do que com palavras exuberantes, dar mostras de real experiência da oração vivida, de prática das virtudes evangélicas teologais e morais, de fiel obediência à vontade de Deus, de amor à Igreja e de docilidade ao seu Magistério.
Todo este aparato de dotes humanos, de virtudes cristãs e de capacidades pastorais não se improvisa nem se adquire sem esforço. Para o ministério da Penitência sacramental cada Sacerdote deve ser preparado desde os anos do Seminário: juntamente com o estudo da teologia dogmática, moral, espiritual e pastoral (que são sempre uma só teologia), com as ciências do homem e com a metodologia do diálogo e, especialmente, do colóquio pastoral. Há-de, ainda, ser iniciado e amparado nas primeiras experiências. Deverá cuidar sempre do próprio aperfeiçoamento e actualização, com o estudo permanente. Que tesouros de graça, de verdadeira vida e de irradiação espiritual não adviriam à Igreja, se cada Sacerdote se mostrasse cuidadoso em nunca faltar, por negligência ou desculpas várias, ao encontro com os fiéis no confessionário e tivesse ainda maior cuidado de nunca aí se sentar sem preparação, ou sem as indispensáveis qualidades humanas e condições espirituais e pastorais!
A este propósito não posso deixar de evocar, com devota admiração, as figuras de extraordinários apóstolos do confessionário, como São João Nepomuceno, São João Maria Vianney, São José Cafasso e São Leopoldo de Castelnuovo, para falar só de alguns mais conhecidos, que a Igreja inscreveu no album dos seus Santos. Mas desejo igualmente prestar homenagem à inumerável pléiade de confessores santos e quase sempre anónimos, aos quais se ficou a dever a salvação de tantas almas, por eles ajudadas na conversão, na luta contra o pecado e as tentações, no progresso espiritual e, em definitivo, na santificação. Não hesito em afirmar que os grandes Santos canonizados sairam geralmente desses confessionários e, com os Santos, o património espiritual da Igreja e o próprio florescimento de uma civilização impregnada de espírito cristão! Honra seja, portanto, a este silencioso exército de irmãos nossos, que bem serviram e servem cada dia a causa da reconciliação, mediante o ministério da Penitência sacramental!
O Sacramento do Perdão
30. Pela revelação do valor deste ministério e do poder de perdoar os pecados, conferido por Cristo aos Apóstolos e aos seus sucessores, desenvolveu-se na Igreja a consciência do sinal do perdão, concedido mediante o Sacramento da Penitência; ou seja, a certeza, de que o próprio Senhor Jesus instituíu e confiou à Igreja — qual dom da sua benignidade e da sua «filantropía», (172) a proporcionar a todos os homens — um especial Sacramento para a remissão dos pecados cometidos depois do Baptismo.
A prática deste Sacramento, pelo que se refere à sua celebração e à sua forma, conheceu um longo processo de desenvolvimento, como atestam os mais antigos sacramentários, as actas dos Concílios e dos Sínodos episcopais, a pregação dos Padres e o ensino dos Doutores da Igreja Mas quanto à substância do Sacramento, permaneceu sempre sólida e imutável, na consciência da Igreja, a certeza de que, por vontade de Cristo, o perdão é oferecido a cada um por meio da absolvição sacramental, dada pelos ministros da Penitência; esta certeza é reafirmada com particular vigor, quer pelo Concílio de Trento, (173) quer pelo Concílio Vaticano II: «Aqueles que se aproximam do Sacramento da Penitência recebem da misericórdia de Deus o perdão das ofensas que lhe fizeram e, ao mesmo tempo, reconciliam-se com a Igreja, à qual infligiram uma ferida com o pecado: a Igreja que coopera na sua conversão com a caridade, com o exemplo e a oração». (174) E como dado essencial da fé sobre o valor e a finalidade da Penitência deve reafirmar-se que «o nosso Salvador Jesus Cristo instituiu na sua Igreja o Sacramento da Penitência, para que os fiéis caidos no pecado depois do Baptismo recebessem a graça e se reconciliassem com Deus». (175)
A fé da Igreja neste Sacramento comporta algumas outras verdades fundamentais, que são ineludíveis. O rito sacramental da Penitência, na sua evolução e variação de formas práticas, sempre conservou e realçou claramente essas verdades. O Concílio Vaticano II, ao prescrever a reforma deste rito, tinha em vista fazer com que ele exprimisse ainda com mais clareza tais verdades, (176) o que se verificou com o novo Ritual da Penitência. (177) Este, de facto, assumiu na sua integridade a doutrina da tradição coligida pelo Concílio de Trento, transferindo-a do seu particular contexto histórico (o de um esforço corajoso de esclarecimento doutrinal, defronte aos graves desvios em relação ao genuino ensino da Igreja) para a traduzir fielmente em termos mais adequados ao contexto do nosso tempo.
Algumas convicções fundamentais
31. As menciondas verdades, reafirmadas com energia e clareza pelo Sínodo e presentes nas Propostas («Propositiones»), podem resumir-se nas convicções de fé, que a seguir enuncio e à volta das quais se reúnem todas as outras afirmações da doutrina católica sobre o Sacramento da Penitência.
I. A primeira convicção é que, para um cristão, o Sacramento da Penitência é a via ordinária para obter o perdão e a remissão dos seus pecados graves cometidos depois do Baptismo. O divino Salvador e a sua acção salvífica, certamente, não estão ligados a um sinal sacramental, de maneira a não poderem em qualquer tempo e circunstância da história da salvação agir fora e acima dos Sacramentos. Mas na escola da fé aprendemos que o mesmo Salvador quis e dispôs que os humildes e preciosos Sacramentos da fé sejam ordinariamente os meios eficazes, pelos quais passa e opera o seu poder redentor. Seria portanto insensato, além de presunçoso, querer prescindir arbitrariamente dos instrumentos de graça e de salvação que o Senhor dispôs e, no caso específico, pretender receber o perdão, pondo de lado o Sacramento, instituído por Cristo exactamente para o perdão. A renovação dos ritos, levada a efeito depois do Concílio, não deixa margem para qualquer confusão ou alteração neste sentido. A mesma renovação devia e deve servir, segundo a intenção da Igreja, para suscitar em cada um de nós um novo impulso para a renovação da nossa atitude interior, ou seja, para a compreensão mais profunda da natureza do Sacramento da Penitência; para um seu acolhimento mais repassado de fé, não ansioso mas confiante; para uma maior frequência do Sacramento, que se apresenta totalmente impregnado pelo amor misericordioso do Senhor.
II. A segunda convicção diz respeito à função do Sacramento da Penitência para aqueles que a ele recorrem. Segundo a mais antiga concepção da Tradição trata-se de uma espécie de acto judicial; mas este acto decorre junto de um tribunal mais de misericórdia, do que de estrita e rigorosa justiça, pelo que não é comparável aos tribunais humanos, (178) senão por analogia; ou seja, na medida em que o pecador aí descobre os seus pecados e a sua própria condição de criatura sujeita ao pecado; se compromete a renunciar e a combater o pecado; aceita a pena (penitência sacramental) que o confessor lhe impõe e dele recebe a absolvição.
Ao reflectir, porém, sobre a função deste Sacramento, a consciência da Igreja vislumbra nele, além do carácter judicial, no sentido acima aludido, um carácter terapêutico ou medicinal. E isto relaciona-se com o facto, frequente no Evangelho, da apresentação de Cristo como médico, (179) enquanto a sua obra redentora é muitas vezes chamada, desde a antiguidade cristã, «remédio da salvação» («medicina salutis»). «Eu quero curar, não acusar», dizia Santo Agostinho, referindo-se ao exercício da pastoral penitêncial, (180) e é graças ao remédio da confissão que a experiência do pecado não degenera em desespero. (181) O Ritual da Penitência alude a este aspecto medicinal do Sacramento, (182) ao qual o homem contemporâneo é talvez mais sensível, vendo no pecado o que ele comporta de erro, obviamente, e mais ainda aquilo que ele indica relacionado com a fraqueza e enfermidade humanas.
Tribunal de misericórdia ou lugar de cura espiritual, sob ambos os aspectos o Sacramento exige um conhecimento do íntimo do pecador, para o poder julgar e absolver, para tratar dele e o curar. E precisamente por isto, implica, da parte do penitente, a acusação sincera e completa dos pecados, que tem assim uma razão de ser, não só inspirada em fins ascéticos (como exercício de humildade e de mortificação), mas inerente à própria natureza do Sacramento.
III. A terceira convicção que desejo aqui salientar, diz respeito as realidades ou partes que compõem o sinal sacramental do perdão e da reconciliação. Algumas destas realidades são actos do penitente, de importância diversa, mas cada um deles indispensável ou para a validade ou para a integridade ou para o fruto do sinal.
Uma condição indispensável, primeiro que tudo, é a rectidão e a limpidez da consciência do penitente. Um homem não se põe a caminho para uma verdadeira e genuína penitência, enquanto não perceber que o pecado contrasta com a norma ética, inscrita no íntimo do próprio ser; (183) enquanto não reconhecer ter feito a experiência pessoal e responsável de uma tal oposição; enquanto não disser não apenas «o pecado existe», mas «eu pequei»; enquanto não admitir que o pecado introduziu na sua consciência uma divisão, que avassala todo o seu ser e o separa de Deus e dos irmãos. O sinal sacramental desta limpidez da consciência é o acto tradicionalmente chamado exame de consciência, acto que deveria ser sempre, não tanto uma introspecção psicológica ansiosa, mas o confronto sincero e sereno com a lei moral interior, com as normas evangélicas propostas pela Igreja, com o próprio Jesus Cristo, que é para nós mestre e modelo de vida e com o Pai celeste que nos chama ao bem e à perfeição. (184)
Mas o acto essencial da Penitência, da parte do penitente, é a contrição, ou seja, um claro e decidido repúdio do pecado cometido, juntamente com o propósito de não o tornar a cometer, (185) pelo amor que se tem a Deus e que renasce com o arrependimento. Entendida deste modo a contrição é, pois, o princípio e a alma da conversão, daquela metánoia evangélica que reconduz o homem a Deus, como o filho pródigo que volta ao pai, e que tem no Sacramento da Penitência o seu sinal visível e aperfeiçoador da própria atrição. Por isso, «desta contrição do coração depende a verdade da penitência». (186)
Supondo e chamando a atenção para tudo aquilo que a Igreja, inspirada pela palavra de Deus, ensina acerca da contrição, está-me particularmente a peito, neste ponto, salientar um aspecto de tal doutrina, para que seja melhor conhecido e mais tido presente. Não raro se considera a conversão e a contrição sob o aspecto das inegáveis exigências que elas comportam e da mortificação que impõem em ordem a uma radical mudança de vida. Mas é bom recordar e acentuar que contrição e conversão são, sobretudo, uma aproximação da santidade de Deus, um reencontro da própria verdade interior, obscurecida e transtornada pelo pecado , um libertar-se no mais profundo de si próprio e, por isso, um reconquistar a alegria perdida, a alegria de ser salvado, (187) que a maioria dos homens do nosso tempo já não sabe saborear.
Compreende-se, assim, que desde os primeiros tempos cristãos, em ligação com os Apóstolos e com Cristo, a Igreja tenha incluído no sinal sacramental da Penitência a acusação dos pecados. Esta aparece como tão relevante que, desde há séculos, o nome usual do Sacramento foi e é ainda agora o de confissão. Acusar os próprios pecados é exigido, antes de mais, pela necessidade do pecador ser conhecido por aquele que no Sacramento exerce o papel de juiz, o qual deve avaliar, quer a gravidade dos pecados, quer o arrependimento do penitente; e, simultaneamente, o papel de médico, que deve conhecer o estado do enfermo para tratar dele e o curar. Mas a confissão individual tem também o valor de sinal: sinal do encontro do pecador com a mediação eclesial na pessoa do ministro; sinal do seu pôr-se a descoberto diante de Deus e da Igreja como pecador, do esclarecer-se a si mesmo sob o olhar de Deus. A acusação dos pecados, portanto, não pode ser reduzida a qualquer tentativa de autolibertação psicológica, ainda que esta corresponda a uma necessidade legítima e natural de abrir-se com alguém, o que é algo ínsito no coração do homem. Trata-se de um gesto litúrgico, solene na sua dramaticidade, humilde e sóbrio na grandeza do seu significado. É o gesto do filho pródigo que volta para junto do pai e por ele é acolhido com o beijo da paz; gesto de lealdade e de coragem; gesto de entrega de si mesmo, passando além do pecado, à misericórdia que perdoa. (188)
Compreende-se, então, por que é que a acusação dos pecados deve ser ordinariamente individual e não colectiva, tal como o pecado é um facto profundamente pessoal. Ao mesmo tempo, porém, esta acusação arranca, de certo modo, o pecado do segredo do coração e, por conseguinte, do âmbito da pura individualidade, pondo em relevo o seu carácter social, uma vez que, mediante o ministro da Penitência, é a Comunidade eclesial, lesada pelo pecado, que acolhe de novo o pecador arrependido e perdoado.
O outro momento essencial do Sacramento da Penitência, compete, por sua vez, ao confessor juiz e médico, imagem de Deus Pai que acolhe aquele que regressa e lhe perdoa: é a absolvição. As palavras que a exprimem e os gestos que a acompanham no antigo e no novo Ritual da Penitência, revestem-se de uma significativa simplicidade na sua grandeza. A fórmula sacramental: «Eu te absolvo...», a imposição das mãos e o sinal da cruz traçado sobre o penitente manifestam que naquele momento o pecador contrito e convertido entra em contacto com o poder e a misericórdia de Deus. É em tal momento que, em resposta ao penitente, a Santíssima Trindade se torna presente para apagar o seu pecado e restituir-lhe a inocência; e a força salvífica da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus é comunicada ao mesmo penitente, como «misericórdia mais forte do que a culpa e a ofensa», como a designei na Encíclica Dives in Misericordia. Deus é sempre o principal ofendido pelo pecado — «Pequei só contra Vós!» («tibi soli peccavi!») — e só Deus pode perdoar. Por isso, a absolvição que o Sacerdote, ministro do perdão, embora também ele pecador, concede ao penitente, é o sinal eficaz da intervenção do Pai em cada absolvição e da «ressurreição» da «morte espiritual» que se renova todas as vezes que é actuado o Sacramento da Penitência. Só a fé pode assegurar que naquele momento todos e cada um dos pecados são perdoados e apagados pela misteriosa intervenção do Salvador.
A satisfação é o acto final que coroa o sinal sacramental da Penitência. Em alguns países, o que o penitente perdoado e absolvido aceita cumprir depois de ter recebido a absolvição, chama-se precisamente penitência. Qual é o significado desta satisfação que se dá ou desta penitência que se faz? Não é certamente o preço que se paga pelo pecado absolvido e pelo perdão alcançado: nenhum preço humano pode equivaler ao que se obteve, fruto do preciosíssimo Sangue de Cristo. As obras de satisfação — que, embora conservando um carácter de simplicidade e de humildade, deveriam tornar-se mais expressivas de tudo aquilo que significam — querem dizer algo de precioso: são o sinal docompromisso pessoal que o cristão assumiu com Deus, no Sacramento, de começar uma existência nova (e por isso não deveriam reduzir-se somente a algumas fórmulas a recitar, mas consistir em obras de culto, de caridade, de misericórdia e de reparação); incluem a ideia de que o pecador perdoado é capaz de unir a sua própria mortificação física e espiritual, procurada ou ao menos aceite, à Paixão de Jesus que lhe alcançou o perdão; recordam que, mesmo depois da absolvição, permanece no cristão uma zona de sombra devida as feridas do pecado, à imperfeição do amor no arrependimento, ao enfranquecimento das faculdades espirituais em que continua ainda activo um foco infeccioso de pecado, que é preciso combater sempre com a mortificação e a penitência. Tal é o significado da humilde mas sincera satisfação. (189)
IV. Resta-me fazer uma breve referência a outras importantes convicções relativas ao Sacramento da Penitência.
Antes de mais, é preciso insistir em que não há nada mais pessoal e íntimo do que este Sacramento, no qual o pecador se encontra na presença de Deus, só, com a sua culpa, o seu arrependimento e a sua confiança. Ninguém pode arrepender-se em seu lugar ou pode pedir perdão em seu nome. Há uma certa solidão do pecador na sua culpa, que se pode ver dramaticamente representada em Caim com o pecado «à espreita à sua porta», como diz tão eficazmente o livro do Génesis, e marcado com o sinal particular na sua fronte; (190) em David, repreendido pelo profeta Natan; (191) ou no filho pródigo, quando toma consciência da condição à qual se reduziu pelo afastamento do pai e decide voltar para junto dele: (192) tudo se passa só entre o homem e Deus. Mas, ao mesmo tempo, é inegável a dimensão social deste Sacramento, no qual é toda a Igreja — a militante, a purgante e a triunfante no Céu — que intervém em auxílio do penitente e o acolhe de novo no seu seio, tanto mais que toda a Igreja fora ofendida e ferida pelo seu pecado. O Sacerdote, ministro da Penitência, em virtude da sua função sagrada, aparece como testemunha e representante de tal eclesialidade. São dois aspectos complementares do Sacramento, a individualidade e a eclesialidade, que a progressiva reforma do rito da Penitência, especialmente a do Ordo Paenitentiae (novo Ritual) promulgado pelo Papa Paulo VI, procurou realçar e tornar mais significativos na sua celebração.
V. É de salientar, ainda, que o fruto mais precioso do perdão, obtido pela Penitência, consiste na reconciliação com Deus, a qual se verifica no segredo do coração do filho pródigo, e reencontrado, que é cada penitente. Mas é preciso acrescentar que tal reconciliação com Deus tem como consequência, por assim dizer, outras reconciliações, que vão remediar outras tantas rupturas, causadas pelo pecado: o penitente perdoado reconcilia-se consigo próprio no íntimo mais profundo do próprio ser, onde recupera a própria verdade interior; reconcilia-se com os irmãos, por ele de alguma maneira agredidos e lesados; reconcilia-se com a Igreja; e reconcilia-se com toda a criação. A tomada de consciência de tudo isto faz nascer no penitente, no final da celebração, um sentimento de gratidão para com Deus pelo dom da misericórdia que recebeu; e a Igreja convida-o à acção de graças.
Todos os confessionários são um espaço privilegiado e abençoado, do qual, uma vez eliminadas as divisões, surge, novo e incontaminado, um homem reconciliado — um mundo reconciliado!
VI. E por fim, está-me particularmente a peito fazer uma última consideração que nos diz respeito a todos nós Sacerdotes, que somos os ministros do Sacramento da Penitência, mas que somos também — e devemos sê-lo sempre — os beneficiários. A vida espiritual e pastoral do Sacerdote, como a dos seus irmãos leigos e religiosos, depende, na sua qualidade e no seu fervor, da prática pessoal assídua e conscienciosa do Sacramento da Penitência. (193)
A celebração da Eucaristia e o ministério dos outros Sacramentos, o zelo pastoral, a relação com os fiéis, a comunhão com os irmãos Sacerdotes, a colaboração com o Bispo, a vida de oração, numa palavra, toda a existência sacerdotal sofre inexorável decadência, se lhe falta por negligência ou por qualquer outro motivo o recurso, periódico e inspirado por fé autêntica e devoção, ao Sacramento da Penitência. Num sacerdote que deixasse de se confessar ou se confessasse mal, o seu ser padre e o exercício do seu Sacerdócio bem depressa se ressentiriam e disso se daria conta a própria Comunidade de que ele é pastor.
Mas acrescento também que, até para ser bom e eficaz ministro da Penitência, o Sacerdote precisa de recorrer à fonte da graça e santidade presente neste Sacramento. Nós Sacerdotes, com base na nossa experiência pessoal, bem podemos dizer que, na medida em que procuramos recorrer ao Sacramento da Penitência e nos aproximamos dele com frequência e com boas disposições, desempenhamos melhor o nosso próprio ministério de confessores e melhor asseguramos aos penitentes o seu benefício. De outro modo, este ministério perderia muito da sua eficácia, se de alguma maneira deixássemos de ser bons penitentes. Tal é a lógica interna deste grande Sacramento. Ele convida-nos, a todos nós Sacerdotes de Cristo, a uma renovada atenção à nossa confissão pessoal.
A experiência pessoal, por sua vez, torna-se e deve tornar-se hoje um estímulo para o exercício diligente, pontual, paciente e fervoroso do ministério sagrado da Penitência, a que estamos comprometidos por força do nosso Sacerdócio e da nossa vocação para ser pastores e servidores dos nossos irmãos. Assim, com a presente Exortação, quero dirigir um instante apelo a todos os Sacerdotes do mundo, especialmente aos meus Irmãos no Episcopado e aos Párocos, para que favoreçam com todas as veras a frequência dos fiéis a este Sacramento, ponham em prática todos os meios possíveis e convenientes e tentem todas as vias para fazer chegar ao maior número de irmãos nossos a «graça que nos foi dada» mediante a Penitência, para a reconciliação de cada alma e de todo o mundo com Deus, em Cristo.
As formas da celebração
32. Seguindo as indicações do Concílio Vaticano II, o Ordo Paenitentiae predispôs três ritos que, ressalvados sempre os elementos essenciais, permitem adaptar a celebração do Sacramento da Penitência a determinadas circunstancias pastorais.
A primeira forma — reconciliação individual dos penitentes — constitui o único modo normal e ordinário da celebração sacramental, e não pode nem deve deixar-se cair em desuso ou ser descurada. A segunda — reconciliação de vários penitentes com confissão e absolvição individual— ainda que permita, nos actos preparatórios, realçar mais os aspectos comunitários do Sacramento, vai confluir na primeira forma no acto sacramental culminante, que é o da confissão e a absolvição individuais dos pecados; e, por isso, pode ser equiparada à primeira forma no que toca à normalidade do rito. A terceira, ao contrário — reconciliação de vários penitentes com a confissão e a absolvição geral — reveste-se de carácter excepcional e não é, por isso, deixada à livre escolha, mas é regulada por uma disciplina especial.
A primeira forma permite a valorização dos aspectos mais pessoais — e essenciais — que estão compreendidos no itinerário penitencial. O diálogo entre o penitente e o confessor, o próprio conjunto dos subsídios utilizados (os textos bíblicos, a escolha das formas de «satisfação», etc.) são elementos que tornam a celebração sacramental mais correspondente à situação concreta do penitente. Descobre-se o valor de tais elementos, quando se pensa nas diversas razões que levam um cristão à penitência sacramental: necessidade de reconciliação pessoal e readmissão na amizade com Deus, recuperando a graça perdida por causa do pecado; necessidade de verificação do caminho espiritual e, por vezes, de um mais preciso discernimento vocacional; e, tantas outras vezes, uma necessidade e um desejo de sair de um estado de apatia espiritual e de crise religiosa. Graças, ainda, à sua índole individual, a primeira forma de celebração permite associar o Sacramento da Penitência a algo de diferente, mas perfeitamente conciliável com ele: refiro-me à direcção espiritual. Por conseguinte, é óbvio que a decisão e o empenho pessoais estão claramente significados e solicitados nessa primeira forma.
A segunda forma de celebração, precisamente pelo seu carácter comunitário e pela modalidade celebrativa que a caracteriza, faz ressaltar alguns aspectos de grande importância: a Palavra de Deus, escutada em comum, tem um efeito singular, em relação à sua leitura individual, e evidencia melhor o carácter eclesial da conversão e da reconciliação. Essa celebração resulta particularmente significativa nos diversos tempos do ano litúrgico e em conexão com acontecimentos de especial relevância pastoral. Basta acenar aqui, apenas, que para tal celebração importa haver a presença de um número suficiente de confessores.
É natural, portanto, que os critérios para estabelecer a qual das duas formas de celebração se deva recorrer sejam ditados, não por motivações conjunturais e subjectivas, mas pelo desejo de obter o verdadeiro bem espiritual dos fiéis, em obediência à disciplina penitencial da Igreja.
Será bom recordar também que, para uma equilibrada orientação espiritual e pastoral neste campo, é necessário continuar a atribuir grande valor ao Sacramento da Penitência e educar os fiéis a recorrerem a ele, mesmo só para os pecados veniais, como atestam uma tradição doutrinal e uma prática já seculares.
Mesmo sabendo e ensinando que os pecados veniais são perdoados também de outros modos — pense-se nos actos de contrição, na obras de caridade, na oração e nos ritos penitenciais — a Igreja não cessa de recordar a todos a singular riqueza do momento sacramental também pelo que se refere a tais pecados. O recurso frequente ao Sacramento — a que estão obrigadas algumas categorias de fiéis — reforça a consciência de que também os pecados menores ofendem a Deus e ferem a Igreja, corpo de Cristo; e a celebração do mesmo Sacramento torna-se para todos os cristãos «ocasião e estímulo a conformarem-se mais intimamente com Cristo e a tornarem-se mais dóceis à voz do Espírito». (194) Sobretudo deve frisar-se bem o facto de a graça própria da celebração sacramental ter grande eficácia terapêutica e contribuir para arrancar as próprias raízes do pecado.
O cuidado dispensado ao aspecto celebrativo, (195) com particular referência à importância da Palavra de Deus, lida, evocada e explicada, quando for possível e oportuno, aos fiéis e com os fiéis, contribuirá para vivificar a prática do Sacramento e para impedir que decaia para algo de formal e rotineiro. O penitente há-de ser ajudado sobretudo a descobrir que está a viver um acontecimento de salvação, capaz de infundir nele um novo impulso de vida e uma verdadeira paz no seu coração. Este cuidado pela celebração há-de levar, ainda, entre outras coisas, a fixar em cada Igreja tempos destinados à celebração do Sacramento e a educar os fiéis, especialmente as crianças e os jovens, a aterem-se a eles, ordinariamente, salvo a casos de necessidade, em relação aos quais o pastor de almas deverá mostrar-se sempre pronto a acolher de boa vontade quem a ele recorrer.
