@falachicopodcast - Um podcast que narra a sabedoria da Igreja Católica.

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Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje gostaria de vos apresentar São José como um migrante perseguido e corajoso. Assim o descreve o Evangelista Mateus. Esta particular vicissitude da vida de Jesus, que vê como protagonistas também José e Maria, é tradicionalmente conhecida como “a fuga para o Egito” (cf. Mt 2, 13-23). A família de Nazaré sofreu tal humilhação e experimentou em primeira pessoa a precariedade, o medo e a dor de ter que deixar a sua terra. Ainda hoje muitos dos nossos irmãos e irmãs são obrigados a viver a mesma injustiça e sofrimento. A causa é quase sempre a prepotência e a violência dos poderosos. Isto aconteceu também com Jesus.

Através dos Magos, o rei Herodes toma conhecimento do nascimento do “rei dos Judeus”, e a notícia perturba-o. Sente-se inseguro, sente-se ameaçado no seu poder. Assim reúne todas as autoridades de Jerusalém para se informar sobre o lugar do nascimento, e pede aos Magos para lho comunicarem com exatidão, a fim de que - diz falsamente - também ele possa ir adorá-lo. No entanto, compreendendo que os Magos tinham partido por outro caminho, concebeu um propósito nefasto: matar todas as crianças de Belém até aos dois anos, pois de acordo com o cálculo dos Magos, tal era a época em que Jesus tinha nascido.

Entretanto, um anjo ordena a José: « Levanta-te, toma o Menino e Sua Mãe, foge para o Egito e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o Menino para O matar» (Mt 2, 13). Pensemos em tantas pessoas que hoje sentem esta inspiração dentro: “Fujamos, escapemos, porque aqui é perigoso”. O plano de Herodes evoca o do Faraó, de lançar ao Nilo todos os meninos do povo de Israel (cf. Êx 1, 22). E a fuga para o Egito recorda toda a história de Israel, a partir de Abraão, que também viveu ali (cf. Gn 12, 10), até José, filho de Jacob, vendido pelos irmãos (cf. Gn 37, 36), tornando-se depois “chefe do país” (cf. Gn 41, 37-57); e a Moisés, que libertou o seu povo da escravidão dos egípcios (cf. Êx 1, 18).

A fuga da Sagrada Família para o Egito salva Jesus, mas infelizmente não impede que Herodes leve a cabo o seu massacre. Assim, encontramo-nos diante de duas personalidades opostas: por um lado, Herodes com a sua ferocidade e, por outro, José com o seu esmero e a sua coragem. Herodes quer defender o seu poder, a sua “pele” com uma crueldade impiedosa, como atestam também as execuções de uma das suas esposas, de alguns dos seus filhos e de centenas de adversários. Era um homem cruel, para resolver os problemas só tinha uma receita: “eliminar”. Ele é o símbolo de muitos tiranos de ontem e de hoje. E para eles, para estes tiranos, as pessoas não contam: conta o poder, e quando precisam de espaço de poder, eliminam as pessoas. E isto acontece ainda hoje: não temos que ir à história antiga, acontece hoje. É o homem que se torna “lobo” para os outros homens. A história está cheia de personalidades que, vivendo à mercê dos seus temores, procuram vencê-los, exercendo o poder de forma despótica e praticando gestos de violência desumanos. Mas não devemos pensar que só viveremos na perspetiva de Herodes se nos tornarmos tiranos, não! Na realidade, é uma atitude em que todos nós podemos cair, sempre que procuramos afugentar os nossos medos com a prepotência, ainda que seja apenas verbal ou feita de pequenos abusos cometidos para mortificar quem está ao nosso lado. Também nós temos no coração a possibilidade de ser pequenos Herodes.

José é o oposto de Herodes: em primeiro lugar, é «um homem justo» (Mt 1, 19), enquanto Herodes é um ditador; além disso, demonstra-se corajoso ao cumprir a ordem do Anjo. Podemos imaginar as peripécias que teve de enfrentar durante a longa e perigosa viagem, e as dificuldades que enfrentou durante a permanência num país estrangeiro, com outra língua: inúmeras dificuldades! A sua coragem sobressai também na hora do regresso quando, tranquilizado pelo Anjo, supera os seus compreensíveis receios, estabelecendo-se com Maria e Jesus em Nazaré (cf. Mt 2, 19-23). Herodes e José são dois personagens opostos, que refletem as duas faces da humanidade de sempre. É um lugar-comum errado considerar a coragem como virtude exclusiva do herói. Na realidade, a vida quotidiana de cada pessoa – a tua, a minha, de todos nós – exige coragem: não é possível viver sem a coragem! A coragem para enfrentar as dificuldades de cada dia. Em todos os tempos e culturas encontramos homens e mulheres corajosos que, para ser coerentes com a sua crença, superaram toda a espécie de dificuldades, suportando injustiças, condenações e até a morte. Coragem é sinónimo de fortaleza que, com a justiça, a prudência e a temperança, faz parte do grupo de virtudes humanas chamadas “cardeais”.