A celebração do Sacramento com absolvição geral
33. Na nova ordenação litúrgica e, mais recentemente, no novo Código de Direito Canónico, (196) estão determinadas as condições que legitimam o recurso ao «rito da reconciliação de vários penitentes, com a confissão e a absolvição geral». As normas e as directrizes dadas quanto a este ponto, fruto de madura e equilibrada consideração, devem ser acolhidas e aplicadas evitando toda a espécie de interpretação arbitrária.
É oportuna uma ulterior reflexão, mais aprofundada, sobre as motivações, que impõem a celebração da Penitência numa das duas primeiras formas e que permitem o recurso à terceira forma. Há, antes de mais, uma motivação de fidelidade à vontade do Senhor Jesus, transmitida pela doutrina da Igreja e, além disso, de obediência as leis da mesma Igreja: o Sínodo reafirmou numa das suas Propostas («Propositiones») o inalterado ensino que a Igreja foi haurir na mais antiga Tradição e recordou a lei com que codificou a antiga prática penitencial: a confissão individual e íntegra dos pecados, com a absolvição igualmente individual, constitui o único modo ordinário, pelo qual o fiel, culpado de pecado grave, é reconciliado com Deus e com a Igreja. Desta confirmação do ensino da Igreja, resulta claramente que todos os pecados devem ser sempre declarados, com as suas circunstâncias determinantes, numa confissão individual.
Existe, ainda, uma motivação de ordem pastoral. Se é verdade que, verificando-se as condições requeridas pela disciplina canónica, se pode fazer uso da terceira forma de celebração da Penitência, não se deve esquecer, no entanto, que esta não pode tornar-se uma forma ordinária, e que não pode nem deve ser adoptada — repetiu-o o Sínodo — senão «em casos de grave necessidade», permanecendo firme a obrigação de confessar individualmente os pecados graves antes de recorrer novamente à absolvição geral. O Bispo, portanto, o único a quem compete, no âmbito da sua Diocese, ajuizar se existem em concreto as condições que a lei canónica estabelece para o uso dessa terceira forma, dará tal juízo, onerando gravemente a sua consciência, com respeito pleno da lei e da prática da Igreja; e, além disso, tendo em conta critérios e orientações que hajam sido dados — com base nas considerações doutrinais e pastorais acima apresentadas — de comum acordo, pelos demais membros da Conferência Episcopal. Terá de haver, igualmente, uma autêntica preocupação pastoral em procurar e garantir as condições que tornem o recurso à terceira forma susceptível de dar aqueles frutos espirituais, para os quais ela está prevista.
Assim, o uso excepcional da terceira forma de celebração do Sacramento da Penitência não deverá nunca levar a uma menor consideração e, menos ainda, ao abandono das formas ordinárias, ou então a considerar essa forma como uma alternativa das outras duas. Não é, efectivamente, deixado à liberdade dos Pastores e dos fiéis escolher entre as mencionadas formas de celebração aquela que retiverem mais oportuna. Para os Pastores permanece a obrigação de facilitarem aos fiéis a prática da confissão íntegra e individual dos pecados, que constitui para eles não só um dever, mas também um direito inviolável e inalienável, além de uma necessidade espiritual.
Para os fiéis o uso da terceira forma de celebração comporta a obrigação de se aterem a todas as normas que regulam a sua prática, incluindo a de não recorrerem de novo à absolvição geral antes de uma confissão regular, integral e individual dos pecados, que deverão fazer logo que seja possível. Os mesmos fiéis devem ser advertidos e instruídos pelo Sacerdote, acerca desta norma e da obrigação de a observar, antes da absolvição.
Ao recordar assim a doutrina e a lei da Igreja, é minha intenção inculcar em todos o vivo sentido de responsabilidade, que sempre nos deve guiar ao tratar das coisas sagradas; estas não são propriedade nossa, como é o caso dos Sacramentos; ou então têm direito a não serem deixadas na incerteza e na confusão, como são as consciências. Coisas sagradas — repito — são uns e outras: os Sacramentos e as consciências; e exigem da nossa parte serem servidas com verdade.
Esta é a razão da lei da Igreja!
Alguns casos mais delicados
34. Sinto-me no dever, chegado a este ponto, de fazer uma alusão, ainda que brevíssima, a um caso pastoral que o Sínodo quis tratar — na medida que lhe era possível fazê-lo — contemplando-o também numa das Propostas («Propositiones»). Refiro-me a certas situações, hoje não infrequentes, em que, vêm a encontrar-se cristãos desejosos de continuarem a prática religiosa sacramental, mas que disso estão impedidos pela própria condição pessoal, em contraste com os compromissos assumidos livremente diante de Deus e da Igreja. São situações que se apresentam particularmente delicadas e quase inextricáveis.
Não poucas intervenções, no decorrer do Sínodo, exprimindo o pensamento geral dos Padres, puseram bem a claro a coexistência e a influência mútua de dois princípios, igualmente importantes, no que respeita a estes casos. O primeiro é o princípio da compaixão e da misericórdia, segundo o qual a Igreja, continuadora na história da presença e da obra de Cristo, não querendo a morte do pecador, mas que se converta e viva, (197) atenta a não partir a cana já fendida e a não apagar a chama que ainda fumega, (198) procura sempre facultar, na medida em que lhe é possível, o caminho do retorno a Deus e da reconciliação com ele. O outro é o princípio da verdade e da coerência, pelo qual a Igreja não aceita chamar bem ao mal e mal ao bem. Baseando-se nestes dois princípios complementares, a Igreja mais não pode do que convidar os seus filhos, que se encontram nessas situações dolorosas, a aproximarem-se da misericórdia divina por outras vias, mas não pela via dos Sacramentos, especialmente da Penitência e da Eucaristia, até que não tenham podido alcançar as condições requeridas.
Acerca desta matéria, que angustia profundamente também o nosso coração de pastores, pareceu-me ser meu preciso dever, já na Exortação Apostólica Familiaris Consortio, dizer palavras claras pelo que se refere ao caso dos divorciados novamente casados (199) ou de cristãos que, de qualquer maneira, convivem conjugalmente de modo irregular.
Ao mesmo tempo, sinto vivamente o dever de exortar, juntamente com o Sínodo, as comunidades eclesiais e, sobretudo os Bispos, a darem toda a ajuda possível aos Sacerdotes, que, tendo faltado aos graves compromissos assumidos na Ordenação, se encontram em situações irregulares. Nenhum destes irmãos há-de sentir-se abandonado pela Igreja.
Para todos aqueles que não se encontrem actualmente nas condições objectivas requeridas pelo Sacramento da Penitência, as demonstrações de maternal bondade por parte da Igreja, o apoio de actos de piedade diversos dos actos sacramentais, o esforço sincero por se manter em contacto com o Senhor, a participação na Santa Missa, a repetição frequente de actos de fé, de esperança, de caridade e de contrição quanto for possível perfeitos, poderão preparar o caminho para uma plena reconciliação no momento que só a Providência conhece.
VOTOS CONCLUSIVOS
35. No final deste Documento, sinto ressoar em mim e desejo repetir a todos vós a exortação que o primeiro Bispo de Roma, numa hora crítica dos primórdios da Igreja, quis endereçar «aos peregrinos da Dispersão (...), eleitos segundo a presciência de Deus Pai»: «sede todos concordes, sede compassivos, em amor de irmãos, misericordiosos, humildes». (200) O Apóstolo recomendava: «sede todos concordes...»; mas imediatamente a seguir apontava os pecados contra a concórdia e a paz, que é preciso evitar: «Não retribuais o mal com o mal, nem a injúria com a injúria; ao contrário, respondei bendizendo, pois para isto fostes chamados, para conseguirdes a bênção». E concluía com uma palavra de encorajamento e de esperança: «quem vos poderá fazer mal, se fordes zelosos pelo bem?». (201)
Ouso ligar esta minha Exortação, numa hora não menos crítica da história, à do Príncipe dos Apóstolos, que foi o primeiro a sentar-se nesta Cátedra romana, como testemunha de Cristo e pastor da Igreja, e aqui «presidiu à caridade» diante do mundo inteiro. Também eu, em comunhão com os Bispos sucessores dos Apóstolos e confortado pela reflexão colegial que muitos deles, reunidos no Sínodo, dedicaram aos temas e problemas da reconciliação, desejei comunicar-vos, com o mesmo espírito do pescador da Galileia, o que ele dizia aos nossos irmãos na fé, longe de nós no tempo, mas bem unidos no coração: «sede todos concordes (...), não retribuais o mal com o mal (...), sede zelosos pelo bem». (202) E acrescentava: «é melhor padecer, praticando o bem, se assim agrada à vontade de Deus, do que fazendo o mal». (203)
Esta palavra de ordem está repleta de expressões que Pedro ouvira ao próprio Jesus e de conceitos, que faziam parte da sua «Boa Nova»: o mandamento novo do amor mútuo; o anelo e o empenho pela unidade; as bem-aventuranças da misericórdia e da paciência na perseguição pela justiça; o retribuir o mal com o bem; o perdão das ofensas; o amor dos inimigos. Em tais palavras e conceitos está a síntese original e transcendente da ética cristã ou, melhor e mais profundamente, da espiritualidade da Nova Aliança em Jesus Cristo.
Confio ao Pai, rico de misericórdia, confio ao Filho de Deus, feito homem como nosso Redentor e Reconciliador, confio ao Espírito Santo, fonte de unidade e de paz, este meu apelo de pai e de pastor à penitência e à reconciliação. Queira a Trindade Santíssima e adorável fazer germinar na Igreja e no mundo a pequenina semente que neste momento entrego à terra generosa de tantos corações humanos.
Para que daí provenham, num dia não muito longínquo, frutos abundantes, convido-vos a todos a dirigir-vos comigo ao Coração de Cristo, sinal eloquente da misericórdia divina, «propiciação pelos nossos pecados», «nossa paz e reconciliação», (204) para aí haurirmos a energia interior para a detestação do pecado e para a conversão a Deus, e aí encontrarmos a benignidade divina que amorosamente responde ao arrependimento humano.
Convido-vos também a dirigir-vos comigo ao Coração Imaculado de Maria, Mãe de Jesus, na qual «se operou a reconciliação de Deus com a humanidade (...), se realizou a obra da reconciliação, porque ela recebeu de Deus a plenitude da graça, em virtude do sacrifício redentor de Cristo». (205) Na verdade, Maria, em virtude da sua maternidade divina, tornou-se «a aliada de Deus» na obra da reconciliação. (206)
Nas mãos desta Mãe, cujo «fiat», na expressão de muitos autores, assinalou o início daquela «plenitude dos tempos» que viu ser realizada por Cristo a reconciliação do homem com Deus e ao seu Coração Imaculado — ao qual tenho repetidamente entregado e confiado toda a humanidade, turbada pelo pecado e dilacerada por tantas tensões e conflitos — confio agora de modo especial esta intenção: que, por sua intercessão, a mesma humanidade descubra e percorra o caminho da penitência, o único que a poderá conduzir à plena reconciliação!
A todos vós, que, com espírito de comunhão eclesial na obediência e na fé, (207) quiserdes acolher as indicações, as sugestões e as directrizes contidas neste Documento, esforçando-vos por traduzi-las em prática pastoral viva, concedo de todo o coração a minha Bênção Apostólica.
Dado em Roma, junto de São Pedro, a 2 de Dezembro, I Domingo do Advento, do ano de 1984, sétimo do meu Pontificado.
JOÃO PAULO II
Notas
(2) Cf. João Paulo II, Discurso na abertura da 3a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, III, 1-7: AAS 71 (1979), pp. 198-204.
(3) A visão de um mundo «despedaçado» transparece na obra de não poucos escritores contemporâneos, cristãos e não cristãos, testemunhas da condição do homem nesta nossa atormentada época.
(4) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, 43-44; Decreto sobre o Ministério e Vida dos Sacerdotes Presbyterorum Ordinis, 12; Paulo VI, Encíclica Ecclesiam suam: AAS 56 (1964), 609-659.
(5) Sobre as divisões no corpo da Igreja, escrevia com palavras ardentes, nos albores da Igreja, o Apóstolo São Paulo na famosa página da 1 Cor 1, 10-16. Aos mesmos Coríntios dirigir-se-á, alguns anos mais tarde, São Clemente de Roma, para denunciar as dilacerações no seio daquela comunidade: cf. Carta aos Coríntios, III-IV; LVII: Patres Apostolici ed. Funk, I, 103; 171-173. Sabemos, pelos mais antigos Padres da Igreja, que a túnica inconsútil de Cristo, que não foi lacerada pelos soldados, se tornou imagem da unidade da Igreja: cf. S. Cipriano, De Ecclesiae catholicae unitate, 7: CCL 3/1, 254 s.; S. Agostinho, In Ioannis Evangelium tractatus, 118, 4: CCL 36, 656 s.; S. Beda Venerável, In Marci Evangeliurn expositio, IV, 15: CCL 120, 630; In Lucae Evangelium expositio, VI, 23: CCL 120, 403; In S. Ioannis Evangelium expositio, 19: PL 92, 911 s.
(6) A Encíclica Pacem in Terris, testamento espiritual do Papa João XXIII, (cf. ASS 55 [1963], 257-304), é frequentemente considerada um «documento social» e até mesmo uma «mensagem política»; e é-o, na verdade, se se tomarem estas expressões em toda a sua amplitude. Mais do que uma estratégia em vista da convivência dos povos e Nações, o texto pontifício é de facto — conforme se verifica, passados mais de vinte anos da sua publicação — uma veemente chamada à atenção para os valores supremos, sem os quais a paz na terra se torna uma quimera. Um destes valores é precisamente a reconciliação entre os homens, tema a que se referiu muitas vezes o mesmo Papa João XXIII. De Paulo VI bastará recordar que, ao convocar a Igreja e o Mundo inteiro para celebrar o Ano Santo de 1975, ele quis que «renovação e reconciliação» fossem a ideia central desse importante acontecimento. E não se devem esquecer as catequeses que o mesmo Sumo Pontífice dedicou a essa ideia-mestra, também para ilustrar o mesmo Jubileu.
(7) «Este tempo forte, durante o qual todos e cada um dos cristãos são chamados a realizar mais profundamente a sua vocação para "a reconciliação com o Pai, no Filho" - tive ocasião de escrever na Bula de proclamação do Ano Santo extraordinário da Redenção - só alcançará plenamente os seus objectivos, se levar a um empenhamento novo de cada um e de todos ao serviço da reconciliação, não apenas entre os discípulos de Cristo, mas também entre todos os homens». Bula Aperite portas Redemptori, n. 3: AAS 75 (1983), 93.
(8) O tema do Sínodo, mais precisamente, era: Reconciliação e Penitência na Missão da Igreja.
(11) Cf. Mt 16, 24-26; Mc 8, 34-36; Lc 9, 23-25.
(15) «Nós vo-lo suplicamos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus»: 2 Cor 5, 20.
(16) «Nós gloriamo-nos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Qual obtivemos agora a reconciliação»: Rom 5, 11; cf. Col 1, 20.
(17) O Concílio Vaticano II, a este propósito, salienta: «Na verdade, os desequilíbrios de que sofre o mundo actual, estão ligados a um desequilíbrio mais fundamental que se enraíza no coração do homem. É precisamente no íntimo do homem que muitos elementos se combatem. Enquanto por um lado, como criatura, faz a experiência das suas múltiplas limitações, por outro, sente-se ilimitado nas suas aspirações e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, vê-se a todo o momento obrigado a escolher entre elas e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, não raro faz o que não quer e não faz o que desejaria (cf. Rom 7, 14 ss.). Por isso, sofre em si mesmo a divisão, da qual promanam também tantas e tão graves discórdias para a sociedade»: Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, 10.
(19) Cf. João Paulo II, Encíclica Dives in Misericordia, IV: 5-6 AAS 72 (1980), 1193-1199
(21) O Livro de Jonas, no Antigo Testamento, é uma admirável antecipação e figura deste aspecto da parábola. O pecado de Jonas consistiu em ele ter experimentado «profundo desagrado e ter ficado irritado», por Deus ser «misericordioso e clemente, longanime e cheio de bondade, que desiste facilmente do mal ameaçado»; é o pecado de «sentir pena de um rícino (. .) que nasceu numa noite e numa noite feneceu», e de não entender que o Senhor «se compadeça de Nínive»: cf. Jon 4.
(22) Rom 5, 10 s.; cf. Col 1, 20-22.
(28) Cf. Prece Eucarística III.
(30) Mt 27, 46; Mc 15, 34; Sl 22 [21], 2.
(32) S. Leão Magno, Tractatus 63 (De passione Domini 12), 6: CCL 138/A, 386.
(34) Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, 1.
(35) «Por sua própria natureza, a Igreja é sempre reconciliadora porque transmite aos outros o dom que ela mesma recebeu, o dom de ser perdoada e tornada algo unido com Deus»: João Paulo II, Discurso em Liverpool (30 de Maio de 1982), 3: Insegnamenti V, 2 (1982) 1992.
(37) Cf. Exort. Apostólica Evangelii Nuntiandi, n. 13: AAS 67 (1976), p. 12 s.
(38) Cf. João Paulo II, Exort. Apostólica Catechesi Tradendae, n. 24: AAS 71 (1979), p. 1297.
(39)Cf. Paulo VI, Encíclica Ecclesiam suam: AAS 56 (1964), 609-659.
(42) Cf Sab 11, 24-26; Gén 1, 27; Sl 8, 4-8.
(44) Cf. Gén 3, 12 S., 4, 1-16.
(48) Cf. Conc. Ecum. Vati. II, Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, 38.
(52) Cf. S. Agostinho, De Civitate Dei, XXII, 17: CCL 48, 835 s.; S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, pars III, q. 64, a. 2 ad tertium.
(53) Cf. Paulo VI, Alocução no encerramento da Terceira Sessão do Concílio Ecumenico Vaticano II (21 de Novembro de 1964): AAS 56 (1964), 1015-1018.
(54) Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, 39.
(55) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. sobre o Ecumenismo Unitatis Redintegratio, 4.
(57) 1 Jo 3, 20; cf. a referência por mim feita a este texto, no discurso na Audiência Geral de 14 de Março de 1984; Insegnamenti VII, 1 (1984), p. 683.
(61) Lettere, Firenze, 1970, I, pp. 3 s.; Il Dialogo della Divina Provvidenza, Roma, 1980, passim.
(67) Cf. Rom 7, 7-25; Ef 2, 2; 6, 12.
(68) É significativa a terminologia usada na tradução grega dos LXX e no Novo Testamento acerca do pecado. A designação mais comum é a de hamartía, a que há que juntar outras palavras da mesma raiz. Esta exprime o conceito de faltar mais ou menos gravemente, quer contra uma norma ou uma lei, quer contra uma pessoa ou mesmo até contra uma divindade. Mas o pecado é também designado adikía, cujo significado é o de praticar a injustica. Falar-se-á também de parábasis ou transgressão; de asébeia, impiedade, e outros conceitos; todos em conjunto dão-nos a imagem do pecado.
(69) Gén 3, 5: «Tornar-vos-eis como Deus, conhecendo o bem e o mal»; cf. também o v. 22.
(72) A expressão é da autoria da escritora francesa Elisabeth Leseur: Journal et pensées de chaque jour, Paris 1918, p. 31.
(73) Cf. Mt 22, 39; Mc 12, 31; Lc 10, 27 s.
(74) Cf. Congragação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre alguns aspectos da «Teologia da Libertação» Libertatis Nuntius: (6 de Agosto de 1984), IV, 14-15: AAS 76 (1984), 885 s.
(80) Cf. Lev 4, 2 ss.; 5, 1 ss.; Núm 15, 22-29.
(81) Cf. Mt 5, 28; 6, 23; 12, 31 s.; 15, 19; Mc 3, 28-30; Rom 1, 29-31; 13, 13; Tg 4.
(82) Cf. Mt 5,17; 15,1-10; Mc 10, 19; Lc 18, 20.
(89) Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, Ia-IIae, q. 14, aa. 1-3.
(91) S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, IIa-IIae, q. 14, a. 3 ad primum.
(93) Cf. S. Agostinho, De spiritu et littera, XXVIII: CSEL 60, 202 s.; Enarrat. in ps. 39, 22: CCL 38, 441; Enchiridion ad Laurentium de fide et spe et caritate, XIX, 71: CCL 46, 88; In Ioannis Evangelium tractatus, 12, 3, 14: CCL 36, 129.
(94) S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, Ia-IIae, q. 72, a. 5.
(95) Cf. Conc. Ecum. Tridentino, Sessio VI, De iustificatione, cap. II, e Câns. 23, 25, 27: Conciliorum Oecumenicorum Decreta, Bologna 19733, 671. 680 s. (DS 1573, 1575, 1577).
(96) Cf. Conc. Ecum. Tridentino, Sessio VI, De iustificiatione, cap. XV: Conciliorum Oecumenicorum Decreta, ed. cit., 677 (DS 1544).
(97) João Paulo II, Angelus de 14 de Março de 1982: Insegnamenti V, 1 (1982), 861.
(98) Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, Gaudium et Spes, 16.
(99) João Paulo II, Angelus de 14 de Março de 1982: Insegnamenti V, 1 (1982), 860.
(100) Pio XII, Radiomensagem ao Congresso Catequístico Nacional dos Estados Unidos em Bostom (26 de Outubro de 1946): Discorsi e Radiomessaggi, VIII (1946), 288.
(101) Cf. João Paulo II, Encíclica Redemptor Hominis, 15: AAS 71 (1979), 286-289.
(102) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, 3; cf. 1 Jo 3, 9.
(103) João Paulo II, Discurso aos Bispos da Região Leste da França (1° de Abril de 1982), 2: Insegnamenti V, 1 (1982), 1081.
(105) O texto oferece, por isso, uma certa dificuldade de leitura, uma vez que o pronome relativo, que abre a citação literal, não concorda com o neutro «mysterion». Alguns manuscritos tardios retocaram o texto para o corrigir gramaticalmente; mas São Paulo pretendeu somente justapor ao seu um outro texto venerável, que lhe parecia plenamente esclarecedor.
(106) A comunidade cristã primitiva exprime a sua fé no Crucificado, que foi glorificado, que os anjos adoram e que é Senhor. Mas o elemento impressionante desta mensagem continua a ser o «manifestado na carne»: o «grande mistério» é que o eterno Filho de Deus se tenha feito homem.
(114) Cf. João Paulo II, Encíclica Dives in Misericordia, VIII, 15: AAS 72 (1980), 1203-1207; 1231.
(115) 2 Sam 12, 13.
(121) Const past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, 92.
(122) Cf. Decr. sobre o Múnus Pastoral dos Bispos Christus Dominus, 13; cf. Decl. sobre a Educação Cristã Gravissimum Educationis, 8; Decr. sobre a Actividade Missionária da Igreja Ad Gentes, 11. 12.
(123) Cf. Paulo VI, Encíclica Ecclesiam suam, III: AAS 56 (1964), 639-659.
(124) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, 1. 9. 13.
(125) Paulo VI, Exort. Apostólica Paterna cum Benevolentia: AAS 67 (1975), 5-23.
(126) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. sobre o Ecumenismo Unitatis Redintegratio, 7-8.
(128) S. Agostinho, Sermo 96, 7: PL 38, 588.
(129) João Paulo II, Discurso aos Membros do Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé (15 de Janeiro de 1983), 4. 6. 11: AAS 75 (1983), 376. 378 s.; 381.
(130) João Paulo II, Homilia da Missa do XVI Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro de 1983), 6: Insegnamenti, VI, 1 (1983), 7.
(131) Paulo VI, Exort. Apostólica Evangelii Nuntiandi, 70: AAS 68 (1976), 59 s.
(138) Cf. Mc 1, 4. 14; Mt 3, 2; 4, 17; Lc 3, 8.
(141) Cf. Mt 3, 2; Mc 1, 2b; Lc 3, 1-6.
(142) Cf. Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, 8. 16. 19. 26. 41. 48.
(143) Cf. Declaração sobre a Liberdade Religiosa Dignitatis Humanae, 2. 3. 4.
(144) Cf. entre muitos outros, os discursos nas Audiências Gerais de 28 de Março de 1973: Insegnamenti, XI (1973), 294 ss.; 8 de Agosto de 1973: Ibidem, 772 ss.; 7 de Novembro de 1973: Ibidem, 1054 ss.; 13 de Março de 1974: Insegnamenti, XVI (1974), 230 ss.; 8 de Maio de 1974: Ibidem, 402 ss., 12 de Fevereiro de 1975: Insegnamenti, XIII (1975), 154 ss., 9 de Abril de 1975: Ibidem, 290 ss.; 13 de Julho de 1977: Insegnamenti, XV (1977), 710 ss.
(145) Cf. João Paulo II, Angelus de 14 de Março de 1982: Insegnamenti, V, 1 (1982), 860 s.
(146) Cf. João Paulo II, Discurso na Audiência Geral de 17 de Agosto de 1983, 1-3: Insegnamenti, VI, 2 (1983), 256 s.
(148) Cf. Mt 4, 1-11; Mc 1, 12 s.; Lc 4, 1-13.
(152) Cf. Rom 6, 3 s.; Col 2, 12.
(153) Cf. Mt 3, 11; Lc 3, 16; Jo 1, 33; Act 1, 5; 11, 16.
(155) S. Agostinho, In Iohannis Evangelium tractatus, 26, 13: CCL 36, 266.
(156) S. Congregação dos Ritos, Instr. sobre o Culto do Mistério Eucarístico Eucharisticum Mysterium (25 de Maio de 1967), 35:AAS 59 (1967), 560 s.
(158) Cf. Jo 1, 29; Is 53, 7. 12.
(160) Cf. Mt 9, 2-7; Lc 5, 18-25; 7, 47-49, Mc 2, 3-12.
(16) Jo 20, 22; Mt 18, 18; cf. também, pelo que diz respeito a Pedro, Mt 16, 19. O Beato Isac della Stella, num seu discurso sobre a plena comunhão de Cristo com a Igreja no que se refere à remissão dos pecados, acentua: «A Igreja nada pode perdoar sem Cristo e Cristo nada quer perdoar sem a Igreja. A Igreja não pode perdoar senão a quem é penitente, isto é, a quem Cristo tocou com a sua graça; e Cristo nada quer considerar como perdoado a quem despreza a sua Igreja»: Sermo 11 (In dominica III post Epiphaniam, I): PL 194, 1729.
(163) Cf. Mt 12, 49 s.; Mc 3, 33 s.; Lc 8, 20 s.;Rom 8, 29: «primogénito entre muitos irmãos».
(165) Cf. Mt 18, 12 s.; Lc 15, 4-6.
(170) Cf. Discurso aos Penitenciários das Basílicas Patriarcais de Roma e aos Sacerdotes confessores, ao terminar o Jubileu da Redenção (9 de Julho de 1984): L'Osservatore Romano, 9-10 de Julho de 1984.
(173) Cf. Conc. Ecum. Tridentino, Sessio XIV, De sacramento Poenitentiae, cap. I e cân. 1: Conciliorum Oecumenicorum Decreta, ed. cit., 703 s., 711 (DS 1668-1670. 1701).
(174) Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, 11.
(175) Cf. Conc. Ecum. Tridentino, Sessio XIV, De sacramento Poenitentiae, cap. I e cân. 1: Conciliorum Oecumenicorum Decreta, ed. cit., 703 s., 711 (DS 1668-1670. 1701).
(176) Cf. Const. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 72.
(177) Cf. Rituale Romanum ex Decreto Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani II instauratum, auctoritate Pauli VI promulgatum. Ordo Paenitentiae, Typis Polyglottis Vaticanis, 1974.
(178) O Concílio de Trento usa a expressão atenuada «ad instar actus iudicialis» (Sessio XIV, De sacramento Poenitentiae, cap. 6: Conciliorum Oecumenicorum Decreta, ed. cit., 707 [DS 1685]), para frisar a diferença relativamente aos tribunais humanos. O novo Ritual da Penitência alude a esta função, nn. 6 b e 10 a.
(179) Cf. Lc 5, 31 s.: Não são os que gozam de saúde que precisam de médico, mas sim os que estão doentes», com a conclusão: «Eu (...) vim para chamar (...) os pecadores para que se arrependam; Lc 9, 2: «enviou-os a pregar o Reino de Deus e a curar os enfermos». A imagem de Cristo-médico adquire novas e impressionantes tonalidades, se a pusermos em confronto com a figura daquele «Servo de Javé» do qual o Livro de Isaías profetizava que «ele tomou sobre si as nossas enfermidades carregou-se com as nossas dores» e que «pelas suas chagas nós fomos curados» (Is 53, 4 s.).
(180) S. Agostinho, Sermo 82 8: PL 38, 511.
(181) Cf. S. Agostinho, Sermo 352, 3, 8-9- PL 39, 1558 s.
(182) Cf. Ordo Paenitentiae 6 c.
(183) Já os pagãos — como Sófocles (Antígona vv. 450-460) e Aristóteles (Rhetor., lib. I, cap. 15, 1375 a-b) reconheciam a existência de normas morais «divinas», que existiram «desde sempre» profundamente gravadas no coração do homem.
(184) Sobre este papel de consciência, cf. aquilo que tive ocasião de dizer no decorrer da Audiência Geral de 14 de Março de 1984, 3: Insegnamenti, VII, 1 (1984), 683.
(185) Cf. Conc. Ecum. Tridentino, Sessio XIV, De sacramento Poenitentiae, cap. IV De contritione: Conciliorum Oecumenicorum Decreta, ed. cit., 705 (DS 1676-1677). Como é conhecido, para se aproximar do sacramento da Penitência é suficiente a atrição, ou seja, um arrependimento imperfeito, devido mais ao temor do que ao amor; mas, no âmbito do Sacramento, sob a acção da graça que recebe, o penitente «ex attrito fit contritus»; de tal modo que a Penitência, de facto, produz como efeito em quem se aproximar dela bem disposto a conversão no amor: cf. Conc. Ecum. Tridentino, ibidem, ed. cit., 705 (DS 1678).
(186) Cf. Ordo Paenitentiae, 6 c.
(188) Sobre estes aspectos da Penitência, todos eles fundamentais, tive ocasião de falar nas Audiência Gerais de: 19 de Maio de 1982: Insegnamenti V, 2 (1982), 1758 ss.; 28 de Fevereiro de 1979: Insegnamenti, II (1979), 475-478; de 21 de Março de 1984: Insegnamenti, VII, 1 (1984), 720-722. Chama-se também a atenção para as normas do Código de Direito Canónico, que dizem respeito ao lugar para a administração do Sacramento e aos confessionários (cân. 964, 2-3).
(189) Tratei resumidamente do tema no decorrer da Audiência Geral de 7 de Março de 1984: Insegnamenti, VII, 1 (1984), 63 1-633.
(193) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. sobre o Ministério e Vida dos Sacerdotes Presbyterorum Ordinis, 18.
(195) Cf. Ordo Paenitentiae, 17.
(198) Cf. Is 42, 3; Mt 12, 20.
(199) Cf. Exort. Apostólica Familiaris Consortio, 84: AAS 74 (1982), 184-186.
(204) Ladainha do Sagrado Coração de Jesus; cf. 1 Jo 2, 2; Ef 2, 14; Rom 3, 25; 5, 11.
(205) João Paulo II, Discurso na Audiência Geral de 7 de Dezembro de 1983, n. 2: Insegnamenti, VI, 2 (1983), 1264.
(206) João Paulo II, Discurso da Audiência Geral de 4 de Janeiro de 1984: Insegnamenti, VII, 1 (1984), 16-18.
Gratissimam sane (1994)
CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II
ÀS FAMÍLIAS
GRATISSIMAM SANE
1994 – ANO DA FAMÍLIA
Queridas Famílias!
1. A celebração do Ano da Família oferece-me o feliz ensejo de bater à porta da vossa casa, no desejo de vos apresentar as mais afectuosas saudações e conversar convosco. Faço-o através desta Carta, que inicio com as palavras da Encíclica Redemptor hominis, publicada nos primeiros dias do meu Ministério Petrino. Escrevia então : o homem é a via da Igreja (1).
Com esta afirmação, queria sobretudo aludir às múltiplas estradas ao longo das quais caminha o homem, e ao mesmo tempo sublinhar quão vivo e profundo é o desejo da Igreja de o acompanhar no percurso das vias da sua existência terrena. A Igreja toma parte nas alegrias e nas esperanças, nas tristezas e nas angústias (2) do caminho quotidiano dos homens, profundamente convicta de que foi o próprio Cristo Quem a introduziu em todas estas sendas: foi Ele que confiou o homem à Igreja; confiou-o como «via» da sua missão e ministério.
A família: via da Igreja
2. Dentre essas numerosas estradas, a primeira e a mais importante é a família: uma via comum, mesmo se permanece particular, única e irrepetível, como irrepetível é cada homem; uma via da qual o ser humano não pode separar-se. Com efeito, normalmente ele vem ao mundo no seio de uma família, podendo-se dizer que a ela deve o próprio facto de existir como homem. Quando falta a família logo à chegada da pessoa ao mundo, acaba por criar-se uma inquietante e dolorosa carência que pesará depois sobre toda a vida. A Igreja une-se com afectuosa solicitude a quantos vivem tais situações, porque está bem ciente do papel fundamental que a família é chamada a desempenhar. Ela sabe, ainda, que normalmente o homem sai da família para realizar, por sua vez num novo núcleo familiar, a própria vocação de vida. Mesmo quando opta por ficar sozinho, a família permanece, por assim dizer, o seu horizonte existencial, como aquela comunidade fundamental onde se radica toda a rede das suas relações sociais, desde as mais imediatas e próximas até às mais distantes. Porventura não usamos a expressão «família humana», para nos referirmos ao conjunto dos homens que vivem no mundo?
A família tem a sua origem naquele mesmo amor com que o Criador abraça o mundo criado, como se afirma já «ao princípio», no livro do Génesis (1, 1). Uma suprema confirmação disso mesmo, no-la oferece Jesus no Evangelho: «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito» (Jo 3, 16). O Filho unigénito, consubstancial ao Pai, «Deus de Deus, Luz da Luz», entrou na história dos homens através da família: «Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, (...) amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado» (3). Se é certo que Cristo «revela plenamente o homem a si mesmo» (4), fá-lo a começar da família onde Ele escolheu nascer e crescer. Sabe-se que o Redentor passou grande parte da sua vida no recanto escondido de Nazaré, «submisso» (Lc 2, 51) como «filho do homem» a Maria, sua Mãe, e a José, o carpinteiro. Esta sua «obediência» filial não é já a primeira manifestação daquela obediência ao Pai «até à morte» (Fil 2, 8), por meio da qual redimiu o mundo?
O mistério divino da Encarnação do Verbo está, pois, em estreita relação com a família humana. Não apenas com uma — a de Nazaré —, mas de certo forma com cada família, analogamente a quanto afirma o Concílio Vaticano II do Filho de Deus que, na encarnação, «Se uniu de certo modo com cada homem» (5). Seguindo a Cristo que «veio» ao mundo «para servir» (Mt 20, 28), a Igreja considera o serviço à família uma das suas obrigações essenciais. Neste sentido, tanto o homem como a família constituem «a via da Igreja».
O Ano da Família
3. Por isso mesmo, a Igreja saúda com alegria a iniciativa promovida pela Organização das Nações Unidas, de fazer de 1994 o Ano Internacional da Família. Tal iniciativa põe em realce o quanto seja fundamental a questão familiar para os Estados que são membros da ONU. Se a Igreja deseja tomar parte nela, fá-lo porque ela mesma foi enviada por Cristo a «todas as nações» (Mt 28, 19). Não é a primeira vez, aliás, que a Igreja assume como própria uma iniciativa internacional da ONU. Basta recordar, por exemplo, o Ano Internacional da Juventude em 1985. Também deste modo ela se faz presente no mundo, realizando a intenção grata ao Papa João XXIII e inspiradora da Constituição conciliar Gaudium et spes.
Na festa da Sagrada Família de 1993, teve início em toda a Comunidade eclesial o «Ano da Família», como uma das etapas significativas no itinerário de preparação para o Grande Jubileu do ano 2000, que assinalará o fim do segundo e o início do terceiro Milénio do nascimento de Jesus Cristo. Este Ano deve orientar os nossos pensamentos e os nossos corações para Nazaré, onde, no passado dia 26 de Dezembro, aquele foi oficialmente inaugurado com a solene Celebração Eucarística presidida pelo Legado Pontifício.
Ao longo deste Ano, é importante redescobrir os testemunhos do amor e da solicitude da Igreja pela família: amor e solicitude expressos desde os primórdios do cristianismo, quando a família era significativamente considerada como «igreja doméstica». Nos nossos tempos, voltamos frequentemente a esta expressão «igreja doméstica», que o Concílio assumiu (6) e cujo conteúdo desejamos permaneça sempre vivo e actual. Este desejo não esmorece com a consciência das novas condições das famílias no mundo de hoje. Por isso mesmo, é mais significativo que nunca o título escolhido pelo Concílio, na Constituição pastoral Gaudium et spes, para indicar as tarefas da Igreja na situação actual: «A promoção da dignidade do matrimónio e da família» (7). Depois do Concílio, um outro ponto importante de referência é a Exortação apostólica Familiaris consortio do ano 1981. Neste texto, encara-se uma vasta e complexa experiência relativa à família, que, no meio de povos e países diversos, permanece sempre e em todo o lado «a via da Igreja». De certo modo, torna-se-lo ainda mais precisamente lá onde a família sofre crises internas, ou está sujeita a influências culturais, sociais e económicas nocivas, que lhe minam a estabilidade interna, quando não obstaculizam mesmo a sua própria formação.
A oração
4. Com a presente Carta, quereria dirigir-me não à família «em abstracto», mas a cada família concreta de cada região da terra, qualquer que seja a longitude e latitude geográfica, onde se encontre, ou a diversidade e complexidade da sua cultura e da sua história. O amor com que Deus «amou o mundo» (Jo 3, 16), o amor com que Cristo «amou até ao fim» a todos e cada um (Jo 13, 1), torna possível dirigir esta mensagem a toda a família, «célula» vital da grande e universal «família» humana. O Pai, Criador do universo, e o Verbo encarnado, Redentor da humanidade, constituem a fonte desta abertura universal aos homens como a irmãos e irmãs, e impele a abraçá-los todos com a oração que começa pelas ternas palavras: «Pai nosso».
A oração faz com que o Filho de Deus habite no meio de nós: «Onde estiverem reunidos, em meu Nome, dois ou três, Eu estou no meio deles» (Mt 18, 20). Esta Carta às Famílias quer ser sobretudo uma súplica dirigida a Cristo, para que permaneça em cada família humana; uma súplica feita a Ele, através da família restrita dos pais e filhos, para que habite na grande família das nações, a fim de que todos, juntos com Ele, possamos dizer com verdade: «Pai nosso»! É preciso que a oração se torne o elemento predominante do Ano da Família na Igreja: oração da família, oração pela família, oração com a família.
Significativo é que, precisamente na oração e pela oração, o homem descubra, de modo tão simples e ao mesmo tempo profundo, a sua típica subjectividade: na oração, o «eu» humano percebe mais facilmente a profundidade do seu ser pessoa. Isto vale também para a família, que não é apenas a «célula» fundamental da sociedade, mas possui mesmo uma própria e peculiar subjectividade. Esta obtém a sua primeira e fundamental confirmação, e consolida-se, quando os membros da família se encontram na invocação comum: «Pai nosso». A oração reforça a estabilidade e a solidez espiritual da família, ajudando a fazer com que esta participe da «fortaleza» de Deus. Na solene «bênção nupcial» durante o rito do matrimónio, o celebrante invoca deste modo o Senhor: «Efunde sobre eles (os recém-casados) a graça do Espírito Santo, a fim de que, em virtude do teu amor derramado nos seus corações, perseverem fiéis na aliança conjugal» (8). É desta «efusão do Espírito Santo» que dimana a força interior das famílias, bem como o poder susceptível de as unificar no amor e na verdade.
O amor e a solicitude por todas as famílias
5. Que o Ano da Família se torne uma comum e incessante oração de cada uma das «igrejas domésticas» e de todo o Povo de Deus! Desta oração, beneficiem também as famílias em dificuldade ou em perigo, as famílias desanimadas ou divididas, e aquelas que se encontram nas situações que a Familiaris consortio qualifica como «irregulares» (9). Possam sentir-se todas abraçadas pelo amor e pela solicitude dos irmãos e das irmãs!
A oração, no Ano da Família, constitua sobretudo um testemunho encorajador por parte das famílias que realizam na comunhão doméstica a sua vocação de vida humana e cristã. E são tantas em cada nação, diocese e paróquia! Pode-se razoavelmente pensar que elas constituem «a regra», mesmo tendo presente as não poucas «situações irregulares». E a experiência demonstra como o papel de uma família coerente com a norma moral é importante para o homem, que nela nasce e se forma, ingressar sem hesitações pela estrada do bem, inscrito sempre no seu coração. Nos nossos dias, infelizmente, vários programas sustentados por meios muito poderosos parecem apostados na desagregação das famílias. Às vezes, até parece que se procure, por todas as formas possíveis, apresentar como «regulares» e atraentes, conferindo-lhes externas aparências de fascínio, situações que, de facto, são «irregulares». Estas, efectivamente, contradizem a «verdade e o amor» que devem inspirar e guiar a recíproca relação entre homens e mulheres, sendo assim causa de tensões e divisões nas famílias, com graves consequências especialmente sobre os filhos. Fica obscurecida a consciência moral, aparece deformado o que é verdadeiro, bom e belo, e a liberdade acaba suplantada por uma verdadeira e própria escravidão . Perante tudo isto, como ressoam actuais e incentivadoras as palavras do apóstolo Paulo acerca da liberdade com que Cristo nos libertou, e da escravidão causada pelo pecado (cf. Gál 5, 1)!
Damo-nos, assim, conta de quanto seja oportuno e até necessário na Igreja um Ano da Família; quão indispensável seja o testemunho de todas as famílias que vivem dia-a-dia a sua vocação; quanta urgência exista de uma grande oração das famílias, que aumente e atravesse o mundo inteiro, e na qual se exprima a acção de graças pelo amor na verdade, pela «efusão da graça do Espírito Santo» (10), pela presença de Cristo entre os pais e os filhos: Cristo Redentor e Esposo, que «nos amou até ao fim» (cf. Jo 13, 1). Estamos intimamente persuadidos de que este amor é maior que tudo (cf. 1 Cor 13, 13), e cremos que ele é capaz de superar vitoriosamente tudo o que não é amor.
Neste ano, eleve-se incessante a oração da Igreja, a oração das famílias, «igrejas domésticas»! E faça-se ouvir primeiro a Deus e depois também aos homens, para que estes não caiam na dúvida, e quantos vacilam por causa da fragilidade humana não cedam à sedução tentadora de bens só aparentes, como são aqueles propostos em toda a tentação.
Em Caná da Galileia, onde Jesus foi convidado para um banquete de núpcias, a sua Mãe, também Ela presente, dirigiu-se aos serventes, dizendo: «Fazei o que Ele vos disser» (Jo 2, 5). Também a nós, entrados no Ano da Família, Maria nos dirige as mesmas palavras. E aquilo que Cristo nos diz neste momento histórico particular, constitui um forte apelo a uma grande oração com as famílias e pelas famílias. Por esta oração, a Virgem Mãe convida a unirmo-nos aos sentimentos do Filho, que ama cada uma das famílias. Este amor foi por Ele expresso ao início da sua missão de Redentor, precisamente com a sua presença santificadora em Caná da Galileia, presença que ainda agora continua.
Rezemos pelas famílias de todo o mundo. Por Ele, com Ele e n'Ele, rezemos ao Pai, «do Qual toda a paternidade, nos Céus como na Terra, toma o nome» (Ef 3, 15).
I
A CIVILIZAÇÃO DO AMOR
«Ele os criou homem e mulher»
6. O cosmos, imenso e tão diversificado, o mundo de todos os seres vivos está inscrito na paternidade de Deus como sua fonte (cf. Ef 3, 14-16). Naturalmente, está lá inscrito segundo o princípio da analogia que nos permite individuar, já ao início do livro do Génesis, a realidade da paternidade e maternidade, e, consequentemente, da família humana também. A chave interpretativa está na expressão «imagem» e «semelhança» de Deus, que o texto bíblico acentua com grande relevo (Gn 1, 26). Deus cria em virtude da sua palavra: «Faça-se!» (por exemplo, Gn 1, 3). É significativo que esta palavra de Deus, no caso da criação do homem, seja completada pelos seguintes termos: «Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança» (Gn 1, 26). Antes de criar o homem, o Criador como que reentra em Si mesmo para procurar o modelo e a inspiração no mistério do seu Ser, que já aqui Se manifesta de algum modo como o «Nós» divino. Deste mistério deriva, por via de criação, o ser humano: «Deus criou o homem à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gn 1, 27).
Abençoando os novos seres, Deus diz-lhes: «Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra» (Gn 1, 28). O livro do Génesis usa expressões já empregues no contexto da criação dos outros seres vivos: «Multiplicai-vos», mas é bem claro o seu sentido analógico. Não é esta a analogia da geração e da paternidade e maternidade, que se há-de ler à luz de todo o contexto? Nenhum dos seres vivos, à excepção do homem, foi criado «à imagem e semelhança de Deus». A paternidade e a maternidade humana, mesmo sendo biologicamente semelhantes às de outros seres da natureza, têm em si mesmas de modo essencial e exclusivo uma «semelhança» com Deus, sobre a qual se funda a família, concebida como comunidade de vida humana, como comunidade de pessoas unidas no amor (Communio personarum).
À luz do Novo Testamento, é possível vislumbrar como o modelo originário da família deve ser procurado no próprio Deus, no mistério trinitário da sua vida. O «Nós» divino constitui o modelo eterno do «nós» humano; e, em primeiro lugar, daquele «nós» que é formado pelo homem e pela mulher, criados à imagem e semelhança de Deus. As palavras do livro do Génesis encerram em si aquela verdade sobre o homem, que corresponde à própria experiência da humanidade. O ser humano é criado, desde «o princípio», como homem e mulher: a vida da colectividade humana — tanto das pequenas comunidades como da sociedade inteira — está marcada por esta dualidade primordial. Dela derivam a «masculinidade» e a «feminilidade» dos simples indivíduos, tal como daí recebe cada comunidade a própria riqueza característica, no recíproco complemento das pessoas. A isto mesmo parece aludir a citação do livro do Génesis: «Ele os criou homem e mulher» (Gn 1, 27). Esta é também a primeira afirmação da igual dignidade do homem e da mulher: ambos são, igualmente, pessoas. Esta sua constituição, com a dignidade específica que daí deriva, define desde «o princípio» as características do bem comum da humanidade, em todas as dimensões e âmbitos da vida. A este bem comum, ambos, o homem e a mulher, dão o próprio contributo, graças ao qual se constata, nas próprias raízes da convivência humana, o carácter de comunhão e complementariedade.
A aliança conjugal
7. A família foi sempre considerada como a primeira e fundamental expressão da natureza social do homem. No seu núcleo essencial, tampouco esta visão mudou hoje. Se bem que, em nossos dias, prefere-se ressaltar na família, que constitui a mais pequena e primordial comunidade humana, quanto provém do contributo pessoal do homem e da mulher. A família é realmente uma comunidade de pessoas, para quem o modo próprio de existirem e viverem juntas é a comunhão: comunhão de pessoas. Também aqui, sempre ressalvando a absoluta transcendência do Criador relativamente à criatura, emerge a referência exemplar ao «Nós» divino. Somente as pessoas são capazes de viver «em comunhão». A família tem início na comunhão conjugal, que o Concílio Vaticano II classifica como «aliança», na qual o homem e a mulher «mutuamente se dão e recebem um ao outro» (11).
O livro do Génesis abre-nos a esta verdade quando, referindo-se à constituição da família mediante o matrimónio, afirma que «o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2, 24). No Evangelho, Cristo, em polémica com os fariseus, enuncia as mesmas palavras e acrescenta: «Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Pois bem, o que Deus uniu, não o separe o homem» (Mt 19, 6). Ele revela novamente o conteúdo normativo de um facto que existe já «ao princípio» (Mt 19, 8) e que conserva sempre em si esse conteúdo. Se o Mestre o confirma «agora», fá-lo para tornar claro e inequivocável a todos, no limiar da Nova Aliança, o carácter indissolúvel do matrimónio, qual fundamento do bem comum da família.
Quando, juntamente com o Apóstolo, dobramos os joelhos diante do Pai, do Qual toda a paternidade e maternidade recebe o nome (cf. Ef 3, 14-15), tomamos consciência de que o facto de se tornarem pais faz com que a família, já constituída pela aliança conjugal do matrimónio, se realize «em sentido pleno e específico» (12). A maternidade implica necessariamente a paternidade e, vice-versa, a paternidade implica necessariamente a maternidade: é o fruto da dualidade obsequiada pelo Criador ao ser humano, desde «o princípio».
Fiz referência a dois conceitos afins entre si, mas não idênticos: o conceito de «comunhão» e o de «comunidade». A «comunhão» diz respeito à relação pessoal entre o «eu» e o «tu». A «comunidade», pelo contrário, supera este esquema na direcção de uma «sociedade», de um «nós». A família, comunidade de pessoas, é, pois, a primeira «sociedade» humana. Ela surge no momento em que se realiza a aliança do matrimónio, que abre os cônjuges a uma perene comunhão de amor e de vida, e completa-se plenamente e de modo específico com a geração dos filhos: a «comunhão» dos cônjuges dá início à «comunidade» familiar. A «comunidade» familiar está totalmente permeada daquilo que constitui a essência própria da «comunhão». Poderá haver, no plano humano, uma outra «comunhão» comparável àquela que acaba por se estabelecer entre a mãe e o filho, por ela primeiro levado no seio e depois dado à luz?
Na família assim constituída, manifesta-se uma nova unidade, na qual encontra pleno cumprimento a relação «de comunhão» dos pais. A experiência ensina que esse cumprimento representa, no entanto, uma tarefa e um desafio. A tarefa empenha os cônjuges, na actuação da sua aliança originária. Os filhos, por eles gerados, deveriam — está aqui o desafio — consolidar tal aliança, enriquecendo e arraigando a comunhão conjugal do pai e da mãe. Quando tal não sucede, há que perguntar-se se o egoísmo, que, por causa da inclinação humana para o mal, se esconde inclusive no amor do homem e da mulher, não seja mais forte do que este amor. É preciso que os esposos estejam bem cientes disso. É necessário que, desde o princípio, eles tenham os corações e os pensamentos voltados para aquele Deus, «do Qual toda a paternidade toma o nome», a fim de que a sua paternidade e maternidade tirem daquela fonte a força de se renovarem continuamente no amor.
Paternidade e maternidade representam em si mesmas uma particular confirmação do amor, cuja extensão e profundidade original permitem descobrir. Isso, porém, não acontece automaticamente. É, antes, um dever confiado a ambos: ao marido e à esposa. Nas suas vidas, a paternidade e a maternidade constituem uma «novidade» e uma riqueza tão sublime que apenas «de joelhos» é possível abeirar-se delas.
A experiência ensina que o amor humano, por sua natureza orientado para a paternidade e a maternidade, é às vezes afectado por uma profunda crise, que o deixa seriamente ameaçado. Há que tomar em consideração, nesses casos, o recurso aos serviços oferecidos pelos consultórios matrimoniais e familiares, mediante os quais é possível valer-se, entre outras coisas, da ajuda de psicólogos e psicoterapeutas especificamente preparados. Não se pode esquecer, todavia, que continuam sempre válidas as palavras do Apóstolo: «Dobro os joelhos diante do Pai, do Qual toda a paternidade, nos Céus como na Terra, toma o nome». O matrimónio, o matrimónio sacramento, é uma aliança de pessoas no amor. E o amor pode ser aprofundado e guardado apenas pelo Amor, aquele Amor que é «derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi concedido» (Rom 5, 5). A oração no Ano da Família não deveria concentrar-se sobre o ponto crucial e decisivo da passagem do amor conjugal à geração e, por isso, à paternidade e maternidade? Não é precisamente então que se torna indispensável a «efusão da graça do Espírito Santo», invocada na celebração litúrgica do sacramento do matrimónio?
O Apóstolo, dobrando os joelhos diante do Pai, implora-Lhe que «vos conceda (...) que sejais poderosamente fortalecidos pelo seu Espírito quanto ao crescimento do homem interior » (Ef 3, 16). Esta «força do homem interior» é necessária na vida familiar, especialmente nos seus momentos críticos, ou seja, quando o amor, que no rito litúrgico do consentimento conjugal foi expresso pelas palavras: «Prometo ser-te fiel, (...) por toda a nossa vida», é chamado a superar um difícil exame.
A união dos dois
8. Somente as «pessoas» são capazes de pronunciar tais palavras; apenas elas conseguem viver «em comunhão» sobre a base da escolha recíproca, que é, ou deveria ser, plenamente consciente e livre. O livro do Génesis, ao falar do homem que deixa o pai e a mãe para se unir à sua mulher (cf. Gn 2, 24), põe em evidência a opção consciente e livre que dá origem ao matrimónio, tornando marido um filho, e esposa uma filha. Como entender adequadamente esta escolha recíproca, se não se tem presente a verdade plena da pessoa, ou seja, do ser racional e livre? O Concílio Vaticano II fala da semelhança com Deus, usando termos muito significativos. Ele faz referência não apenas à imagem e semelhança divina que todo o ser humano já possui enquanto tal, mas também e sobretudo a «uma certa analogia entre a união das pessoas divinas entre Si e a união dos filhos de Deus na verdade e no amor» (13).
Esta formulação, particularmente rica e sugestiva, confirma sobretudo o que decide a identidade íntima de cada homem e de cada mulher. Tal identidade consiste na capacidade de viver na verdade e no amor; melhor ainda, consiste na necessidade da verdade e do amor qual dimensão constitutiva da vida da pessoa. Essa necessidade de verdade e de amor abre o homem quer a Deus quer às criaturas: abre-o às outras pessoas, à vida «em comunhão», em particular, ao matrimónio e à família. Nas palavras do Concílio, a «comunhão» das pessoas, em certo sentido, deriva do mistério do «Nós» trinitário e, por conseguinte, também a «comunhão conjugal» deve ser referida ao mesmo mistério. A família, que tem início no amor do homem e da mulher, dimana radicalmente do mistério de Deus. Isto corresponde à essência mais íntima do homem e da mulher, à sua constitutiva e autêntica dignidade de pessoa.
No matrimónio, o homem e a mulher unem-se entre si tão firmemente que se tornam — segundo as palavras do livro do Génesis — «uma só carne» (Gn 2, 24). Homem e mulher por constituição física, os dois sujeitos humanos, apesar de somaticamente diferentes, participam de modo igual na capacidade de viver «na verdade e no amor». Esta capacidade, característica do ser humano enquanto pessoa, tem uma dimensão conjuntamente espiritual e corpórea. É através do corpo também que o homem e a mulher estão predispostos para formarem uma «comunhão de pessoas» no matrimónio. Quando, em virtude da aliança conjugal, eles se unem de tal maneira que se tornam «uma só carne » (Gn 2, 24), a sua união deve-se realizar «na verdade e no amor», pondo assim em evidência a maturidade própria de pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus.
A família, que daí deriva, obtém a sua solidez interior da aliança entre os cônjuges, que Cristo elevou a Sacramento. Ela recebe a própria índole comunitária, ou melhor, as suas características de «comunhão», daquela comunhão fundamental dos cônjuges que se prolonga nos filhos. «Estais dispostos a receber amorosamente da mão de Deus os filhos e a educá-los...?» — pergunta o celebrante durante o rito do matrimónio (14). A resposta dos noivos corresponde à mais íntima verdade do amor que os une. Assim a sua união, em vez de os fechar em si mesmos, abre-os a uma nova vida, a uma nova pessoa. Como pais, serão capazes de dar a vida a um ser semelhante a eles, não apenas «osso dos seus ossos e carne da sua carne» (cf. Gn 2, 23), mas imagem e semelhança de Deus, isto é, pessoa.
Ao perguntar: «Estais dispostos?», a Igreja recorda aos noivos que eles se encontram perante o poder criador de Deus. São chamados a tornar-se pais, ou seja, a cooperar com o Criador no dom da vida. Cooperar com Deus no chamamento à vida de novos seres humanos, significa contribuir para a transmissão daquela imagem e semelhança divina, de que é portador todo o «nascido de mulher».
A genealogia da pessoa
9. Através da comunhão de pessoas, que se realiza no matrimónio, o homem e a mulher dão início à família. Com a família está ligada a genealogia de cada homem: a genealogia da pessoa. A paternidade e a maternidade humana estão radicadas na biologia e, ao mesmo tempo, superam-na. O Apóstolo, «dobrando os joelhos diante do Pai, do Qual toda a paternidade 1, nos Céus como na Terra, toma o nome», em certo sentido coloca diante do nosso olhar o mundo inteiro dos seres vivos, desde os espirituais nos céus até aos corporais na terra. Toda a geração encontra o seu modelo originário na Paternidade de Deus. Todavia, no caso do homem, esta dimensão «cósmica» de semelhança com Deus não basta para definir adequadamente a relação de paternidade e maternidade. Quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa.
Ao afirmarmos que os cônjuges, enquanto pais, são colaboradores de Deus Criador na concepção e geração de um novo ser humano (15), não nos referimos apenas às leis da biologia; pretendemos sobretudo sublinhar que, na paternidade e maternidade humana, o próprio Deus está presente de um modo diverso do que se verifica em qualquer outra geração «sobre a terra». Efectivamente, só de Deus pode provir aquela «imagem e semelhança» que é própria do ser humano, tal como aconteceu na criação. A geração é a continuação da criação (16).
Assim, pois, tanto na concepção como no nascimento de um novo homem, os pais encontram-se diante de um «grande mistério» (Ef 5, 32). Também o novo ser humano, não diversamente dos pais, é chamado à existência como pessoa, é chamado à vida «na verdade e no amor». Tal chamamento não se abre só a quanto existe no tempo, mas em Deus abre- -se à eternidade. Esta é a dimensão da genealogia da pessoa, que Cristo nos revelou definitivamente, projectando a luz do seu Evangelho sobre o viver e o morrer humano e, portanto, sobre o significado da família humana.
Como afirma o Concílio, o homem é a «única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma» (17). A origem do homem não obedece apenas às leis da biologia, mas sim e directamente à vontade criadora de Deus: é a esta vontade que se fica a dever a genealogia dos filhos e filhas das famílias humanas. Deus «quis» o homem desde o princípio — e Deus «o quer» em cada concepção e nascimento humano. Deus «quer» o homem como um ser semelhante a Si, como pessoa. Este homem, cada homem, é criado por Deus «por si mesmo». Isto aplica-se a todos, incluindo aqueles que nascem com doenças ou deficiências. Na constituição pessoal de cada um, está inscrita a vontade de Deus que quer o homem como fim, em certo sentido, de si mesmo. Deus entrega o homem a si mesmo, confiando-o contemporaneamente à família e à sociedade, como sua tarefa. Os pais, diante de um novo ser humano, têm, ou deveriam ter, plena consciência do facto que Deus «quer» este homem «por si mesmo».
Esta sintética expressão é muito rica e profunda. Desde o momento da concepção, e do nascimento depois, o novo ser está destinado a exprimir em plenitude a sua humanidade — a «encontrar-se» como pessoa (18). Isto diz respeito absolutamente a todos, também aos doentes crónicos e deficientes. «Ser homem» é a sua vocação fundamental: «ser homem» à medida do dom recebido. À medida daquele «talento» que é a humanidade própria e, só depois, à medida dos outros talentos. Neste sentido, Deus quer cada homem «por si mesmo». Mas, no desígnio de Deus, a vocação da pessoa ultrapassa os confins do tempo. Vai ao encontro da vontade do Pai, revelada no Verbo encarnado: Deus quer oferecer ao homem a participação na sua própria vida divina. Cristo diz: «Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância» (Jo 10, 10).
O destino último do homem não está em contraste com a afirmação de que Deus quer o homem «por si mesmo»? Se é criado para a vida divina, existe o homem verdadeiramente «por si mesmo»? Esta é uma pergunta-chave, com grande importância tanto ao desabrochar como ao findar da existência terrena: é importante por toda a duração da vida. Poderia parecer que, destinando o homem à vida divina, Deus o subtraia definitivamente ao seu existir «por si mesmo» (19). Qual é a relação que existe entre a vida da pessoa e a participação na vida trinitária? Responde- -nos S. Agostinho com as célebres palavras: «O nosso coração está inquieto, enquanto não repousa em Ti» (20). Este «coração inquieto» indica que, de facto, não há contradição entre uma finalidade e a outra, mas sim uma ligação, uma coordenação, uma unidade profunda. Pela sua própria genealogia, a pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus, é precisamente participando na vida d'Ele que existe «por si mesma» e se realiza. O conteúdo de tal realização é a plenitude da vida em Deus, a mesma de que fala Cristo (cf. Jo 6, 37-40), que nos redimiu exactamente para nos introduzir nela (cf. Mc 10, 45).
Os cônjuges desejam os filhos para si, vendo neles o coroamento do seu amor recíproco. Desejam-nos para a família, qual dom preciosíssimo (21). É um desejo, em certa medida, compreensível. Todavia, no amor conjugal e no amor paterno e materno, deve inscrever-se a verdade do homem, expressa de maneira sintética e precisa pelo Concílio com a afirmação de que Deus «quer o homem por si mesmo». É necessário, por isso, que a vontade dos pais se harmonize com o querer de Deus: neste sentido, eles devem querer a nova criatura humana como a quer o Criador: «por si mesma». A vontade humana está sempre e inevitavelmente sujeita à lei do tempo e da caducidade. A vontade divina, pelo contrário, é eterna. «Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te conhecia — lê-se no livro do profeta Jeremias; antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei» (1, 5). Portanto, a genealogia da pessoa está unida primariamente com a eternidade de Deus e, só depois, com a paternidade e a maternidade humana, que se realizam no tempo. No instante mesmo da concepção, o homem já está ordenado para a eternidade em Deus.
O bem comum do matrimónio e da família
10. O consentimento matrimonial define e torna estável o bem que é comum ao matrimónio e à família. «Recebo-te por minha esposa — por meu esposo —, e prometo ser-te fiel e amar-te e honrar-te, tanto na prosperidade como na provação, por toda a nossa vida» (22). O matrimónio é uma singular comunhão de pessoas. Na base de tal comunhão, a família é chamada a tornar-se comunidade de pessoas. É um compromisso que os noivos assumem «diante de Deus e da Igreja», como lhes recorda o celebrante no momento em que mutuamente trocam o consentimento (23). Desse compromisso, são testemunhas quantos participam no rito; neles se encontram representadas, em certo sentido, a Igreja e a sociedade, âmbitos vitais da nova família.
As palavras do consentimento matrimonial definem aquilo que constitui o bem comum do casal e da família. Antes de mais, o bem comum dos esposos: o amor, a fidelidade, a honra, a permanência da sua união até à morte — «por toda a nossa vida». O bem de ambos, que é simultaneamente o bem de cada um, deve tornar-se depois o bem dos filhos. Por sua natureza, o bem comum ao mesmo tempo que une as diversas pessoas, assegura o verdadeiro bem de cada uma. Se a Igreja, como aliás o Estado, recebe o consentimento dos cônjuges expresso através das palavras acima referidas, fá-lo porque aquele está «escrito nos seus corações» (Rom 2, 15). São os esposos que se dão reciprocamente o consentimento matrimonial, jurando, isto é, confirmando diante de Deus a verdade do seu consentimento. Enquanto baptizados, eles são na Igreja os ministros do sacramento do matrimónio. S. Paulo ensina que o seu compromisso recíproco é «um grande mistério» (Ef 5, 32).
Assim, as palavras do consentimento exprimem aquilo que constitui o bem comum dos cônjuges e indicam o que deve ser o bem comum da futura família. Desejando pô-lo em evidência, a Igreja pergunta- -lhes se estão dispostos a acolher e a educar cristã mente os filhos que Deus lhes quiser dar. A pergunta refere-se ao bem comum do futuro núcleo familiar, tendo presente a genealogia das pessoas, inscrita na própria constituição do matrimónio e da família. A pergunta sobre os filhos e a sua educação está estritamente ligada com o consentimento conjugal, com o juramento de amor, de respeito conjugal, de fidelidade até à morte. O acolhimento e a educação dos filhos — duas das finalidades principais da família — estão condicionados pelo cumprimento desse compromisso. A paternidade e a maternidade representam uma tarefa de natureza conjuntamente física e espiritual; através daquelas, passa realmente a genealogia da pessoa, que tem o seu princípio eterno em Deus e a Ele deve conduzir.
O Ano da Família, ano de particular oração das famílias, deveria tornar cada família consciente de tudo isto, de um modo novo e profundo. Existe uma grande riqueza de motivos bíblicos, que pode servir de substrato a essa oração. Às palavras da Sagrada Escritura, é necessário juntar sempre a recordação pessoal dos cônjuges-pais, e a dos filhos e netos. Mediante a genealogia das pessoas, a comunhão conjugal torna-se comunhão das gerações. A união sacramental dos dois, selada pela aliança estipulada diante de Deus, perdura e consolida-se na sucessão das gerações. Essa união sacramental deve tornar-se união de oração. Mas, para que isto possa transparecer significativamente no Ano da Família, é indispensável que a oração se torne um hábito arraigado na vida quotidiana de cada família. A oração é acção de graças, louvor a Deus, pedido de perdão, súplica e invocação. Em cada uma destas formas, a oração da família tem muito que dizer a Deus. Também tem tanto que dizer aos homens, a começar pela recíproca comunhão das pessoas unidas por laços familiares.
«Que é o homem, para Vos lembrardes dele?» (Sal 8, 5), pergunta-se o Salmista. A oração é o espaço onde, do modo mais simples, se manifesta a recordação criadora e paterna de Deus: não apenas e nem tanto a recordação de Deus por parte do homem, como sobretudo a recordação do homem por parte de Deus. Por isso, a oração da comunidade familiar pode tornar-se lugar da recordação comum e recíproca: efectivamente, a família é comunidade de gerações. Na oração, todos devem estar presentes: aqueles que vivem e os que já morreram, como também quantos ainda devem vir ao mundo. É necessário que na família se reze por cada um, na medida do bem que a família constitui para ele e do bem que ele constitui para a família. A oração corrobora mais solidamente um tal bem, precisamente como bem comum familiar. Mais ainda, aquela dá também início a este bem, de um modo sempre renovado. Na oração, a família reencontra-se como o primeiro «nós», no qual cada um é «eu » e «tu»; cada um é para o outro respectivamente marido ou esposa, pai ou mãe, filho ou filha, irmão ou irmã, avô ou neto.
São assim as famílias, às quais me dirijo com esta Carta? Certamente não poucas são assim, mas os tempos em que vivemos manifestam a tendência para restringir o núcleo familiar ao âmbito de duas gerações. Isso sucede frequentemente por causa do acanhamento das moradias disponíveis, sobretudo nas grandes cidades. Mas também e não raro, o mesmo se fica a dever à convicção de que mais gerações em conjunto são obstáculo à intimidade e tornam demasiado difícil a vida. Mas, não é precisamente este o ponto fraco? Há pouca vida humana nas famílias dos nossos dias. Faltam as pessoas com quem criar e partilhar o bem comum; e contudo, o bem, por sua natureza, exige ser criado e partilhado com os outros, porque «bonum est diffusivum sui», «o bem tende a difundir-se» (24). Quanto mais for comum o bem, tanto mais ele será próprio: meu — teu — nosso. Esta é a lógica intrínseca do viver no bem, na verdade e no amor. Se o homem sabe acolher esta lógica e segui-la, a sua existência torna-se verdadeiramente um «dom sincero».
O dom sincero de si
11. Depois de afirmar que o homem é a única criatura sobre a terra querida por Deus por si mesma, o Concílio acrescenta que ele «não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo» (25). Poderia parecer uma contradição, mas não o é de facto. Trata-se, antes, do grande e maravilhoso paradoxo da existência humana: uma existência chamada a servir a verdade no amor. O amor faz com que o homem se realize através do dom sincero de si: amar significa dar e receber aquilo que não se pode comprar nem vender, mas apenas livre e reciprocamente oferecer.
Por sua natureza, o dom da pessoa exige ser duradouro e irrevogável. A indissolubilidade do matrimónio deriva primariamente da essência de tal dom: dom da pessoa à pessoa. Nesta doação recíproca, manifesta-se o carácter esponsal do amor. Ao prestarem o consentimento matrimonial, os noivos identificam-se pelo seu nome próprio: «Eu... recebo-te por minha esposa (por meu esposo) a ti... e prometo ser-te fiel (...) por toda a nossa vida». Semelhante dom obriga muito mais forte e profundamente que tudo quanto possa ser «comprado» de qualquer modo e por qualquer preço. Dobrando os joelhos diante do Pai, do Qual provém toda a paternidade e maternidade, os futuros pais tornam-se conscientes de terem sido «redimidos». Foram realmente comprados por um alto preço, pelo preço do dom mais sincero possível, o sangue de Cristo, no qual participam por meio do sacramento. Coroamento litúrgico do consentimento matrimonial é a Eucaristia — sacrifício do «corpo entregue» e do «sangue derramado» —, que no consentimento dos cônjuges encontra, de certo modo, uma sua expressão.
Quando no matrimónio, o homem e a mulher se dão e recebem reciprocamente na união de «uma só carne», a lógica do dom sincero entra na vida deles. Sem ela, o matrimónio seria vazio, enquanto a comunhão das pessoas, edificada sobre tal lógica, se torna comunhão dos pais. Quando transmitem a vida ao filho, um novo «tu» humano se insere na órbita do «nós» dos cônjuges, uma pessoa que eles chamarão com um nome novo: «nosso filho...; nossa filha...». «Gerei um homem com o auxílio do Senhor» (Gn 4, 1), diz Eva, a primeira mulher da história: um ser humano, primeiramente esperado durante nove meses e depois «manifestado» aos pais, aos irmãos e às irmãs. O processo da concepção e do desenvolvimento no ventre materno, do parto, do nascimento serve para criar como que um espaço adequado, para que a nova criatura possa manifestar-se como «dom» : pois, tal é ela desde o princípio. Poder-se-ia, porventura, qualificar de outro modo este ser frágil e indefeso, dependente em tudo de seus pais e completamente confiado a eles? O recém-nascido dá-se aos pais pelo facto mesmo de vir à existência. O seu existir é já um dom, o primeiro dom do Criador à criatura.
No recém-nascido, realiza-se o bem comum da família. Tal como o bem comum dos esposos encontra cumprimento no amor esponsal, pronto a dar e a acolher a nova vida, assim o bem comum da família se realiza mediante o mesmo amor esponsal concretizado no recém-nascido. Na genealogia da pessoa está inscrita a genealogia da família, que poderá ser recordada graças à anotação registada no Livro dos Baptizados, mesmo se essa não passa de uma consequência social do facto «de ter vindo ao mundo um homem» (Jo 16, 21).
Mas, é mesmo verdade que o novo ser humano constitui um dom para os pais? Um dom para a sociedade? À primeira vista, nada o parece indicar. Por vezes, o nascimento de um homem parece reduzir-se a um simples dado, registado como tantos outros nas estatísticas demográficas. Certamente o nascimento de um filho significa para os pais ulteriores canseiras, novos encargos económicos, outros condicionamentos práticos: motivos estes que podem induzi-los na tentação de não desejarem um outro nascimento (26). Em alguns ambientes sociais e culturais então, a tentação faz-se ainda mais forte. Mas, o filho não é um dom? Vem só para consumir, e não para dar? Eis algumas perguntas inquietantes, de que o homem de hoje tem dificuldade em libertar-se. O filho vem ocupar espaço, quando espaço no mundo parece haver cada vez menos. Mas, é mesmo verdade que ele não dá nada à família e à sociedade? Porventura não é uma «parcela» daquele bem comum, sem o qual as comunidades humanas se fragmentam e correm o risco de morrer? Como negá-lo? A criança faz de si um dom aos irmãos, às irmãs, aos pais, à família inteira. A sua vida torna-se dom para os próprios doadores da vida, que não poderão deixar de sentir a presença do filho, a sua participação na existência deles, o seu contributo para o bem comum deles e da família. Não obstante toda a complexidade, ou mesmo a eventual patologia, da estrutura psicológica em certas pessoas, esta verdade permanece óbvia na sua simplicidade e profundidade. O bem comum da sociedade inteira reside no homem, que, como foi recordado, é «a via da Igreja» (27). Ele é sobretudo a «glória de Deus»: «Gloria Dei vivens homo», segundo a conhecida afirmação de S. Ireneu (28), que poderia ser traduzida também assim: «A glória de Deus é que o homem viva». Dir-se-ia que estamos aqui perante a definição mais elevada do homem: a glória de Deus é o bem comum de tudo aquilo que existe; o bem comum do género humano.
Sim! O homem é um bem comum: bem comum da família e da humanidade, dos diversos grupos e das múltiplas estruturas sociais. Mas há que fazer uma significativa distinção de grau e modalidade: o homem é bem comum, por exemplo, da Nação a que pertence, ou do Estado de que é cidadão; mas, é-o de um modo muito mais concreto, único e irrepetível para a sua família; é-o não apenas enquanto indivíduo que faz parte da multidão humana, mas ainda como «este homem». Deus Criador chama-o à existência «por si mesmo» : e ao vir ao mundo, o homem começa na família a sua «grande aventura», a aventura da vida. «Este homem» tem, em qualquer caso, direito à própria afirmação por causa da sua dignidade humana. Precisamente esta dignidade é que estabelece o lugar da pessoa no meio dos homens, e antes de mais na família. Efectivamente, esta, mais do que qualquer outra realidade social, é o ambiente onde o homem pode existir «por si mesmo», mediante o dom sincero de si. Por isso, a família permanece uma instituição social que não se pode nem deve substituir: é «o santuário da vida» (29).
Além disso, o facto de estar a ser dado à luz um menino, de «ter vindo ao mundo um homem» (Jo 16, 21) constitui um sinal pascal. É o próprio Jesus que o diz aos discípulos, antes da paixão e morte, como refere o evangelista João, ao comparar a tristeza causada pela sua partida ao sofrimento de uma mulher parturiente: «A mulher, quando está para dar à luz, sente tristeza (isto é, sofre), porque é chegada a sua hora; mas depois de ter dado à luz o menino, já se não lembra da aflição, peloprazer de ter vindo ao mundo um homem » (Jo 16, 21). A «hora» da morte de Cristo (cf. Jo 13, 1) é ali comparada à «hora» da mulher no parto; o nascimento de um novo homem encontra a sua réplica perfeita na vitória da vida sobre a morte, operada pela ressurreição do Senhor. Uma confrontação dos dois eventos presta-se a diversas reflexões. Como a ressurreição de Cristo é a manifestação da vida de além-túmulo, assim também o nascimento de uma criança é manifestação da vida, desde sempre destinada, por meio de Cristo, à «plenitude da vida» que se encontra no próprio Deus: «Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância» (Jo 10, 10). Eis assim desvendado no seu valor mais profundo o verdadeiro significado da expressão de S. Ireneu: «Gloria Dei vivens homo».
É a verdade evangélica do dom de si, sem o qual o homem não se pode «encontrar plenamente», e que permite avaliar quão profundamente este «dom sincero» esteja radicado no dom de Deus Criador e Redentor, na «graça do Espírito Santo», cuja «efusão» sobre os esposos é implorada pelo celebrante no rito do matrimónio. Sem tal «efusão» seria verdadeiramente difícil compreender tudo isto e cumpri-lo como vocação do homem. E, no entanto, há tanta gente que o intui! Muitos homens e mulheres fazem própria esta verdade, chegando a vislumbrar que só nela encontram «a Verdade e a Vida» (Jo 14, 6). Sem esta verdade, a vida dos cônjuges e da família não consegue atingir um sentido plenamente humano.
Eis por que a Igreja nunca se cansa de ensinar e testemunhar tal verdade! Embora manifeste uma materna compreensão pelas não poucas e complexas situações de crise, em que as famílias se vêem envolvidas, como também pela fragilidade moral de todo o ser humano, a Igreja está convencida de que deve absolutamente permanecer fiel à verdade relativa ao amor humano: caso contrário, atraiçoar-se-ia a si própria. Afastar-se desta verdade salvífica, seria como fechar à fé «os olhos do coração» (Ef 1, 18), que, pelo contrário, devem permanecer sempre abertos à luz, com que o Evangelho ilumina as vicissitudes humanas (cf. 2 Tm 1, 10). A consciência daquele dom sincero de si, pelo qual o homem «encontra-se a si mesmo», deve ser solidamente renovada e constantemente garantida, defronte às muitas oposições que a Igreja encontra por parte dos fautores de uma falsa civilização do progresso (30). A família exprime sempre uma nova dimensão do bem para os homens, e, por isso, suscita uma nova responsabilidade. Trata-se da responsabilidade por aquele singular bem comum, no qual está incluído o bem do homem: de cada membro da comunidade familiar; um bem certamente «difícil» (bonum arduum), mas fascinante.
A paternidade e a maternidade responsável
12. No delineamento da presente Carta às Famílias, é chegado o momento de acenar a duas questões conexas entre si. Uma, mais genérica, diz respeito à civilização do amor; a outra, mais específica, refere-se à paternidade e maternidade responsável.
Dissemos já que o matrimónio suscita uma singular responsabilidade pelo bem comum: primeiro dos cônjuges, depois da família. Este bem comum é constituído pelo homem, pelo valor da pessoa e por quanto representa a medida da sua dignidade. O homem possui em si esta dimensão em qualquer sistema social, económico e político. No âmbito do matrimónio e da família, porém, esta responsabilidade torna-se, por muitas razões, ainda mais «empenhativa». Não é sem motivo que a Constituição pastoral Gaudium et spes fala de «promoção da dignidade do matrimónio e da família». O Concílio vê em tal «promoção» uma tarefa tanto da Igreja como do Estado; todavia, ela permanece, em cada cultura, primariamente um dever das pessoas que, unidas em matrimónio, formam uma família específica. A «paternidade e maternidade responsável» exprimem o compromisso concreto de actuar esse dever, que, no mundo contemporâneo, reveste novas características.
De modo particular, paternidade e maternidade responsável referem-se directamente ao momento em que o homem e a mulher, unindo-se «numa só carne», podem tornar-se pais. É momento impregnado de um valor peculiar, quer pela sua relação interpessoal quer pelo seu serviço à vida: eles podem-se tornar progenitores — pai e mãe —, comunicando a vida a um novo ser humano. As duas dimensões da união conjugal, a unitiva e a procriadora, não podem ser separadas artificialmente sem atentar contra a verdade íntima do próprio acto conjugal (31).
Este é o ensinamento constante da Igreja, e «os sinais dos tempos», de que hoje somos testemunhas, oferecem novos motivos para reafirmá-lo com particular vigor. S. Paulo, tão atento às necessidades pastorais do seu tempo, exige clara e firmemente que se «insista oportuna e inoportunamente» (cf. 2 Tim 4, 2), sem qualquer temor pelo facto de «já não se suportar a sã doutrina» (cf. 2 Tim 4, 3). As suas palavras são bem conhecidas de quantos, compreendendo profundamente as vicissitudes do nosso tempo, esperam que a Igreja não só não abandone «a sã doutrina», mas antes, a anuncie com renovado vigor, perscrutando nos actuais «sinais dos tempos» as razões para um ulterior e providencial aprofundamento da mesma.
Muitas destas razões encontram-se já nas próprias ciências que, partindo do antigo tronco da antropologia, se desenvolveram em várias especializações, tais como a biologia, a psicologia, a sociologia e as suas posteriores ramificações. De certo modo, todas giram à volta da medicina, simultaneamente ciência e arte (ars medica) ao serviço da vida e da saúde do homem. Mas as razões, a que se acena aqui, emergem sobretudo da experiência humana que é múltipla e, em certo sentido, precede e segue a própria ciência.
Os cônjuges aprendem por experiência própria o que significam a paternidade e a maternidade responsável; aprendem-no também graças à experiência de outros casais que vivem em condições análogas, e tornam-se assim mais abertos aos dados das ciências. Poder-se-ia dizer que os «peritos» como que aprendem dos «cônjuges», para serem depois, por sua vez, capazes de instruí-los competentemente acerca do significado da procriação responsável e dos modos de a realizar.
Este argumento foi tratado amplamente nos Documentos conciliares, na Encíclica Humanae vitae, nas «Proposições» do Sínodo dos Bispos de 1980, na Exortação apostólica Familiaris consortio, e em intervenções análogas até à Instrução Donum vitae da Congregação para a Doutrina da Fé. A Igreja ensina a verdade moral acerca da paternidade e maternidade responsável, defendendo-a das visões e tendências erróneas hoje difusas. Por que motivo faz isto a Igreja? Será, talvez, porque não se dá conta das problemáticas invocadas por quantos aconselham cedências neste âmbito e procuram convencê-la inclusivamente com pressões indevidas, quando não mesmo com ameaças? Não raro, de facto, o Magistério da Igreja é acusado de estar superado já e fechado às instâncias do espírito dos tempos modernos; de realizar uma acção nociva para a humanidade, e inclusive para a própria Igreja. Ao manter-se obstinadamente nas próprias posições — diz-se —, a Igreja acabará por perder popularidade e os fiéis afastar-se-ão cada vez mais dela.
Mas como é possível sustentar que a Igreja, especialmente o Episcopado em comunhão com o Papa, seja insensível a problemas tão graves e actuais? Foi precisamente neles que Paulo VI entreviu questões de tal forma vitais que o impeliram a publicar a Humanae vitae! O fundamento sobre o qual se baseia a doutrina da Igreja acerca da paternidade e maternidade responsável é bem amplo e sólido. O Concílio indica-o, antes de mais, no ensinamento sobre o homem, quando afirma que ele é «a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma» e que não pode «encontrar-se plenamente a não ser no dom sincero de si mesmo» (32). Isto porque ele foi criado à imagem e semelhança de Deus e redimido pelo Filho unigénito do Pai, feito homem por nós e para nossa salvação.
O Concílio Vaticano II, particularmente atento ao problema do homem e da sua vocação, afirma que a união conjugal, referida na Bíblia pela expressão «uma só carne», pode ser compreendida e explicada plenamente apenas recorrendo aos valores da «pessoa» e do «dom». Cada homem e cada mulher realizam-se em plenitude mediante o dom sincero de si e, no caso dos esposos, o momento da união conjugal constitui uma experiência muito particular disso mesmo. É então que o homem e a mulher, na «verdade» da sua masculinidade e feminilidade, se tornam recíproco dom. Toda a vida no matrimónio é dom; mas isso torna-se singularmente evidente quando os cônjuges, oferecendo-se reciprocamente no amor, realizam aquele encontro que faz dos dois «uma só carne» (Gn 2, 24).
Eles vivem, então, um momento de especial responsabilidade, também em razão da potencialidade procriadora conexa com o acto conjugal. Os esposos podem, naquele momento, tornar-se pai e mãe, dando início ao processo de uma nova vida humana, que depois se desenvolverá no seio da mulher. Se a mulher é a primeira que dá conta de ter-se tornado mãe, o homem com quem se uniu em «uma só carne» toma consciência, por sua vez e através do testemunho dela, de ter-se tornado pai. Da potencial e, em seguida, efectiva paternidade e maternidade, ambos são responsáveis. O homem não pode deixar de reconhecer ou não aceitar o resultado de uma decisão que foi também sua. Não se pode esconder por detrás de expressões como: «não sei», «não queria», «foste tu que quiseste». A união conjugal comporta em todo o caso a responsabilidade do homem e da mulher, responsabilidade potencial que se torna efectiva quando as circunstâncias o impuserem. Isto vale sobretudo para o homem que, apesar de ser também ele artífice do desencadeamento do processo gerador, fica biologicamente distanciado do mesmo: é na mulher, de facto, que aquele se desenvolve. Como poderia o homem não se sentir comprometido nele? Impõe-se que ambos, o homem e a mulher, assumam conjuntamente, perante si mesmos e os outros, a responsabilidade da nova vida por eles suscitada.
Esta é uma conclusão partilhada pelas próprias ciências humanas. Mas é preciso ir mais longe, analisando o significado do acto conjugal à luz dos referidos valores da «pessoa» e do «dom». É o que faz a Igreja com o seu constante ensinamento, em particular no Concílio Vaticano II.
No momento do acto conjugal, o homem e a mulher são chamados a confirmar de modo responsável o dom recíproco, que de si fizeram na aliança matrimonial. Ora, a lógica do dom ao outro na totalidade de si mesmo comporta a potencial abertura à procriação: o matrimónio é chamado assim a realizar-se ainda mais plenamente como família. Sem dúvida, o dom recíproco do homem e da mulher não tem como único fim o nascimento dos filhos, mas é em si mesmo mútua comunhão de amor e de vida. Deve ser sempre garantida a verdade íntima de tal dom. «Íntima» não é sinónimo de «subjectiva» : significa, sim, essencialmente coerente com a verdade objectiva daquele e daquela que se dão. Jamais a pessoa pode ser considerada um meio para alcançar um fim; nunca, sobretudo, um meio de «prazer». Ela é e deve ser apenas o fim de todo o acto. Somente então, a acção corresponde à verdadeira dignidade da pessoa.
Ao concluir a nossa reflexão sobre este argumento tão importante e delicado, desejo dirigir uma palavra de particular encorajamento sobretudo a vós, caríssimos cônjuges, e a todos aqueles que vos ajudam a compreender e a pôr em prática o ensinamento da Igreja sobre o matrimónio, sobre a maternidade e paternidade responsável. Penso de modo especial nos Pastores, nos muitos peritos, teólogos, filósofos, escritores e editores, que não se acomodam ao conformismo cultural dominante, mas estão corajosamente decididos a «ir contra a corrente». Aquela palavra de encorajamento vai ainda para um grupo cada vez mais numeroso de peritos, médicos e educadores, verdadeiros apóstolos leigos, para os quais a promoção da dignidade do matrimónio e da família se tornou uma tarefa importante da sua vida. Em nome da Igreja, digo a todos o meu obrigado! Sem eles, que poderiam fazer os Sacerdotes, os Bispos e até mesmo o próprio Sucessor de Pedro? Disto me fui convencendo sempre mais, desde os primeiros anos do meu sacerdócio, quando comecei a sentar-me no confessionário, para partilhar as preocupações, os medos e as esperanças de tantos esposos: encontrei casos difíceis de revolta e recusa, mas ao mesmo tempo tantas pessoas admiravelmente responsáveis e generosas! Enquanto escrevo esta Carta, tenho presente todos estes cônjuges e abraço-os com o meu afecto e a minha oração.
As duas civilizações
13. Queridas famílias, a questão da paternidade e da maternidade responsável insere-se na temática global da «civilização do amor», de que desejo falar-vos agora. De quanto ficou dito, resulta claramente que a família está na base daquela que Paulo VI designou como «civilização do amor» (33), expressão que entrou depois no ensinamento da Igreja e se tornou já familiar. Hoje é difícil pensar numa intervenção da Igreja, ou então sobre a Igreja, que prescinda da referência à civilização do amor. A expressão está ligada com a tradição da «igreja doméstica» do cristianismo nos seus primórdios, mas possui uma precisa referência também à época contemporânea. Etimologicamente o termo «civilização» deriva da palavra latina civis (cidadão), sublinhando a dimensão política da existência de cada indivíduo. Todavia o sentido mais profundo do termo «civilização» não é tanto político como sobretudo «humanístico». A civilização pertence à história do homem, porque corresponde às suas exigências espirituais e morais: criado à imagem e semelhança de Deus, ele recebeu o mundo das mãos do Criador com o compromisso de o plasmar à própria imagem e semelhança. Precisamente do cumprimento desta tarefa provém a civilização, que, em última análise, não é senão a «humanização do mundo».
Portanto, civilização tem, de certo modo, o mesmo significado que «cultura». Assim poder-se-ia dizer também: «cultura do amor», embora seja preferível ater- -se à expressão tornada já familiar. A civilização do amor, no sentido actual do termo, inspira-se nas palavras da Constituição conciliar Gaudium et spes: «Cristo (...) revela plenamente o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime» (34). Por isso pode- -se afirmar que a civilização do amor parte da revelação de Deus que «é amor», como diz S. João (Jo 4, 8.16), e aparece magistralmente descrita pelo apóstolo Paulo no hino à caridade da Primeira Carta aos Coríntios (13, 1-13). Tal civilização está intimamente conexa com o amor «derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi concedido» (Rom 5, 5), e cresce graças àquele cultivo constante de que fala tão incisivamente a alegoria evangélica da videira e dos ramos: «Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor. Toda a vara que em Mim não dá fruto, Ele corta-a, e limpa toda aquela que dá fruto, para que dê mais fruto» (Jo 15, 1-2).
À luz destes e doutros textos do Novo Testamento, é possível compreender o que se entende por «civilização do amor», e por que a família está organicamente unida com tal civilização. Se a primeira «via da Igreja» é a família, importa acrescentar que também a civilização do amor é «via da Igreja», que caminha no mundo e chama a seguir por tal via as famílias e as outras instituições sociais, nacionais e internacionais, precisamente por causa das famílias e através das famílias. A família depende realmente e por diversos motivos da civilização do amor, onde encontra as razões do seu ser família. E, ao mesmo tempo, a família é o centro e o coração da civilização do amor.
Não existe, todavia, verdadeiro amor sem a consciência de que Deus «é Amor», e que o homem é a única criatura na terra, chamada por Deus à existência «por si mesma». O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, não pode «encontrar-se» plenamente senão pelo dom sincero de si. Sem um tal conceito do homem, da pessoa e da «comunhão de pessoas» na família, não pode existir a civilização do amor; e vice-versa, sem a civilização do amor é impossível um tal conceito de pessoa e de comunhão de pessoas. A família constitui a «célula» fundamental da sociedade. Mas tem necessidade de Cristo — «videira» da qual os «ramos» extraem a linfa — para que esta célula não fique exposta à ameaça de uma espécie de desenraizamento cultural, que pode vir tanto do interior como do exterior. De facto, se por um lado existe a «civilização do amor», por outro lado permanece a possibilidade de uma «anti-civilização» destruidora, como se confirma hoje por tantas tendências e situações concretas.
Quem pode negar que a nossa seja uma época de grande crise, que se exprime sobretudo como profunda «crise da verdade»? Crise da verdade significa, em primeiro lugar, crise de conceitos. Os termos «amor», «liberdade», «dom sincero», e até mesmo os de «pessoa», «direitos da pessoa», significarão na realidade aquilo que por sua natureza contêm? Eis porque se revela tão significativa e importante para a Igreja e para o mundo — sobretudo no Ocidente — a Encíclica sobre o «esplendor da verdade» (Veritatis splendor). Somente se a verdade acerca da liberdade e da comunhão das pessoas no matrimónio e na família readquirir o seu esplendor, é que se desencadeará verdadeiramente a edificação da civilização do amor, e será então possível falar eficazmente — como faz o Concílio — de «promoção da dignidade do matrimónio e da família» (35).
Porque é assim tão importante o «esplendor da verdade»? É-o, primariamente, por contraste: o desenvolvimento da civilização contemporânea está ligado a um progresso científico-tecnológico que se actua de modo frequentemente unilateral, apresentando por conseguinte características puramente positivistas. O positivismo, como se sabe, tem como seus frutos o agnosticismo no campo teórico e o utilitarismo no campo prático e ético. Nos nossos tempos, a história em certo sentido repete-se. O utilitarismo é uma civilização da produção e do desfrutamento, uma civilização das «coisas» e não das «pessoas» ; uma civilização onde as pessoas se usam como se usam as coisas. No contexto da civilização do desfrutamento, a mulher pode tornar-se para o homem um objecto, os filhos um obstáculo para os pais, a família uma instituição embaraçante para a liberdade dos membros que a compõem. Para convencer-se disto, basta examinar certos programas de educação sexual introduzidos nas escolas, não obstante o frequente parecer contrário e até os protestos de muitos pais; ou então, as tendências pró-abortistas que em vão procuram esconder-se atrás do chamado «direito de escolha» (pro choice) por parte de ambos os cônjuges, e particularmente por parte da mulher. São apenas dois exemplos dos muitos que se poderiam recordar.
Em semelhante situação cultural, é claro que a família não pode deixar de sentir-se ameaçada, porque insidiada nos seus próprios alicerces. Tudo o que seja contrário à civilização do amor, é contrário à verdade integral do homem e torna-se para ele uma ameaça: não lhe permite encontrar-se a si mesmo e sentir-se seguro como cônjuge, como pai, como filho. O chamado «sexo seguro», propagandeado pela «civilização técnica», na realidade é, sob o perfil das exigências globais da pessoa, radicalmente não-seguro, e mais, gravemente perigoso. A pessoa ali, de facto, encontra-se em perigo, tal como em perigo fica, por sua vez, a família. Qual é o perigo? É a perda da verdade acerca de si própria, a que se junta o risco da perda da liberdade e, consequentemente, perda do próprio amor. «Conhecereis a verdade — diz Jesus — e a verdade libertar-vos-á» (Jo 8, 32): a verdade, somente a verdade, vos preparará para um amor, que se possa chamar «belo».
A família contemporânea, como a de sempre, vai àprocura do «belo amor». Um amor não «belo», ou seja, reduzido à mera satisfação da concupiscência (cf. Jo 2, 16), ou a um «uso» recíproco do homem e da mulher, torna as pessoas escravas das suas fraquezas. Não conduzem a esta escravidão certos «programas culturais» modernos? São programas que «jogam» com as fraquezas do homem, tornando-o assim sempre mais débil e indefeso.
A civilização do amor evoca a alegria: alegria, para além do mais, porque um homem vem ao mundo (cf. 1 Jo 16, 21) e, consequentemente, porque os cônjuges se tornam pais. Civilização do amor significa «comprazer-se com a verdade» (cf. 1 Cor 13, 6). Mas uma civilização, inspirada numa mentalidade consumista e anti-natalista, não é uma civilização do amor nem o poderá ser nunca. Se a família é tão importante para a civilização do amor, isto fica-se a dever à especial proximidade e intensidade dos laços que nela se instauram entre as pessoas e as gerações. Apesar disso, ela continua vulnerável e pode facilmente sucumbir aos perigos que enfraquecem ou até destroem a sua união e estabilidade. Devido a tais perigos, as famílias cessam de testemunhar a favor da civilização do amor e podem até mesmo tornar-se a sua negação, uma espécie de contra-testemunho. Uma família desfeita pode, por sua vez, reforçar uma específica forma de «anticivilização», destruindo o amor nos vários âmbitos em que se exprime, com inevitáveis repercussões sobre o conjunto da vida social.
O amor é exigente
14. Aquele amor, ao qual o apóstolo Paulo dedicou um hino na Primeira Carta aos Coríntios — aquele amor que é «paciente», é «benigno», e «tudo suporta» (1 Cor 13, 4.7) — é, sem dúvida, um amor exigente. Mas nisto mesmo está a sua beleza: no facto de ser exigente, porque deste modo constrói o verdadeiro bem do homem e irradia-o também sobre os outros. Na verdade, o bem, diz S. Tomás, é por sua natureza «difusivo» (36). O amor é verdadeiro, quando cria o bem das pessoas e das comunidades, cria e dá-lo aos outros. Somente quem, em nome do amor, sabe ser exigente consigo próprio, pode também exigir o amor dos outros. Porque o amor é exigente. É-o em todas as situações humanas; ainda mais o é para quem se abre ao Evangelho. Não é isso que Cristo proclama no «seu» mandamento? É preciso que os homens de hoje descubram este amor exigente, porque nele está o alicerce verdadeiramente firme da família, um alicerce que é capaz de «tudo suportar». Segundo o Apóstolo, o amor não é capaz de «suportar tudo», se cede às «invejas», se «se ufana», se «se ensoberbece», se «é inconveniente» (cf. 1 Cor 13, 4-5). O verdadeiro amor, ensina S. Paulo, é diverso: «tudo crê, tudo espera, tudo suporta» (1 Cor 13, 7). Um amor assim «tudo suportará». Actua nele a poderosa força do próprio Deus, que «é amor» (1 Jo 4, 8.16). Nele actua a poderosa força de Cristo, Redentor do homem e Salvador do mundo.
Meditando o capítulo 13 da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios, encaminhamo-nos pela via que, mais imediata e incisivamente, nos faz compreender a verdade plena acerca da civilização do amor. Nenhum outro texto bíblico exprime tal verdade de um modo mais simples e profundo que o hino à caridade.
Os perigos que gravam sobre o amor constituem uma ameaça também para a civilização do amor, porque favorecem quanto é susceptível de eficazmente a contrariar. Há que pensar, antes de mais, no egoísmo, não só no egoísmo do indivíduo, mas também naquele do casal ou, num âmbito ainda mais vasto, no egoísmo social, por exemplo de classe ou de nação (nacionalismo). O egoísmo, em todas as suas formas, opõe- -se directa e radicalmente à civilização do amor. Porventura significa isto que o amor se pode definir simplesmente como «anti-egoísmo»? Seria uma definição demasiado pobre e, em última análise, apenas negativa, mesmo se é verdade que, para realizar o amor e a civilização do amor, devem ser superadas as várias formas de egoísmo. Mais correcto é falar de «altruísmo», que é a antítese do egoísmo. Mas ainda mais rico e completo é o conceito de amor ilustrado por S. Paulo. O hino à caridade da Primeira Carta aos Coríntios permanece como a magna charta da civilização do amor. Ali não é questão tanto de simples manifestações (quer de egoísmo quer de altruísmo), quanto sobretudo da aceitação radical do conceito de homem como pessoa que «se encontra» através do dom sincero de si mesmo — dom que, obviamente, é «para os outros»: esta constitui a dimensão mais importante da civilização do amor.
Entramos, assim, no núcleo mesmo da verdade evangélica sobre a liberdade. A pessoa realiza-se mediante o exercício da liberdade na verdade. A liberdade não pode ser entendida como faculdade de fazer o que quer que seja: ela significa dom de si. Mais: significa disciplina interior do dom. No conceito de dom, não está inscrita apenas a livre iniciativa do sujeito, mas também a dimensão do dever. Tudo isto se realiza na «comunhão das pessoas». Estamos, assim, no coração mesmo de cada família.
Achamo-nos também em presença dos indícios da antítese entre o individualismo e o personalismo. O amor, a civilização do amor alia-se com o personalismo. Por que razão, exactamente com o personalismo? Por que o individualismo ameaça a civilização do amor? Encontramos a chave da resposta na expressão conciliar: um «dom sincero». O individualismo supõe um uso da liberdade onde o sujeito faz o que quer, «estabelecendo» ele mesmo «a verdade» daquilo que lhe agrada ou se lhe torna útil. Não admite que outros «queiram» ou exijam algo dele, em nome de uma verdade objectiva. Não quer «dar» a outrem sobre a base da verdade, não quer tornar-se um dom «sincero». O individualismo permanece, por conseguinte, egocêntrico e egoísta. A antítese com o personalismo verifica-se não apenas no terreno da teoria, mas ainda mais sobre aquele do «ethos» (procedimento). O «ethos» do personalismo é altruísta: leva a pessoa a fazer-se dom para os outros e a encontrar alegria no doar-se. É a alegria de que fala Cristo (cf. Jo 15, 11; 16, 20.22).
Portanto, é preciso que as sociedades humanas, e nelas as famílias, que frequentemente vivem num contexto de luta entre a civilização do amor e as suas antíteses, procurem o seu alicerce estável numa justa visão do homem e de quanto decide a plena «realização» da sua humanidade. Sem dúvida, contrário à civilização do amor é o chamado « amor livre », tanto mais perigoso por ser habitualmente proposto como fruto de um sentimento «verdadeiro», quando efectivamente destrói o amor. Quantas famílias levadas à ruína precisamente pelo «amor livre»! Seguir em qualquer caso o «verdadeiro» impulso afectivo, em nome de um «amor» livre de condicionamentos, na realidade significa tornar o homem escravo daqueles instintos humanos, que S. Tomás chama «paixões da alma» (passiones animae) (37). O «amor livre» explora as fraquezas humanas, conferindo-lhes uma certa «moldura» de nobreza com a ajuda da sedução e com o favor da opinião pública. Procura-se assim «tranquilizar» a consciência, criando um «álibi moral». Mas não se tomam em consideração todas as consequências que daí derivam, especialmente quando a pagá-las são, para além do cônjuge, os filhos, privados do pai ou da mãe e condenados a serem, de facto, órfãos de pais vivos.
Na base do utilitarismo ético, está, como se sabe, a procura desenfreada do «máximo» de felicidade: mas de uma «felicidade utilitarista », vista apenas como prazer, como imediata satisfação e vantagem exclusiva do próprio indivíduo, fora das exigências objectivas do verdadeiro bem ou mesmo contra elas.
O programa do utilitarismo, fundado sobre uma liberdade orientada em sentido individualista, ou seja, uma liberdade sem responsabilidade, constitui a antítese do amor, também como expressão da civilização humana, considerada no seu todo. Quando um tal conceito de liberdade encontra aceitação na sociedade, aliando-se facilmente com as mais variadas formas de fraqueza humana, rapidamente se revela como uma sistemática e permanente ameaça para a família. A propósito, poder-se-iam citar muitas consequências nefastas, documentáveis a nível estatístico, mesmo se não poucas delas permanecem escondidas nos corações dos homens e das mulheres, como feridas dolorosas e sangrentas.
O amor dos cônjuges e dos pais possui a capacidade de curar semelhantes feridas, se as insídias recordadas não o privarem da sua força de regeneração, tão benéfica e salutar para as comunidades humanas. Tal capacidade depende da graça divina do perdão e da reconciliação, que assegura o vigor espiritual para começar sempre de novo. Por isso mesmo, os membros da família têm necessidade de encontrar Cristo na Igreja, por meio do admirável sacramento da Penitência e da Reconciliação.
Neste contexto, damo-nos conta de quão importante seja a oração com as famílias e pelas famílias, em particular por aquelas ameaçadas de divisão. É necessário rezar para que os cônjuges amem a sua vocação, mesmo quando a estrada se torna difícil ou conhece trechos estreitos e íngremes, aparentemente insuperáveis; rezar, a fim de que mesmo então permaneçam fiéis à sua aliança com Deus.
«A família é a via da Igreja». Nesta Carta, desejamos professar e anunciar juntos esta via, que, através da vida conjugal e familiar, conduz ao reino dos Céus (cf. Mt 7, 14). É importante que a «comunhão das pessoas» na família se torne preparação para a «comunhão dos Santos». Eis porque a Igreja confessa e anuncia o amor que «tudo suporta» (1 Cor 13, 7), vendo nele, com S. Paulo, a virtude «maior» (1 Cor 13, 13). O Apóstolo não coloca limites a ninguém. Amar é vocação de todos, também dos esposos e das famílias. Na Igreja, de facto, todos são igualmente chamados à perfeição da santidade (cf. Mt 5, 48) (38).
O quarto mandamento: «Honra o teu pai e a tua mãe»
15. O quarto mandamento do Decálogo refere-se à família, à sua solidez interior; poderíamos dizer, à sua solidariedade.
Na sua formulação, não se fala explicitamente da família. Mas, de facto, é mesmo dela que se trata. Para exprimir a comunhão entre as gerações, o divino Legislador não encontrou palavra mais apropriada que esta: «Honra... » (Êx 20, 12). Estamos perante um outro modo de exprimir o que é a família. Tal formulação não exalta «artificialmente» a família, mas põe em evidência a sua subjectividade e os direitos que daí derivam. A família é uma comunidade de relações interpessoais particularmente intensas: entre cônjuges, entre pais e filhos, entre gerações. É uma comunidade que há-de ser garantida de modo muito particular. E Deus não encontra garantia melhor que esta: «Honra».
«Honra o teu pai e a tua mãe, para que os teus dias se prolonguem na terra que o Senhor, teu Deus, te dará» (Êx 20, 12). Este mandamento aparece depois dos três preceitos fundamentais, que se referem ao relacionamento do homem e do povo de Israel com Deus: «Shemà, Izrael... », «Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor!» (Dt 6, 4). «Não terás outro deus além de Mim» (Êx 20, 3). Eis o primeiro e o maior mandamento, o mandamento do amor a Deus «acima de todas as coisas»: Ele há-de ser amado «com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças» (Dt 6, 5; cf. Mt 22, 37). É significativo que o quarto mandamento esteja inserido precisamente nesse contexto: «Honra o teu pai e a tua mãe», porque eles são para ti, em determinado sentido, os representantes do Senhor, aqueles que te deram a vida, que te introduziram na existência humana: numa estirpe, numa nação, numa cultura. Depois de Deus, são eles os teus primeiros benfeitores. Se Deus só é bom, antes, é o próprio Bem, os pais participam de modo singular desta bondade suprema. E por isso: honra os teus pais! Há aqui uma certa analogia com o culto devido a Deus.
O quarto mandamento está em estreita ligação com o mandamento do amor. Entre «honra» e «ama», o vínculo é profundo. A honra, no seu núcleo essencial, está relacionada com a virtude da justiça, mas esta, por sua vez, não pode explanar-se plenamente sem fazer apelo ao amor: de Deus e do próximo. E quem é mais próximo que os próprios familiares, que os pais e os filhos?
Será unilateral o sistema interpessoal indicado pelo quarto mandamento? Ele só empenha os filhos a honrarem os pais? Em sentido literal, sim. Indirectamente, porém, podemos falar também da «honra» devida aos filhos por parte dos pais. «Honra» quer dizer: reconhece! Isto é, deixa-te guiar pelo convicto reconhecimento da pessoa, da do pai e da mãe primeiro, e depois da dos outros membros da família. A honra é um procedimento essencialmente desinteressado. Poder-se-ia dizer que é «um dom sincero da pessoa à pessoa», e neste sentido a honra desemboca no amor. Se o quarto mandamento exige honrar o pai e a mãe, fá- -lo também em atenção ao bem da família. Mas por isto mesmo, põe exigências aos próprios pais. Pais — parece recordar-lhes o preceito divino —, agi de modo que o vosso procedimento mereça a honra (e o amor) da parte dos vossos filhos! Não deixeis cair num «vazio moral» a exigência divina de eles vos honrarem a vós! Em resumo, trata-se de honra recíproca. O mandamento «honra o teu pai e a tua mãe» diz indirectamente aos pais: Honrai os vossos filhos e as vossas filhas. Eles merecem-no porque existem, merecem-no por aquilo que são: isto vale desde o primeiro instante da concepção. Assim este mandamento, ao exprimir a união íntima da família, põe em evidência o alicerce da sua solidez interior.
O mandamento continua: «para que os teus dias se prolonguem na terra que o Senhor, teu Deus, te dará». Este «para que» poderia dar a impressão de um cálculo «utilitarista»: honrar, tendo em vista a futura longevidade. Digamos, entretanto, que isto não diminui o significado essencial do imperativo « honra », por sua natureza conexo com um procedimento desinteressado. Honrar não significa nunca: «prevê as vantagens». É difícil, contudo, não reconhecer que do procedimento de honra recíproca entre os membros da comunidade familiar, derivam também vantagens de vária natureza. A «honra» é certamente útil, como «útil» é todo o verdadeiro bem.
A família realiza, antes de mais, o bem de «estarem juntos», bem por excelência do matrimónio (daí a sua indissolubilidade) e da comunidade familiar. Poder-se-ia defini-lo, além disso, como o bem da subjectividade. Na verdade, a pessoa é um sujeito, e o mesmo se diga da família porque formada de pessoas, que, ligadas por um profundo vínculo de comunhão, formam um único sujeito comunitário. Antes, a família é sujeito mais do que qualquer outra instituição social: é-o mais que a nação, que o estado, mais que a sociedade e do que as organizações internacionais. Estas sociedades, especialmente as nações, gozam de subjectividade própria somente enquanto a recebem das pessoas e das suas famílias. Estas serão observações meramente «teóricas», formuladas com o objectivo de «exaltar» a família na opinião pública? Não, trata-se, antes, de um outro modo de exprimir o que é a família. E também isto se deduz do quarto mandamento.
Trata-se de uma verdade que merece ser destacada e aprofundada: de facto, ela assinala a importância deste mandamento também para o moderno sistema dos direitos do homem. As legislações institucionais usam a linguagem jurídica. Deus, pelo contrário, diz: «Honra». Todos os «direitos do homem» são, em última análise, frágeis e ineficazes, se faltar, na sua base, o imperativo: «honra»; por outras palavras, se faltar o reconhecimento do homem pelo simples facto de ele ser homem, «este» homem. Por si sós, os direitos não bastam.
Assim, não é exagerado insistir que a vida das nações, dos estados, das organizações internacionais «passa» através da família e «fundamenta-se» sobre o quarto mandamento do Decálogo. A época em que vivemos, apesar das múltiplas Declarações de tipo jurídico que foram elaboradas, continua notavelmente ameaçada pela «alienação», qual fruto das premissas «iluministas», segundo as quais o homem é «mais» homem se for «apenas» homem. Não é difícil notar como a alienação de tudo quanto pertence de vários modos à plena riqueza do homem, insidia a nossa época. E isto chama em causa a família. Na verdade, a afirmação da pessoa está em grande medida relacionada com a família e, por conseguinte, com o quarto mandamento. No desígnio de Deus, a família é a primeira escola do ser homem em seus vários aspectos. Sê homem! É este o imperativo que nela se transmite: homem como filho da pátria, como cidadão do estado, e, dir-se-ia hoje, como cidadão do mundo. Aquele que entregou à humanidade o quarto mandamento é um Deus «benévolo» para com o homem (filanthropos, diziam os gregos). O Criador do universo é o Deus do amor e da vida: Ele quer que o homem tenha a vida e a tenha em abundância, como proclama Cristo (cf. Jo 10, 10): que tenha a vida, sobretudo graças à família.
Aparece agora claro que a «civilização do amor» está intimamente ligada com a família. Para muitos, a civilização do amor constitui ainda uma pura utopia. Pensa-se, com efeito, que o amor não possa ser pretendido de ninguém nem imposto a ninguém: seria uma livre opção, que os homens podiam aceitar ou rejeitar.
Em tudo isto há alguma verdade. E, contudo, resta o facto que Jesus Cristo nos deixou o mandamento do amor, tal como já Deus no monte Sinai tinha ordenado: «Honra o teu pai e a tua mãe». Portanto, o amor não é uma utopia: é dado ao homem como tarefa a cumprir com a ajuda da graça divina. É confiado ao homem e à mulher, no sacramento do matrimónio, como princípio fontal do seu «dever» e torna-se para eles o fundamento do mútuo compromisso: do conjugal primeiro, do paterno e materno depois. Na celebração do sacramento, os cônjuges dão-se e recebem- -se reciprocamente, declarando a sua disponibilidade para acolherem e educarem os filhos. Eis aqui os pilares da civilização humana, que não pode ser definida de outro modo senão como «civilização do amor».
De tal amor, é expressão e fonte a família. Por ela passa a principal corrente da civilização do amor, que lá encontra as suas «bases sociais».
Os Padres da Igreja, no decurso da tradição cristã, falaram da família como «igreja doméstica», «pequena igreja». Referiam-se assim à civilização do amor como a um possível sistema de vida e convivência humana: «estarem juntos» como família, serem uns para os outros, criarem um espaço comunitário para a afirmação de cada homem enquanto tal, para a afirmação «deste» homem em concreto. Às vezes, trata-se de pessoas com deficiências físicas ou psíquicas, das quais a sociedade dita «progressista» prefere libertar-se. Também a família se pode tornar semelhante a uma tal sociedade. E torna-se-lo de facto, quando rapidamente se desembaraça de quem é ancião, ou vítima de deformações, ou afectado pela doença. Comporta-se assim, porque falta a fé naquele Deus para o Qual «todos vivem» (Lc 20, 38) e todos são chamados à plenitude da vida.
Sim, a civilização do amor é possível, não é uma utopia! Mas só é possível graças a uma constante e viva referência a «Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, do Qual provém toda a paternidade 1 no mundo» (cf. Ef 3, 14-15), do Qual provém cada família humana.
A educação
16. Em que consiste a educação? Para responder a esta questão, há que recordar duas verdades fundamentais: a primeira é que o homem é chamado a viver na verdade e no amor; a segunda é que cada homem realiza-se através do dom sincero de si. Isto vale tanto para quem educa, como para quem é educado. Assim, a educação constitui um processo singular, no qual a recíproca comunhão das pessoas aparece impregnada de grande significado. O educador é uma pessoa que «gera» em sentido espiritual. Nesta perspectiva, a educação pode ser considerada um verdadeiro e próprio apostolado. É uma comunicação vital, que não só constrói uma relação profunda entre educador e educando, mas fá-los ambos participar na verdade e no amor, meta final à qual cada homem é chamado por Deus Pai, Filho e Espírito Santo.
A paternidade e a maternidade supõem a coexistência e a interacção de sujeitos autónomos. Isto é particularmente evidente na mãe, quando concebe um novo ser humano. Os primeiros meses da sua presença no ventre materno criam um laço especial, que já reveste um seu valor educativo. Já durante o período pré-natal, a mãe estrutura não apenas o organismo do filho, mas indirectamente toda a sua humanidade. Mesmo se se trata de um processo que se orienta da mãe para o filho, não se esqueça a influência específica que o nascituro exerce sobre a mãe. Nesta influência recíproca, que se manifestará externamente após o nascimento da criança, o pai não toma parte directamente. Porém, ele deve empenhar-se responsavelmente a prestar a sua solicitude e apoio durante a gravidez e, se possível, também no momento do parto.
Para a «civilização do amor», é essencial que o homem sinta a maternidade da mulher, sua esposa, como um dom: isto, de facto, influi imenso no processo educativo inteiro. Muito depende da sua disponibilidade para tomar parte de forma adequada nesta primeira fase do dom da humanidade, e deixar-se envolver como marido e pai na maternidade da mulher.
A educação é, assim, sobretudo uma «oferta» de humanidade por parte de ambos os pais: estes comunicam juntos a sua humanidade madura ao recém- -nascido, o qual, por sua vez, lhes dá a novidade e o frescor da humanidade que traz consigo ao mundo. Isto verifica-se também no caso de crianças afectadas por deficiências psíquicas ou físicas: antes, neste caso a sua situação pode desenvolver uma força educativa muito particular.
Com razão, pois, pergunta a Igreja durante o rito do matrimónio: «Estais dispostos a receber amorosamente da mão de Deus os filhos e a educá-los segundo a lei de Cristo e da Igreja?» (39). O amor conjugal exprime-se na educação como verdadeiro amor de pais. A «comunhão de pessoas», que ao início da família se manifesta como amor conjugal, completa-se e aperfeiçoa-se quando se estende aos filhos com a educação. A potencial riqueza, constituída por cada homem que nasce e cresce na família, deve ser responsavelmente assumida de modo que não degenere nem se dissipe, mas, ao contrário, se realize numa humanidade cada vez mais madura. Também este é um dinamismo de reciprocidade, no qual os pais-educadores são, por sua vez, em certa medida educados. Mestres de humanidade dos próprios filhos, também a aprendem deles. Aqui emerge com destaque a estrutura orgânica da família e revela-se o sentido fundamental do quarto mandamento.
O «nós» dos pais, do marido e da esposa, desenvolve-se, por meio da educação, no «nós» da família, que se enxerta sobre as gerações precedentes e se abre a um gradual alargamento. A este respeito, desempenham um papel singular, por um lado, os pais dos pais e, por outro, os filhos dos filhos.
Se os pais, ao darem a vida, tomam parte na obra criadora de Deus, pela educação tornam-se participantes da sua pedagogia conjuntamente paterna e materna. A paternidade divina, segundo S. Paulo, constitui o modelo originário de toda a paternidade e maternidade no cosmos (cf. Ef 3, 14-15), especialmente da maternidade e paternidade humana. Sobre a pedagogia divina nos instruiu plenamente o Verbo eterno do Pai que, ao encarnar-se, revelou ao homem a verdadeira e integral dimensão da sua vocação: a filiação divina. E revelou assim também qual é o verdadeiro significado da educação do homem. Por meio de Cristo, toda a educação, na família e fora dela, é inserida na dimensão salvífica da pedagogia divina, que se dirige aos homens e às famílias e culmina no mistério pascal da morte e ressurreição do Senhor. Daqui, do «coração» da nossa redenção parte todo o processo de educação cristã que, ao mesmo tempo, é sempre educação para a plena humanidade.
Os pais são os primeiros e principais educadores dos próprios filhos e têm também neste campo uma competência fundamental: são educadores porque pais. Eles partilham a sua missão educadora com outras pessoas e instituições, tais como a Igreja e o Estado; todavia, isto deve verificar-se sempre na correcta aplicação do princípio da subsidiariedade. Este implica a legitimidade e mesmo o ónus de oferecer uma ajuda aos pais, mas encontra no direito prevalecente deles e nas suas efectivas possibilidades o seu limite intrínseco e intransponível. O princípio da subsidiariedade põe-se, assim, ao serviço do amor dos pais, indo ao encontro do bem do núcleo familiar. Na verdade, os pais não são capazes de satisfazer por si sós a todas as exigências do processo educativo inteiro, especialmente no que toca à instrução e ao amplo sector da sociabilização. A subsidiariedade completa assim o amor paterno e materno, confirmando o seu carácter fundamental, porque qualquer outro participante no processo educativo não pode operar senão em nome dos pais, com o seu consenso e, em certa medida, até mesmo por seu encargo.
O itinerário educativo conduz à fase da auto-educação, que se atinge quando, graças a um adequado nível de maturidade psico-física, o homem começa a «educar-se por si só». A auto-educação supera, com o passar do tempo, as metas anteriormente alcançadas no processo educativo, no qual, todavia, continua a mergulhar as suas raízes. O adolescente encontra novas pessoas e novos ambientes, em particular os professores e os companheiros de escola, os quais exercem sobre a sua vida um influxo que pode revelar-se educador ou o contrário. Nesta etapa, ele distancia-se, em certa medida, da educação recebida em família, assumindo por vezes uma atitude crítica no confronto dos pais. Apesar de tudo, porém, o processo de auto-educação não pode deixar de estar marcado pelo influxo educativo exercido pela família e pela escola sobre a criança e o adolescente. Mesmo quando se transforma e se encaminha pela sua própria estrada, o jovem continua a permanecer intimamente ligado com as suas raízes existenciais.
Neste horizonte, delinea-se de um modo novo o significado do quarto mandamento: «Honra o teu pai e a tua mãe» (Êx 20, 12); ele permanece ligado organicamente com todo o processo de educação. A paternidade e maternidade, dado primeiro e fundamental no dom da humanidade, abrem perante os pais e os filhos novas e mais profundas perspectivas. Gerar segundo a carne significa dar início a uma posterior «geração», gradual e complexa, através do inteiro processo educativo. O mandamento do Decálogo exige ao filho que honre o pai e a mãe. Mas, como atrás se disse, o mesmo mandamento impõe aos pais um dever, em certo sentido, «simétrico». Também eles devem «honrar» os próprios filhos, tanto pequenos como grandes, e tal atitude é indispensável ao longo de todo o percurso educativo, inclusivamente o escolar. O «princípio de prestar a honra», ou seja, o reconhecimento e o respeito do homem como homem, é a condição fundamental de todo o autêntico processo educativo.
No âmbito da educação, a Igreja tem um papel específico a desempenhar. À luz da tradição e do magistério conciliar, pode-se justamente dizer que não é questão apenas de confiar à Igreja a educação religiosa e moral da pessoa, mas de promover todo o processo educativo da pessoa «juntamente com» a Igreja. A família é chamada a cumprir a sua tarefa educativa em Igreja, participando assim na vida e missão eclesial. A Igreja deseja educar sobretudo através da família, para isso habilitada pelo sacramento do matrimónio com a «graça de estado» que dele se obtém e o específico «carisma» que é próprio da inteira comunidade familiar.
Um dos campos onde a família é insubstituível, é certamente o da educação religiosa, graças à qual a família cresce como «igreja doméstica». A educação religiosa e a catequese dos filhos colocam a família no âmbito da Igreja como um verdadeiro sujeito de evangelização e de apostolado. Trata-se de um direito intimamente conexo com o princípio da liberdade religiosa. As famílias e, mais em concreto, os pais têm a faculdade de livremente escolherem para os seus filhos um determinado modelo de educação religiosa e moral segundo as próprias convicções. Mas ainda quando eles confiam tais obrigações a instituições eclesiásticas ou a escolas geridas por pessoal religioso, é necessário que a sua presença educativa continue a ser constante e activa.
Tampouco se há-de descurar, no contexto da educação, a questão essencial da opção vocacional e, nela, particularmente a preparação para a vida matrimonial. Notáveis são os esforços e as iniciativas realizadas pela Igreja a favor da preparação para o matrimónio, por exemplo, sob a forma de cursos organizados para os noivos. Tudo isso é válido e necessário. Mas não se deve esquecer que a preparação para a futura vida de casal é sobretudo tarefa da família. Certamente, só as famílias espiritualmente maduras podem enfrentar de modo adequado tal compromisso. E por isso, há que sublinhar a exigência de uma particular solidariedade entre as famílias, que se pode exprimir através de diversas formas organizadas, como as associações de famílias para bem das famílias. A instituição familiar consolida-se com tal solidariedade, que aproxima entre si não apenas as várias pessoas, mas também as comunidades, empenhando-as a rezar juntas e a buscar, com o contributo de todos, as respostas às perguntas essenciais que a vida põe. Não é esta uma forma preciosa de apostolado das famílias entre si? É importante que as famílias procurem construir entre si vínculos de solidariedade. Isto, para além do mais, consente-lhes de se prestarem uns aos outros um serviço educativo: os pais são educados através de outros pais, os filhos através dos filhos. Cria-se assim uma peculiar tradição educadora, cuja força lhe vem do carácter de «igreja doméstica», que é próprio da família.
O evangelho do amor é a fonte inexaurível de tudo quanto se nutre a família humana como «comunhão de pessoas». No amor, encontra apoio e sentido definitivo todo o processo educativo, como fruto maduro da recíproca doação dos pais. Mediante as canseiras, os sofrimentos e as desilusões, que acompanham a educação da pessoa, o amor não cessa de estar sujeito a uma contínua avaliação. Para superar este exame, requer-se um manancial de força espiritual que se encontra apenas n'Aquele que «amou até ao fim» (Jo 13, 1). Assim, a educação coloca-se plenamente no horizonte da «civilização do amor»; desta depende e, em grande medida, contribui para a sua construção.
A assídua e confiante oração da Igreja, durante o Ano da Família, é oferecida pela educação do homem, para que as famílias perseverem no compromisso educativo com coragem, confiança e esperança, não obstante as dificuldades às vezes tão graves que parecem insuperáveis. A Igreja reza para que vençam as forças da «civilização do amor», que jorram da fonte do amor de Deus; forças que a Igreja emprega sem descanso em benefício da inteira família humana.
A família e a sociedade
17. A família é uma comunidade de pessoas, a mais pequena célula social, e como tal é uma instituição fundamental para a vida de cada sociedade.
Que espera a família enquanto instituição da sociedade? Antes de mais, ser reconhecida na sua identidade e aceite na sua subjectividade social. Esta subjectividade está ligada à identidade própria do matrimónio e da família. O matrimónio, que está na base da instituição familiar, é estabelecido pela aliança com que «o homem e a mulher constituem entre si a comunhão íntima de toda a vida, ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole» (40). Somente uma tal união pode ser reconhecida e confirmada como «matrimónio» pela sociedade. Ao contrário, não o podem ser as outras uniões interpessoais que não obedecem às condições agora recordadas, mesmo se hoje, precisamente sobre este ponto, se difundem tendências muito perigosas para o futuro da família e da própria sociedade.
Nenhuma sociedade humana pode correr o risco do permissivismo em questões de fundo relativas à essência do matrimónio e da família! Um tal permissivismo moral só pode causar dano às autênticas exigências da paz e da comunhão entre os homens. Compreende-se assim a razão por que a Igreja defende vigorosamente a identidade da família e incita as instituições competentes, especialmente os responsáveis pela política, bem como as organizações internacionais, a não cederem à tentação de uma aparente e falsa modernidade.
Como comunidade de amor e de vida, a família é uma realidade social firmemente radicada e, de modo muito próprio, uma sociedade soberana, apesar de condicionada sob vários aspectos. A afirmação da soberania da instituição-família e a constatação dos seus múltiplos condicionalismos levam a falar dos direitos da família. A este propósito, a Santa Sé publicou em 1983 a Carta dos Direitos da Família, que conserva hoje toda a sua actualidade. Os direitos da família estão estritamente conexos com os direitos do homem: de facto, se a família é comunhão de pessoas, a sua auto-realização depende, em medida significativa, da justa aplicação dos direitos das pessoas que a compõem. Alguns destes direitos dizem imediatamente respeito à família, como o direito dos pais à procriação responsável e à educação da prole; outros direitos, ao contrário, referem-se ao núcleo familiar só de modo indirecto: entre estes, de singular importância, estão o direito à propriedade, especialmente a chamada propriedade familiar, e o direito ao trabalho.
Porém, os direitos da família não são simplesmente a soma matemática dos da pessoa, porquanto a família é algo mais do que a soma dos seus membros considerados singularmente. Ela é comunidade de pais e filhos; às vezes, comunidade de diversas gerações. Por isso, a sua subjectividade, que se constrói sobre a base do desígnio de Deus, fundamenta e exige direitos próprios e específicos. A Carta dos Direitos da Família, partindo dos princípios morais citados, consolida a existência do instituto familiar na ordem social e jurídica da «grande» sociedade: da nação, do estado e das comunidades internacionais. Cada uma destas «grandes» sociedades está condicionada, ao menos indirectamente, pela existência da família; por isso, a definição das tarefas e deveres da «grande» sociedade relativamente à família é questão extremamente importante e essencial.
Em primeiro lugar, está o vínculo quase orgânico que se instaura entre a família e a nação. Naturalmente, nem sempre se pode falar de nação em sentido próprio. É que existem grupos étnicos que, apesar de não se poderem considerar verdadeiras nações, todavia desempenham, em certa medida, a função de «grande» sociedade. Tanto numa hipótese como noutra, o vínculo da família com o grupo étnico ou com a nação baseia-se primariamente sobre a participação na cultura. Os pais geram os filhos, num determinado sentido, também para a nação, a fim de que sejam membros dela e participem do seu património histórico e cultural. Desde o início, a identidade da família delinea-se, em certa medida, sobre a base da identidade da nação a que pertence.
A família, ao participar no património cultural da nação, contribui para aquela específica soberania, que deriva da própria cultura e língua. Falei deste argumento à Assembleia da UNESCO em Paris, no ano 1980, e sobre ele tornei mais vezes, devido à sua inegável importância. Através da cultura e da língua, não apenas a nação, mas cada família encontra a sua soberania espiritual. De contrário, seria difícil explicar muitos acontecimentos da história dos povos, especialmente europeus; factos antigos e modernos, célebres e dolorosos, de vitórias e de derrotas, dos quais resulta quanto a família esteja organicamente unida à nação, e a nação à família.
Quanto ao estado, o vínculo da família é em parte semelhante e em parte diverso. Na verdade, o estado distingue-se da nação pela sua estrutura menos «familiar», organizado como é segundo um sistema político e de forma mais «burocrática». Contudo, também o sistema estatal possui, em determinado sentido, uma própria «alma», na medida correspondente à sua natureza de «comunidade política» juridicamente ordenada em função do bem comum (41). Com esta «alma» está estreitamente conexa a família, ligada ao estado precisamente em virtude do princípio da subsidiariedade. A família, de facto, é realidade social que não dispõe de todos os meios necessários para realizar os próprios fins, nomeadamente no campo da instrução e da educação. O estado é, então, chamado a intervir segundo o mencionado princípio: lá onde se revela autosuficiente, a família seja deixada agir autonomamente; uma excessiva intromissão do estado resultaria prejudicial, para além de abusiva, constituindo uma clara violação dos direitos da família; somente quando ela não se basta realmente a si mesma, o estado tem a faculdade e o dever de intervir.
Para além do âmbito da educação e da instrução a todos os níveis, o auxílio estatal, que de modo algum deve excluir a iniciativa dos privados, exprime-se, por exemplo, nas instituições que visam salvaguardar a vida e a saúde dos cidadãos, e, de modo particular, nas medidas de previdência que dizem respeito ao mundo do trabalho. O desemprego constitui, em nossos dias, uma das mais sérias ameaças à vida familiar e justamente preocupa todas as sociedades. Ele representa um desafio para a política dos vários estados e um objecto de atenta reflexão para a doutrina social da Igreja. Quão indispensável e urgente é, pois, dar-lhe remédio com soluções corajosas, que saibam atender, também além das fronteiras nacionais, às muitas famílias cuja falta de trabalho se traduz numa situação de dramática miséria (42).
Falando do trabalho em relação à família, é justo sublinhar a importância e o peso da actividade das mulheres no seio do núcleo familiar (43): deve ser reconhecida e valorizada profundamente. A «canseira» da mulher que, depois de ter dado à luz um filho, o nutre, cuida dele e se ocupa da sua educação, especialmente nos primeiros anos, é tão grande que não teme confronto com nenhum trabalho profissional. Isto há-de ser claramente afirmado, pelo menos tanto como se reivindica qualquer outro direito conexo com o trabalho. A maternidade, com tudo aquilo que ela comporta de canseira, deve obter um reconhecimento também económico, pelo menos igual ao dos outros trabalhos, empreendidos para manter a família, numa fase tão delicada da sua existência.
Há que fazer verdadeiramente todo o esforço possível, para que a família seja reconhecida como sociedade primordial e, em certo sentido, «soberana ». A sua «soberania» é indispensável para o bem da sociedade. Uma nação verdadeiramente soberana e espiritualmente forte é sempre composta por famílias fortes, cientes da sua vocação e da sua missão na história. A família está no centro de todos estes problemas e tarefas: relegá-la para um papel subalterno e secundário, excluindo-a da posição que lhe compete na sociedade, significa causar um grave dano ao autêntico crescimento do corpo social inteiro.
II
O ESPOSO ESTÁ CONVOSCO
Em Caná da Galileia
18. Falando um dia com os discípulos de João, Jesus acenou a umas bodas e à presença do esposo entre os convidados: «o esposo está com eles» (Mt 9, 15). Indicava assim o cumprimento em Si próprio da imagem de Deus-esposo, empregue já no Antigo Testamento, para revelar plenamente o mistério de Deus como mistério de Amor.
Qualificando-se como «esposo», Jesus desvenda assim a essência de Deus e confirma o seu amor imenso pelo homem. Mas a escolha desta imagem, indirectamente, projecta luz também sobre a verdade profunda do amor esponsal. De facto, usando-a para falar de Deus, Jesus mostra quanta paternidade e quanto amor de Deus se reflectem no amor de um homem e de uma mulher, que se unem em matrimónio. Por isso, ao início da sua missão, Jesus vai a Caná da Galileia participar num banquete de núpcias, juntamente com Maria e com os primeiros discípulos (cf. Jo 2, 1-11). Ele pretende assim demonstrar quanto a verdade da família esteja inscrita na Revelação de Deus e na história da salvação. No Antigo Testamento, especialmente nos Profetas, encontram-se palavras muito belas sobre o amor de Deus: um amor carinhoso como o duma mãe para com o seu menino; um amor terno como o do esposo pela esposa, mas ao mesmo tempos e de igual modo profundamente ciumento; um amor mais inclinado ao perdão que ao castigo; um amor que se compadece do homem como faz o pai do filho pródigo, levanta e torna-o participante da vida divina. Um amor que deslumbra: uma novidade até então desconhecida em todo o mundo pagão.
Em Caná da Galileia, Jesus é como que o arauto da verdade divina sobre o matrimónio; daquela verdade sobre a qual a família humana se pode apoiar, fortalecendo-se para todas as provas da vida. Jesus anuncia esta verdade com a sua presença nas bodas de Caná e com a realização do seu primeiro «sinal»: a água transformada em vinho.
Ele anuncia ainda a verdade sobre o matrimónio, quando, ao falar com os fariseus, explica quanto o amor que vem de Deus, amor terno e esponsal, seja fonte de exigências profundas e radicais. Menos exigente tinha sido Moisés, que permitira dar carta de divórcio. Quando, em acesa controvérsia, os fariseus se apelam para Moisés, Cristo responde categórico: «Ao princípio não foi assim» (Mt 19, 8). E recorda como Aquele que criou o ser humano, o criou homem e mulher e estabeleceu: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2, 24). Com lógica coerência, Cristo conclui: «Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Pois bem, o que Deus uniu não o separe o homem» (Mt 19, 6). À objecção dos fariseus, que se sentem fortes pela lei mosaica, Ele responde: «Por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas ao princípio não foi assim» (Mt 19, 8).
Jesus apela «ao princípio», encontrando nas origens mesmas da criação o desígnio de Deus, sobre o qual se baseia a família e, por seu intermédio, toda a história da humanidade. A realidade natural do matrimónio torna-se, por vontade de Cristo, verdadeiro e próprio sacramento da Nova Aliança, marcado com o selo do seu Sangue redentor. Esposos e famílias, recordai-vos por que preço fostes «comprados» (cf. 1 Cor 6, 20)!
Esta verdade admirável, porém, é humanamente difícil de ser aceite e vivida. Como maravilhar-se da cedência de Moisés defronte às instâncias dos seus concidadãos, se até os próprios Apóstolos, ao ouvirem as palavras do Mestre, replicam: «Se é essa a situação do homem perante a mulher, não é conveniente casar-se» (Mt 19, 10)? Jesus, todavia, para bem do homem e da mulher, da família e da sociedade inteira, confirma a exigência posta por Deus desde o princípio. Ao mesmo tempo, porém, Ele aproveita a ocasião para afirmar o valor da opção de não se casar com vista ao Reino de Deus: também esta escolha permite «gerar», mesmo se de modo diverso. A partir desta escolha, têm início a vida consagrada, as Ordens e Congregações Religiosas no Oriente e no Ocidente, bem como a disciplina do celibato sacerdotal, segundo a tradição da Igreja Latina. Portanto, não é verdade a hipótese levantada de que «não é conveniente casar-se», porém, o amor pelo Reino dos céus pode impelir mesmo a não se casar (cf. Mt 19, 12).
Casar-se permanece, contudo, a vocação ordinária do homem, que é abraçada pela maior porção do Povo de Deus. É na família que se formam as pedras vivas do edifício espiritual, de que fala o apóstolo Pedro (cf. 1 Pd 2, 5). Os corpos dos cônjuges são habitação do Espírito Santo (cf. 1 Cor 6, 19). Uma vez que a transmissão da vida divina supõe a da vida humana, do matrimónio nascem não só os filhos dos homens, mas também, em virtude do Baptismo, os filhos adoptivos de Deus, que vivem a vida nova recebida de Cristo mediante o seu Espírito.
Deste modo, caros irmãos e irmãs, esposos e pais, o Esposo está convosco. Sabeis que Ele é o bom Pastor, e conheceis a sua voz. Sabeis para onde vos conduz, como luta para vos providenciar as pastagens onde encontrar a vida e encontrá-la em abundância; sabeis como enfrenta os lobos devoradores, sempre pronto a arrebatar-lhes das fauces as suas ovelhas: cada marido e cada esposa, cada filho e cada filha, cada membro das vossas famílias. Sabeis que Ele, como bom Pastor, está disposto a oferecer a própria vida pelo rebanho (cf. Jo 10, 11). Ele vos conduz por estradas que não são aquelas sinuosas e traiçoeiras de muitas ideologias contemporâneas; repete ao mundo de hoje a verdade integral, como quando se dirigia aos fariseus ou anunciava aos Apóstolos, que depois foi por estes pregada ao mundo, proclamando-a aos homens do tempo, hebreus e gregos. Os discípulos estavam bem cientes de que Cristo tudo tinha renovado; de que o homem se tornara «nova criatura»: não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, mas «um só», n'Ele (cf. Gál 3, 28), agraciado com a dignidade de filho adoptivo de Deus. No dia do Pentecostes, este homem recebeu o Espírito Consolador, o Espírito de verdade; e teve assim início o novo Povo de Deus, a Igreja, antecipação de um novo céu e de uma nova terra (cf. Ap 21, 1).
Os Apóstolos, anteriormente temerosos inclusivamente em relação ao matrimónio e à família, tornaram-se corajosos. Compreenderam que o matrimónio e a família constituem uma verdadeira vocação proveniente do próprio Deus, um apostolado: o apostolado dos leigos. Estão ao serviço da transformação da terra e da renovação do mundo, da criação e da humanidade inteira.
Caríssimas famílias, também vós deveis ser corajosas, sempre prontas a dar testemunho daquela esperança que está em vós (cf. 1 Pd 3, 15), porque enraizada pelo bom Pastor no vosso coração mediante o Evangelho. Deveis estar prontas a seguir Cristo até àquelas pastagens que dão a vida e que Ele mesmo preparou com o mistério pascal da sua morte e ressurreição.
Não tenhais medo dos riscos! As forças divinas são bem mais poderosas que as vossas dificuldades! Incomensuravelmente maior do que o mal que actua no mundo, é a eficácia do sacramento da Reconciliação, não por acaso chamado pelos Padres da Igreja «segundo Baptismo». Muito mais incisiva do que a corrupção presente no mundo é a energia divina do sacramento da Confirmação, que faz maturar o Baptismo. Incomparavelmente maior é, sobretudo, a força da Eucaristia.
A Eucaristia é um sacramento verdadeiramente admirável. Nele, Cristo deixou-Se a Si próprio como alimento e bebida, como fonte de poder salvífico. Deixou-Se a Si mesmo, a fim de que tivéssemos vida e a tivéssemos em abundância (cf. Jo 10, 10): a vida que está n'Ele e que Ele nos comunicou pelo dom do Espírito, quando ressuscitou ao terceiro dia após a sua morte. De facto, a vida que vem d'Ele é para nós. Esta vida é para vós, caros esposos, pais e famílias! Não instituiu Ele a Eucaristia num ambiente familiar, durante a última Ceia? Quando vos encontrais para a refeição e unidos entre vós a partilhais, Cristo está no meio de vós. Mas, Ele é ainda mais o Emanuel, o Deus connosco, quando vos aproximais da Mesa Eucarística. Pode acontecer que, como em Emaús, Ele seja reconhecido apenas ao «partir do pão» (cf. Lc 24, 35). Sucede também que Ele fique longamente à porta a bater, esperando que a porta se abra para poder entrar e cear connosco (cf. Ap 3, 20). A sua última Ceia, as palavras então pronunciadas conservam todo o poder e sabedoria do sacrifício da Cruz. Não existe outro poder nem outra sabedoria, pelos quais possamos ser salvos e contribuir para a salvação dos outros. Não há outro poder nem outra sabedoria que vos possibilitem a vós, pais, educar os vossos filhos e a vós mesmos também. A força educativa da Eucaristia confirmou- se através das gerações e dos séculos.
O bom Pastor está connosco em toda a parte. Como estava em Caná da Galileia, Esposo entre aqueles esposos, que mutuamente se entregavam por toda a vida, o bom Pastor está hoje convosco como motivo de esperança, força dos corações, fonte de entusiasmo sempre novo e sinal da vitória da «civilização do amor». Jesus, o bom Pastor, repete-nos: Não tenhais medo. Eu estou convosco. «Estou convosco todos os dias até ao fim do mundo» (Mt 28, 20). Donde vem tanta força? Donde vem a certeza de que Tu estás connosco, mesmo se Te mataram, ó Filho de Deus, e morreste como qualquer outro ser humano? Donde vem esta certeza? Diz o evangelista: «Amou-os até ao fim» (Jo 13, 1). Assim, Tu nos amas, Tu que és o Primeiro e o Último, o Vivente; Tu que estavas morto e agora vives para sempre (cf. Ap 1, 17-18).
O grande mistério
19. S. Paulo sintetiza o tema da vida familiar com a expressão: « grande mistério » (Ef 5, 32). O que ele escreve na Carta aos Efésios sobre este «grande mistério», apesar de radicado no livro do Génesis e em toda a tradição do Antigo Testamento, apresenta todavia uma configuração nova, que encontrará depois explicitação no magistério da Igreja.
A Igreja professa que o matrimónio, como sacramento da aliança dos esposos, é um «grande mistério», porque nele se exprime o amor esponsal de Cristo pela sua Igreja. Escreve S. Paulo: «Maridos, amai as vossas mulheres como também Cristo amou a Igreja, e por ela Se entregou, para a santificar, purificando-a no baptismo da água pela palavra da vida» (Ef 5, 25-26). O Apóstolo fala aqui do Baptismo, de que trata amplamente na Carta aos Romanos, apresentando-o como participação na morte de Cristo para partilhar da sua vida (cf. Rom 6, 3-4). Neste sacramento, o fiel nasce como um homem novo, já que o Baptismo tem o poder de comunicar uma vida nova, a própria vida de Deus. O mistério teândrico do Deus-homem está, em certo sentido, compendiado no evento baptismal: «Jesus Cristo, Senhor nosso, Filho de Deus — dirá mais tarde S. Ireneu e, com ele, muitos outros Padres da Igreja do Oriente e do Ocidente — tornou-se filho do homem, para que o homem possa tornar-se filho de Deus» (44).
Assim, o Esposo é o próprio Deus que se fez homem. Na Antiga Aliança, Jahvé apresenta-se como o Esposo de Israel, povo eleito: um Esposo terno e exigente, ciumento e fiel. Todas as traições, deserções e idolatrias de Israel, descritas dramática e sugestivamente pelos Profetas, não conseguem apagar o amor com que Deus-Esposo «ama até ao fim» (cf. Jo 13, 1).
A confirmação e o cumprimento da comunhão esponsal entre Deus e o seu povo verificam-se em Cristo, na Nova Aliança. Jesus assegura-nos que o Esposo está connosco (cf. Mt 9, 15). Está com todos nós, está com a Igreja. A Igreja torna-se esposa: esposa de Cristo. Esta esposa, de que fala a Carta aos Efésios, faz-se presente em cada baptizado e é como uma pessoa em quem o olhar do seu Esposo se compraz: «Amou a Igreja, e por ela Se entregou (...) para a apresentar a Si mesmo como Igreja gloriosa sem mancha nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e imaculada» (Ef 5, 25.27). O amor, pelo qual o Esposo «amou até ao fim» a Igreja, faz com que esta seja sempre novamente santa nos seus santos, mesmo se não deixa de ser uma Igreja de pecadores. Também os pecadores, «os publicanos e as prostitutas», são chamados à santidade, como o próprio Cristo certifica no Evangelho (cf. Mt 21, 31). Todos são chamados a tornar-se Igreja gloriosa, santa e imaculada. «Sede santos — diz o Senhor — porque Eu sou santo» (Lv 11, 44; cf. 1 Pd 1, 16).
Eis a dimensão mais sublime do «grande mistério», o significado interior do dom sacramental na Igreja, o sentido mais profundo do Baptismo e da Eucaristia. São os frutos do amor, com que o Esposo amou até ao fim; amor que se esparge constantemente, oferecendo aos homens uma participação cada vez maior na vida divina.
Depois de ter dito: «Maridos, amai as vossas mulheres» (Ef 5, 25), S. Paulo, numa expressão ainda mais vigorosa, acrescenta: «Assim, os maridos devem amar as suas mulheres, como aos seus próprios corpos. Aquele que ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Porque ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; pelo contrário, nutre-a e cuida dela, como também Cristo faz à sua Igreja, pois todos somos membros do seu corpo» (Ef 5, 28-30). E exorta os cônjuges com as seguintes palavras: «Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Cristo» (Ef 5, 21).
Esta é, por certo, uma apresentação nova da verdade eterna acerca do matrimónio e da família, à luz da Nova Aliança. Cristo revelou-a no Evangelho, com a sua presença em Caná da Galileia, com o sacrifício da Cruz e os Sacramentos da sua Igreja. Assim os cônjuges encontram em Cristo o ponto de referência para o seu amor esponsal. Ao falar de Cristo Esposo da Igreja, é de modo analógico que S. Paulo se refere ao amor esponsal. Ele reenvia ao livro do Génesis: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2, 24). Eis o «grande mistério» do eterno amor já presente na criação, revelado em Cristo e confiado à Igreja. «É grande este mistério — repete o Apóstolo; digo-o, porém, em relação a Cristo e à Igreja» (Ef 5, 32). Portanto, não se pode compreender a Igreja como Corpo místico de Cristo, como sinal da Aliança do homem com Deus em Cristo, como sacramento universal de salvação, sem fazer referência ao «grande mistério», associado à criação do ser humano como homem e mulher e à vocação de ambos ao amor conjugal, à paternidade e à maternidade. Não existe o «grande mistério», que é a Igreja e a humanidade em Cristo, sem o «grande mistério» expresso no ser «uma só carne» (cf. Gn 2, 24; Ef 5, 31-32), isto é, na realidade do matrimónio e da família.
A própria família é o grande mistério de Deus. Como «igreja doméstica», ela é a esposa de Cristo. A Igreja Universal, e nela cada Igreja Particular, revela- -se de maneira mais imediata e concreta como esposa de Cristo na «igreja doméstica» e no amor aí vivido: amor conjugal, amor paterno e materno, amor fraterno, amor de uma comunidade de pessoas e gerações. Porventura será possível imaginar o amor humano sem o Esposo e sem o amor com que Ele amou primeiro e até ao fim? Somente se tomam parte em tal amor e nesse «grande mistério», é que os esposos podem amar «até ao fim»: ou se tornam participantes dele, ou então não conhecem plenamente o que seja o amor nem quanto sejam radicais as suas exigências. Sem dúvida, isto constitui para eles um grave perigo.
A doutrina da Carta aos Efésios encanta pela sua profundeza e força ética. Ao indicar o matrimónio, e indirectamente a família, como o «grande mistério» em relação a Cristo e à Igreja, o apóstolo Paulo pode reafirmar uma vez mais aquilo que tinha dito anteriormente aos maridos: «Pelo que vos diz respeito, ame também cada um de vós sua mulher como a si mesmo»! E acrescenta: «E a mulher respeite o seu marido»! (Ef 5, 33). Ela respeita, porque ama e sabe que é correspondida no amor. É em virtude de tal amor que os esposos se tornam dom recíproco. No amor, está contido o reconhecimento da dignidade pessoal do outro e da sua irrepetível unicidade: de facto, dentre todas as criaturas da terra, cada um deles enquanto ser humano foi escolhido por Deus por si mesmo (45); porém, cada um, por um acto consciente e responsável, faz livremente de si próprio um dom ao outro e aos filhos recebidos do Senhor. S. Paulo prossegue a sua exortação, coligando-se significativamente ao quarto mandamento: «Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, porque isto é justo. "Honra teu pai e tua mãe", que é o primeiro mandamento que tem uma promessa, "para que sejas feliz e tenhas longa vida sobre a Terra". E vós, pais, não exaspereis os vossos filhos mas educai-os na disciplina e correcção segundo o Senhor!» (Ef 6, 1-4). Assim, o Apóstolo vê implícito no quarto mandamento o compromisso do respeito mútuo entre marido e mulher, entre pais e filhos, reconhecendo nele deste modo o princípio da estabilidade familiar.
A maravilhosa síntese paulina a propósito do «grande mistério» apresenta-se como o compêndio, a summa, em determinado sentido, do ensinamento sobre Deus e o homem, que Cristo levou à perfeição. Infelizmente, com o desenvolvimento do racionalismo moderno, o pensamento ocidental foi-se afastando pouco a pouco de tal ensinamento. O filósofo que formulou o princípio «cogito, ergo sum » (penso, logo existo), acabou por imprimir à concepção moderna do homem o carácter dualista que a caracteriza. É típico do racionalismo contrapor radicalmente, no homem, o espírito ao corpo e o corpo ao espírito. O homem, pelo contrário, é pessoa na unidade do corpo e do espírito (46). O corpo nunca pode ser reduzido a pura matéria: é um corpo «espiritualizado», assim como o espírito está tão profundamente unido ao corpo que se pode qualificar como um espírito «corporizado». A fonte mais importante para o conhecimento do corpo é o Verbo feito carne. Cristo revela o homem ao próprio homem (47). Esta afirmação do Concílio Vaticano II, de certo modo, é a resposta, longamente esperada, dada pela Igreja ao racionalismo moderno.
Tal resposta reveste um importância fundamental para a compreensão da família, especialmente no contexto da civilização actual, que, como foi dito, parece ter, em muitos casos, renunciado a ser uma «civilização do amor». Grande foi, na era moderna, o progresso no conhecimento do mundo material, e também da psicologia humana, mas quanto à sua dimensão mais íntima, a dimensão metafísica, o homem de hoje permanece em boa parte um ser desconhecido para si mesmo; consequentemente, uma realidade desconhecida permanece também a família. Isto verifica-se por causa do afastamento daquele «grande mistério» de que fala o Apóstolo.
A separação entre espírito e corpo no homem teve como consequência a afirmação da tendência a tratar o corpo humano não segundo as categorias da sua específica semelhança com Deus, mas segundo aquelas da sua semelhança com todos os outros corpos presentes na natureza, corpos que o homem utiliza como material para a sua actividade destinada à produção de bens de consumo. Mas facilmente todos se podem dar conta de quanto a aplicação ao homem de tais critérios esconda realmente enormes perigos. Quando o corpo humano, considerado independentemente do espírito e do pensamento, é utilizado como material ao mesmo nível do corpo dos animais, — como sucede, por exemplo, nas manipulações sobre os embriões e os fetos — inevitavelmente caminha-se para um terrível descalabro ético.
Numa tal perspectiva antropológica, a família humana está a viver a experiência de um novo maniqueísmo, no qual o corpo e o espírito são radicalmente contrapostos entre si: nem o corpo vive do espírito, nem o espírito vivifica o corpo. Assim o homem deixa de viver como pessoa e sujeito. Apesar das intenções e declarações em contrário, torna-se exclusivamente um objecto. Assim, por exemplo, esta civilização neo- -maniqueísta leva a olhar a sexualidade humana mais como um campo de manipulação e desfrutamento, do que a olhá-la como a realidade geradora daquele assombro primordial que, na manhã da criação, impele Adão a exclamar à vista de Eva: «É carne da minha carne e osso dos meus ossos» (cf. Gn 2, 23). É o mesmo assombro que ecoa nas palavras do Cântico dos Cânticos: «Arrebataste o meu coração, minha irmã, minha esposa! Arrebataste o meu coração com um só dos teus olhares» (Ct 4, 9). Como estão distantes certas concepções modernas da profunda compreensão da masculinidade e da feminilidade oferecida pela Revelação divina! Esta leva-nos a descobrir na sexualidade humana uma riqueza da pessoa, que encontra a sua verdadeira valorização na família e exprime a sua vocação profunda mesmo na virgindade e no celibato pelo Reino de Deus.
O racionalismo moderno não suporta o mistério. Não aceita o mistério do ser humano, homem e mulher, nem quer reconhecer que a plena verdade do homem foi revelada em Jesus Cristo. Não tolera, em particular, o «grande mistério» anunciado pela Carta aos Efésios, e combate-o radicalmente. Num contexto de vago deísmo, reconhece a possibilidade ou mesmo a necessidade de um Ser supremo divino, mas recusa decididamente a noção de um Deus que se faz homem para salvar o homem. Para o racionalismo, é impensável que Deus seja o Redentor, e menos ainda que seja «o Esposo», a fonte originária e única do amor esponsal humano. Aquele interpreta a criação e o sentido da existência humana de maneira radicalmente diversa. Mas, se faltar ao homem a perspectiva de um Deus que o ama e, por intermédio de Cristo, o chama a viver n'Ele e com Ele, se à família não for aberta a possibilidade de participar no «grande mistério», o que é que resta senão a mera dimensão temporal da vida? Resta apenas a vida temporal como campo de luta pela existência, de procura ansiosa do lucro, sobretudo do lucro económico.
O «grande mistério», o sacramento do amor e da vida, que tem o seu início na criação e na redenção e cujo garante é Cristo-Esposo, perdeu na mentalidade moderna as suas raízes mais profundas. Está ameaçado em nós e à nossa volta. Possa o Ano da Família, celebrado na Igreja, tornar-se para os esposos uma ocasião propícia para o redescobrir e reafirmar com vigor, coragem e entusiasmo.
A Mãe do belo amor
20. A história do «belo amor» tem início com a Anunciação, naquelas palavras admiráveis que o Anjo dirigiu a Maria, chamada a ser a Mãe do Filho de Deus. Com o «sim» de Maria, Aquele que é «Deus de Deus, Luz da Luz», torna-se filho do homem; Maria é sua Mãe, sem deixar de ser a Virgem que «não conhece homem» (cf. Lc 1, 34). Como Mãe-Virgem, Maria torna-se Mãe do belo amor. Esta verdade está revelada já nas palavras do Arcanjo Gabriel, mas o seu pleno significado será pouco a pouco confirmado e aprofundado, à medida que Maria for seguindo o seu Filho na peregrinação da fé (48).
A «Mãe do belo amor» foi recebida por aquele que, segundo o costume de Israel, era já seu esposo terreno, José, da estirpe de David. Ele teria o direito de pensar na consorte já desposada como sua mulher e mãe dos seus filhos. Porém, nesta aliança esponsal, Deus intervém com uma iniciativa própria: «José, filho de David, não temas receber Maria tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo» (Mt 1, 20). José está ciente do estado de Maria, constata com os próprios olhos que n'Ela foi concebida uma nova vida que não provém dele, e, como homem justo, respeitador da Lei antiga que, no seu caso, impunha a obrigação do divórcio, quer rescindir, de forma caridosa, o seu matrimónio (cf. Mt 1, 19). O Anjo do Senhor faz-lhe saber que isso não estaria de acordo com a sua vocação, antes, seria contrário ao amor esponsal que o une a Maria. Este recíproco amor esponsal, para ser plenamente o «belo amor», exige que ele acolha Maria e o Filho d'Ela sob o tecto da sua casa, em Nazaré. José obedece à mensagem divina e actua segundo o que lhe fora mandado (cf. Mt 1, 24). É graças também a José que o mistério da encarnação e, juntamente com ele, o mistério da Sagrada Família, fica inscrito profundamente no amor esponsal do homem e da mulher e indirectamente na genealogia de cada família humana. Aquilo que S. Paulo designará por «grande mistério», encontra na Sagrada Família a sua expressão mais alta. A família coloca-se assim verdadeiramente no centro da Nova Aliança.
Mas pode-se também dizer que a história do «belo amor» iniciou, em certo sentido, com o primeiro casal humano, com Adão e Eva. A tentação, a que cederam, e o consequente pecado original não os privou completamente da capacidade do «belo amor». Vê-se isso, por exemplo, ao ler no livro de Tobias que os esposos Tobias e Sara, ao definirem o sentido da sua união, fazem apelo aos primeiros pais, Adão e Eva (cf. Tb 8, 6). Na Nova Aliança, testemunha-o também S. Paulo ao falar de Cristo como novo Adão (1 Cor 15, 45): Cristo não vem condenar o primeiro Adão e a primeira Eva, mas redimi-los; vem renovar aquilo que no homem é dom de Deus, quanto nele é eternamente bom e belo e que constitui o substrato do belo amor. A história do «belo amor» é, em determinado sentido, a história da salvação do homem.
O «belo amor» sempre tem início da auto-revelação da pessoa. Na criação, Eva revela-se a Adão, como Adão se revela a Eva. No curso da história, os novos casais humanos dizem-se reciprocamente: «Caminharemos juntos na vida». Assim tem início a família como união dos dois e, graças ao sacramento, como nova comunidade em Cristo. Para que seja realmente belo, o amor deve ser dom de Deus, entranhado pelo Espírito Santo nos corações humanos e aí continuamente alimentado (cf. Rom 5, 5). Ciente disto, a Igreja no sacramento do matrimónio pede ao Espírito Santo que visite os corações humanos. Para que seja verdadeiramente o «belo amor», isto é, dom da pessoa à pessoa, deve provir d'Aquele que em Si mesmo é dom e fonte de todo o dom.
Assim sucede no Evangelho, no caso de Maria e José, que, no limiar da Nova Aliança, revivem a experiência do «belo amor», descrita no Cântico dos Cânticos. José pensa e diz a Maria: «Irmã minha, Esposa» (cf. Ct 4, 9). Maria, Mãe de Deus, concebe por obra do Espírito Santo, do Qual provém o «belo amor», que o Evangelho delicadamente coloca no contexto do «grande mistério».
Quando falamos do «belo amor», estamos naturalmente a referir-nos à beleza: beleza do amor e beleza do ser humano que, em virtude do Espírito Santo, é capaz de tal amor. Falamos da beleza do homem e da mulher: da sua beleza como irmãos e irmãs, como noivos, como cônjuges. O Evangelho esclarece não apenas o mistério do «belo amor», mas também aquele não menos profundo da beleza, que vem de Deus como o amor. De Deus vêm o homem e a mulher, pessoas chamadas a tornar-se um dom recíproco. Do dom originário do Espírito «que dá a vida», provém o dom mútuo de serem marido ou mulher, e igualmente o dom de serem irmão ou irmã.
Tudo isto encontra confirmação no mistério da Encarnação, que se tornou, na história dos homens, fonte de uma beleza nova que inspirou inumeráveis obras-primas de arte. Depois da severa proibição de representar o Deus invisível por meio de imagens (cf. Dt 4, 15-20), a época cristã, ao contrário, tem oferecido a representação artística do Deus feito homem, de Maria sua Mãe e de José, dos Santos da Antiga e Nova Aliança e, em geral, de toda a criação redimida por Cristo, inaugurando assim uma nova relação com o mundo da cultura e da arte. Pode-se dizer que o novo cânone da arte, atento à dimensão profunda do homem e ao seu futuro, tem início a partir do mistério da Encarnação de Cristo, inspirando-se nos mistérios da sua vida: o nascimento em Belém, a vida oculta em Nazaré, o ministério público, o Gólgota, a ressurreição, o regresso final na glória. A Igreja está ciente de que a sua presença no mundo contemporâneo e, em particular, o seu contributo e apoio à promoção da dignidade do matrimónio e da família estão estreitamente ligados ao progresso da cultura; com isto, justamente ela se preocupa. Por isso mesmo, a Igreja segue com solícita atenção a orientação dos meios de comunicação social, cuja dever é simultaneamente o de formar e o de informar o grande público (49). Conhecendo bem a ampla e profunda incidência desses meios, ela não se cansa de acautelar os operadores da comunicação para os perigos de manipulação da verdade. De facto, que verdade poderá haver em filmes, espectáculos, programas rádio-televisivos onde prevalecem a pornografia e a violência? Será este um bom serviço à verdade do homem? São interrogações a que não se podem subtrair os operadores destes instrumentos e os vários responsáveis pela elaboração e a comercialização dos seus produtos.
Graças a uma tal reflexão crítica, a nossa civilização, com tantos aspectos positivos que possui quer no plano material quer no cultural, dever-se-ia dar conta de ser, sob diversos pontos de vista, uma civilização doente que gera profundas alterações no homem. Por que é que se verifica isto? A razão está no facto de a nossa sociedade se ter afastado da verdade plena sobre o homem, da verdade acerca daquilo que o homem e a mulher são como pessoas. Consequentemente, não sabe compreender de maneira adequada o que sejam verdadeiramente o dom das pessoas no matrimónio, o amor responsável ao serviço da paternidade e da maternidade, a autêntica grandeza da geração e da educação. Será, então, exagerado afirmar que os mass media, se não são orientados segundo os sãos princípios éticos, não respeitam a verdade na sua dimensão essencial? Aqui está o drama: os modernos instrumentos da comunicação social estão sujeitos à tentação de manipular a mensagem, tornando falsa a verdade sobre o homem. O ser humano não é aquele anunciado na publicidade e apresentado nos modernos mass media. É muito mais, como unidade psicofísica, como um todo só feito de alma e corpo, como pessoa. É muito mais pela sua vocação ao amor, que o insere como homem e mulher na dimensão do «grande mistério».
Maria foi a primeira a entrar nesta dimensão, e nela introduziu também o seu esposo José. Eles tornaram-se, assim, os primeiros modelos daquele belo amor, que a Igreja não cessa de implorar para a juventude, para os cônjuges e para as famílias. E a juventude, os cônjuges e as famílias não se cansem, também eles, de rezar por isso. Como não pensar na multidão de peregrinos, jovens e menos jovens, que acorrem aos santuários marianos e fixam o olhar no rosto da Mãe de Deus, no rosto dos membros da Sagrada Família, sobre os quais se reflecte toda a beleza do amor dado por Deus ao homem?
No Sermão da Montanha, reportando-Se ao sexto mandamento, Cristo proclama: «Ouvistes que foi dito: não cometerás adultério. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5, 27-28). Comparativamente ao Decálogo, orientado já para a defesa da tradicional solidez do matrimónio e da família, estas palavras marcam um grande passo em frente. Jesus vai à fonte do pecado do adultério: essa situa-se no íntimo do homem e manifesta-se num modo de olhar e pensar que é dominado pela concupiscência. Por meio desta, o homem tende a apropriar-se de um outro ser humano, que não é seu, mas pertence a Deus. Ao dirigir-se aos seus contemporâneos, Cristo fala aos homens de todos os tempos e de todas as gerações; fala, em particular, à nossa geração que vive sob o signo de uma civilização consumista e hedonista.
Por que motivo Cristo se pronuncia de modo tão forte e exigente no Sermão da Montanha? A resposta é bem clara: Cristo quer garantir a santidade do matrimónio e da família, quer defender a verdade plena relativa à pessoa humana e à sua dignidade.
Só à luz desta verdade é que a família pode ser plenamente a grande «revelação», a primeira descoberta do outro: a mútua descoberta dos esposos e, depois, de cada filho ou filha que deles nasce. Aquilo que os cônjuges se juram reciprocamente, ou seja, de serem «fiéis e de se amarem e honrarem, tanto na prosperidade como na provação, por toda a sua vida», só é possível na dimensão do «belo amor». Isto, o homem de hoje não o pode aprender dos conteúdos da moderna cultura de massa. O «belo amor» aprende-se sobretudo rezando. A oração, de facto, comporta sempre, para usar uma expressão de S. Paulo, uma espécie de interior ocultação com Cristo em Deus: «A vossa vida está escondida com Cristo em Deus» (Col 3, 3). Só numa tal ocultação é que opera o Espírito Santo, fonte do belo amor. Ele derrama este amor não só no coração de Maria e de José, mas também no coração dos esposos, dispostos a ouvirem a palavra de Deus e a conservarem-na (cf. Lc 8, 15). O futuro de cada núcleo familiar depende deste «belo amor»: amor recíproco dos cônjuges, dos pais e dos filhos, amor de todas as gerações. O amor é a verdadeira fonte da unidade e da força da família.
O nascimento e o perigo
21. O breve relato da infância de Jesus refere-nos, de maneira muito significativa e quase contemporaneamente, o seu nascimento e o perigo, que Ele teve logo de enfrentar. S. Lucas reproduz as palavras proféticas pronunciadas pelo velho Simeão, quando o Menino foi apresentado ao Senhor no Templo, quarenta dias depois do nascimento. Fala de «luz» e de «sinal de contradição»; a Maria prediz ainda: «Uma espada trespassará a tua alma» (cf. Lc 2, 32-35). S. Mateus, ao contrário, detém-se nas ciladas tramadas por Herodes contra Jesus: informado pelos Magos, chegados do Oriente para ver o novo rei que devia nascer (cf. Mt 2, 2), Herodes sente-se ameaçado no seu poder e, depois da partida daqueles, ordena que sejam mortos todos os meninos de Belém e arredores, com menos de dois anos de idade. Jesus escapa das mãos de Herodes, graças a uma particular intervenção divina e à solicitude paterna de José, que o leva juntamente com sua Mãe para o Egipto, onde residem até à morte de Herodes. Tornam depois para Nazaré, a sua cidade natal, onde a Sagrada Família inicia o longo período de uma existência escondida, cadenciada pelo cumprimento fiel e generoso dos deveres quotidianos (cf. Mt 2, 1-23; Lc 2, 39-52).
De grande eloquência profética se apresenta o facto que Jesus tenha sido confrontado com ameaças e perigos, logo desde o nascimento. Ainda Menino, e já Ele é «sinal de contradição». Uma eloquência profética reveste também o drama das crianças inocentes de Belém, assassinadas por ordem de Herodes, que se tornaram, segundo a antiga liturgia da Igreja, participantes do nascimento e da paixão redentora de Cristo (50). Através da sua «paixão», elas «completam o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja» (Col 1, 24).
Assim, no Evangelho da infância, o anúncio da vida que de modo admirável se cumpre na ocorrência do nascimento do Redentor, aparece fortemente contraposto à ameaça à vida, uma vida que abraça na sua globalidade o mistério da Encarnação e da realidade divino-humana de Cristo. O Verbo fez-se carne (cf. Jo 1, 14), Deus fez-se homem. A este mistério sublime apelavam frequentemente os Padres da Igreja: «Deus fez-se homem, para nos tornarmos deuses» (51). Esta verdade da fé indica contemporaneamente a verdade do ser humano. Ela põe em destaque a gravidade de qualquer atentado à vida do menino no ventre da mãe. Aqui, precisamente aqui, encontramo-nos nas antípodas do «belo amor». Mirando exclusivamente ao prazer, pode-se chegar até a matar o amor, matando o seu fruto. Para a cultura do prazer, o «fruto bendito do teu ventre» (Lc 1, 42) torna-se, em certo sentido, um «fruto maldito».
Como não recordar, a este respeito, os desvios que o chamado estado de direito sofreu em numerosos países? Unívoca e categórica é a lei de Deus relativamente à vida humana. Deus ordena: «Não matarás» (Êx 20, 13). Portanto, nenhum legislador humano pode afirmar: é-te lícito matar, tens direito de matar, deverias matar. Infelizmente, na história do nosso século, verificou-se isso, quando subiram ao poder, até de modo democrático, forças políticas que emanaram leis contrárias ao direito de todo o homem à vida, em nome de supostas e aberrantes razões eugénicas, étnicas e outras do género. Não menos grave, inclusive porque acompanhado de larga aceitação ou consenso de opinião pública, é o fenómeno das legislações não respeitadoras do direito à vida desde a sua concepção. Como se poderiam moralmente aceitar leis que permitem matar o ser humano não nascido ainda, mas já vivo no ventre materno? Desse modo, o direito à vida torna-se apanágio exclusivo dos adultos, que se servem dos próprios parlamentos para actuarem os seus projectos e procurarem os próprios interesses.
Encontramo-nos defronte a uma enorme ameaça contra a vida: não apenas dos simples indivíduos, mas também de toda a civilização. A afirmação de que esta civilização se tornou, sob alguns aspectos, «civilização da morte», recebe assim uma inquietante confirmação. E não será porventura um evento profético o facto de o nascimento de Cristo ter sido acompanhado do perigo para a sua existência? Sim, também a vida d'Aquele que é ao mesmo tempo filho do homem e filho de Deus, esteve ameaçada, esteve em perigo desde o início, e só por milagre evitou a morte.
Nos últimos decénios, todavia, notam-se alguns sintomas reconfortantes de um despertar das consciências: isto verifica-se tanto no mundo do pensamento como na própria opinião pública. Especialmente nos jovens, cresce uma nova consciência do respeito pela vida desde a concepção; difundem-se os movimentos pró-vida (pro life). É um fermento de esperança para o futuro da família e da inteira humanidade.
«... e Me acolhestes»
22. Cônjuges e famílias de todo o mundo: convosco está o Esposo! É sobretudo isto que o Papa quer dizer-vos no ano que as Nações Unidas e a Igreja dedicam à família. «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito, para que todo o que n'Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não mandou o seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas, para que o mundo seja salvo por Ele» (Jo 3, 16-17); «O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito (...) Tendes de nascer de novo» (Jo 3, 6-7). Tendes de nascer «da água e do Espírito» (Jo 3, 5). E precisamente vós, queridos pais e mães, sois as primeiras testemunhas e ministros deste novo nascimento do Espírito Santo. Vós, que gerais os vossos filhos para a pátria terrena, não esqueçais que, ao mesmo tempo, os gerais para Deus. Deus deseja o seu nascimento do Espírito Santo; Ele os ama como filhos adoptivos no Filho unigénito, que nos dá «o poder de nos tornarmos filhos de Deus» (cf. Jo 1, 12). A obra da salvação perdura no mundo e realiza-se por meio da Igreja. Tudo isto é obra do Filho de Deus, do Esposo divino, que nos transmitiu o Reino do Pai e recorda a nós, seus discípulos: «O reino de Deus está dentro de vós» (Lc 17, 21).
A nossa fé diz-nos que Jesus Cristo, que «está sentado à direita do Pai», virá para julgar os vivos e os mortos. Por outro lado, o evangelista João assegura-nos que Ele não foi mandado «ao mundo para julgar o mundo, mas, para que o mundo seja salvo por Ele» (Jo 3, 17). Em que consiste, então, o juízo? Cristo mesmo oferece a resposta: «O juízo é este: a luz veio ao mundo (...) quem pratica a verdade aproxima-se da luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas, pois são feitas em Deus» (Jo 3, 19.21). É o que ainda recentemente recordou a Encíclica Veritatis splendor (52). Então, Cristo é juiz? Os teus próprios actos te julgarão à luz da verdade que tu conheces. Os pais e as mães, os filhos e as filhas serão julgados pelas suas obras. Cada um de nós será julgado sobre os mandamentos; também sobre aqueles que recordámos nesta Carta: o quarto, o quinto, o sexto, o nono. Cada um será julgado, porém, principalmente sobre o amor, que é o sentido e a síntese dos mandamentos. «No entardecer da vida, seremos julgados sobre o amor» — escreveu S. João da Cruz (53). Cristo, Redentor e Esposo da humanidade, «para isto nasceu e para isto veio ao mundo: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a sua voz» (cf. Jo 18, 37). Será Ele o juiz, mas daquele modo que Ele mesmo indicou ao falar do Juízo final (cf. Mt 25, 31-46). O dele, será um juízo sobre o amor, um juízo que confirmará definitivamente a verdade de que o Esposo estava connosco, sem que, talvez, nós o soubéssemos.
O juiz é o Esposo da Igreja e da humanidade. Por isso, julga dizendo: «Vinde, benditos de Meu Pai (...) Porque tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e recolhestes-Me, estava nu e destes-Me de vestir» (Mt 25, 34-36). Naturalmente, este elenco poderia alongar-se, aparecendo nele uma infinidade de problemas que interessam também à vida conjugal e familiar. Poderíamos encontrar afirmações como estas: «Era menino ainda não nascido, e Me acolhestes, permitindo-Me nascer; era criança abandonada e fostes para Mim uma família; era órfão e Me adoptastes e educastes como um filho vosso». E ainda: «Ajudastes as mães hesitantes, ou sujeitas a iníquas pressões, a aceitarem o seu menino nelas gerado e a fazerem-no nascer; ajudastes famílias numerosas, famílias em dificuldade a manterem e educarem os filhos, que Deus lhes dera». E poderíamos continuar com uma lista longa e diversificada, incluindo toda a espécie de verdadeiro bem moral e humano, em que se exprime o amor. Eis a grande messe que o Redentor do mundo, a Quem o Pai confiou o juízo, virá recolher: é a messe de graças e de boas obras, amadurecida pelo sopro do Esposo, o Espírito Santo, que não cessa nunca de actuar no mundo e na Igreja. Dêmos graças por isto ao Dador de todo o bem.
Saibamos, porém, que na sentença final reproduzida pelo evangelista Mateus há um outro elenco, grave e aterrorizador: «Afastai-vos de Mim (...) Porque tive fome e não Me destes de comer; tive sede e não Me destes de beber; era peregrino e não Me recolhestes, estava nu e não Me vestistes» (Mt 25, 41-43). E neste elenco podem-se igualmente encontrar outros comportamentos, nos quais Jesus se apresenta sempre como o homem rejeitado. Assim, Ele identifica-se com a mulher ou o marido abandonado, com a criança concebida e recusada: «Não Me acolhestes»! Também este juízo passa através da história das nossas famílias, passa através da história das nações e da humanidade. O «não Me acolhestes» de Cristo envolve também instituições sociais, governos e organizações internacionais.
Pascal escreveu que «Jesus estará em agonia até ao fim do mundo» (54). A agonia do Getsémani e a agonia do Gólgota são o clímax da manifestação do amor. Numa e noutra, se manifesta o Esposo que está connosco, que ama incessantemente, que «ama até ao fim» (cf. Jo 13, 1). O amor que está n'Ele e que d'Ele se estende para além dos confins das histórias pessoais ou familiares, ultrapassa os confins da história da humanidade.
No termo destas reflexões, queridos Irmãos e Irmãs, pensando a quanto será proclamado de várias tribunas no Ano da Família, quereria renovar convosco a confissão dirigida por Pedro a Cristo: «Tu tens palavras de vida eterna» (Jo 6, 68). Digamos juntos: As tuas palavras, ó Senhor, não passarão (cf. Mc 13, 31)! O que é que vos pode desejar o Papa no final desta longa meditação sobre o Ano da Família? Faço votos de que vos reencontreis todos nestas palavras, que são «espírito e vida» (Jo 6, 63).
«Fortalecidos no homem interior»
23. Dobro os meus joelhos diante do Pai, do Qual toda a paternidade e maternidade toma o nome, «para que vos conceda (...) que sejais poderosamente fortalecidos pelo seu Espírito quanto ao crescimento do homem interior» (Ef 3, 16). Volto de bom grado a estas palavras do Apóstolo, às quais fiz referência na primeira parte da presente Carta. São, num certo sentido, palavras-chave. A família, a paternidade e a maternidade caminham juntas lado a lado. Ao mesmo tempo, a família é o primeiro ambiente humano, onde se forma o «homem interior» de que fala o Apóstolo. A consolidação da sua força é dom do Pai e do Filho no Espírito Santo.
O Ano da família chama cada um de nós na Igreja a uma enorme responsabilidade, por certo não diversa daquela com que em cada ano e em cada dia se procura o bem da família, mas que adquire particular significado e importância no contexto do Ano em causa. Iniciámos este Ano da Família em Nazaré, na solenidade da Sagrada Família; desejamos, ao longo deste Ano, peregrinar até esse lugar de graça, tornado o Santuário da Sagrada Família na história da humanidade. Desejamos fazer esta peregrinação, recuperando a consciência do património da verdade sobre a família que desde o início constitui um tesouro da Igreja. É o tesouro que começa a acumular-se a partir da rica tradição da Antiga Aliança, completa-se na Nova e encontra a sua expressão plena e emblemática no mistério da Sagrada Família, na qual o Esposo divino opera a redenção de todas as famílias. Dali, Jesus proclama o evangelho da família. Deste tesouro de verdade, se nutriram todas as gerações dos discípulos de Cristo, a começar pelos Apóstolos, de cujo ensinamento usufruímos abundantemente nesta Carta.
Na nossa época, este tesouro está profundamente explorado nos documentos do Concílio Vaticano II (55); interessantes análises se encontram desenvolvidas também nos numerosos Discursos que Pio XII dedicou aos esposos (56), na Encíclica Humanae vitae de Paulo VI, nas intervenções durante o Sínodo dos Bispos consagrado à família (1980) e na Exortação apostólica Familiaris consortio. Fiz já referência a estas iniciativas do Magistério. Se agora volto a elas, é para sublinhar como é amplo e rico o tesouro da verdade cristãs sobre a família. Todavia, os simples testemunhos escritos não bastam. Bem mais importantes, são os testemunhos vivos. Paulo VI observou que «o homem contemporâneo escuta com maior gosto as testemunhas do que os mestres, ou se escuta os mestres é porque são testemunhas» (57). Na Igreja, é sobretudo às testemunhas que está confiado o tesouro da família: àqueles pais e àquelas mães, filhos e filhas, que através da família encontraram a estrada da sua vocação humana e cristã, a dimensão do «homem interior» (Ef 3, 16) de que fala o Apóstolo, e alcançaram assim a santidade. A Sagrada Família é o início de tantas outras famílias santas. O Concílio recordou que a santidade é vocação universal dos baptizados (58). Como no passado, também na nossa época não faltam testemunhas do «evangelho da família», mesmo se são desconhecidas ou não foram proclamadas santas pela Igreja. O Ano da Família constitui a ocasião oportuna para fazer crescer a consciência da sua existência e do seu grande número.
Através da família, passa a história do homem, a história da salvação da humanidade. Procurei mostrar nestas páginas como a família se acha no centro do grande combate entre o bem e o mal, entre a vida e a morte, entre o amor e quanto a este se opõe. À família está confiado o dever de lutar sobretudo para libertar as forças do bem, cuja fonte se encontra em Cristo Redentor do homem. É preciso fazer com que tais forças sejam assumidas por cada núcleo familiar, para que, como se disse por ocasião do milénio polaco do cristianismo, a família seja «forte de Deus» (59). Eis a razão por que a presente Carta quis inspirar-se nas exortações apostólicas, que encontramos nos escritos de Paulo (cf. 1 Cor 7, 1-40; Ef 5, 21-6, 9; Col 3, 25), e nas Cartas de Pedro e de João (cf. 1 Ped 3, 1-7; 1 Jo 2, 12-17). Como são semelhantes, mesmo se num contexto histórico e cultural diverso, as situações dos cristãos e das famílias de então e de hoje!
Assim, as minhas palavras considerai-as um convite: um convite dirigido especialmente a vós, queridos maridos e esposas, pais e mães, filhos e filhas. É um convite a todas as Igrejas Particulares, para que permaneçam unidas no ensino da verdade apostólica; aos Irmãos no episcopado, aos presbíteros, às famílias religiosas e às pessoas consagradas, aos movimentos e às associações de fiéis leigos; aos irmãos e irmãs, a quem nos une a fé comum em Jesus Cristo, mesmo se não experimentamos ainda a plena comunhão querida pelo Salvador (60); a todos quantos, participando na fé de Abraão, pertencem como nós à grande comunidade dos crentes num único Deus (61); àqueles que são herdeiros de outras tradições espirituais e religiosas; a todo o homem e mulher de boa vontade.
Cristo, que é o mesmo «ontem, hoje e sempre» (cf. Heb 13, 8), esteja connosco ao dobrarmos os joelhos diante do Pai, do Qual provém toda a paternidade e maternidade e cada família humana (cf. Ef 3, 14-15) e, com as mesmas palavras da oração ao Pai que Ele próprio nos ensinou, ofereça uma vez mais o testemunho do amor com que Ele nos «amou até ao fim» (Jo 13, 1)!
Falo com a força da Sua verdade ao homem do nosso tempo, para que compreenda quão grandes bens são o matrimónio, a família e a vida; e quão grande perigo constitui o desprezo de tais realidades e a menor consideração pelos supremos valores que fundam a família e a dignidade do ser humano.
Seja o Senhor Jesus a dizer-nos de novo estas coisas com o poder e a sabedoria da Cruz (cf. 1 Cor 1, 17-24), a fim de que a humanidade não ceda à tentação do «pai da mentira» (Jo 8, 44), que constantemente a impele por estradas largas e espaçosas, aparentemente fáceis e agradáveis, mas, na realidade, cheias de insídias e perigos. Seja-nos concedido seguir sempre Aquele que é «o caminho, a verdade e a vida» (Jo 14, 6).
Queridos Irmãos e Irmãs, sejam estes os compromissos das famílias cristãs e o anseio missionário da Igreja ao longo deste Ano, rico de singulares graças divinas. A Sagrada Família, ícone e modelo de cada família humana, ajude cada um a caminhar no espírito de Nazaré; ajude cada núcleo familiar a aprofundar a própria missão civil e eclesial, mediante a escuta da Palavra de Deus, a oração e a partilha fraterna de vida! Maria, Mãe do belo amor, e José, Guarda do Redentor, nos acompanhem a todos com a sua incessante protecção!
Com estes sentimentos, abençoo cada família em nome da Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 2 de Fevereiro, Festa da Apresentação do Senhor, do ano 1994, décimo sexto de Pontificado.
JOÃO PAULO PP. II
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