A lição que José nos deixa hoje é a seguinte: é verdade, a vida apresenta-nos sempre adversidades, perante as quais podemos sentir-nos também ameaçados, amedrontados, mas não é mostrando o pior de nós, como faz Herodes, que podemos superar certos momentos, mas agindo como José, que reage ao medo com a coragem da confiança na Providência de Deus. Hoje acho que é necessária uma oração por todos os migrantes, por todos os perseguidos, por todos aqueles que são vítimas de circunstâncias adversas: quer sejam circunstâncias políticas, históricas ou pessoais. Mas, pensemos em tantas pessoas vítimas das guerras que querem fugir da sua pátria e não conseguem; pensemos nos migrantes que empreendem este caminho para ser livres e muitos morrem ao longo da estrada ou no mar; pensemos em Jesus nos braços de José e Maria, em fuga, e vejamos n’Ele cada um dos migrantes de hoje. A migração de hoje é uma realidade diante da qual não podemos fechar os olhos. É um escândalo social da humanidade!

São José,
vós que experimentastes o sofrimento de quem deve fugir
vós que fostes obrigado a fugir
para salvar a vida dos entes mais queridos,
amparai todos aqueles que fogem por causa da guerra,
do ódio e da fome.
Ajudai-os nas suas dificuldades,
fortalecei-os na esperança e fazei com que encontrem acolhimento e solidariedade.
Guiai os seus passos e abri o coração de quantos os podem ajudar. Amém!

Fonte: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2021/documents/papa-francesco_20211229_udienza-generale.html

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Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Continuemos o nosso caminho de reflexão sobre São José. Depois de ter ilustrado o ambiente em que ele viveu, o seu papel na história da salvação e o seu ser justo e esposo de Maria, hoje gostaria de examinar outro aspeto importante da sua figura: o silêncio. Hoje, muitas vezes precisamos de silêncio. O silêncio é importante. Estou impressionado com um verso do Livro da Sabedoria que foi lido a pensar no Natal, que diz: “Quando a noite estava no silêncio mais profundo, a tua palavra desceu à terra”. No momento de maior silêncio Deus manifestou-se. É importante pensar no silêncio nesta época na qual ele parece ter tão pouco valor.

Os Evangelhos não registam quaisquer palavras de José de Nazaré, nada, nunca falou. Isto não significa que ele fosse taciturno, não, há uma razão mais profunda. Com este silêncio, José confirma o que Santo Agostinho escreveu: «Na medida em que cresce em nós a Palavra – o Verbo que se fez homem – diminuem as palavras» (Sermão 288, 5: PL 38, 1307). Na medida em que Jesus – a vida espiritual – cresce, as palavras diminuem. Isto que podemos definir o “papagalismo” – falar como papagaios continuamente – diminui um pouco. João Batista, que é «a voz que clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor”» (Mt 3, 1), diz em relação ao Verbo: «Ele deve crescer e eu diminuir» (Jo 3, 30). Significa que Ele deve falar e eu devo ficar calado e José com o seu silêncio convida-nos a deixar espaço à Presença da Palavra feita carne, a Jesus.

O silêncio de José não é mutismo; é um silêncio cheio de escuta, um silêncio laborioso, um silêncio que faz emergir a sua grande interioridade. «O Pai pronunciou uma palavra, e foi o Filho – comentou São João da Cruz – e ela fala sempre em eterno silêncio, e no silêncio deve ser ouvida pela alma» (Dichos de luz y amor, BAC, Madrid, 417, n. 99).  

Jesus cresceu nesta “escola”, na casa de Nazaré, com o exemplo diário de Maria e José. E não surpreende que ele próprio procurará espaços de silêncio nos seus dias (cf. Mt 14, 23) e convidará os seus discípulos a fazerem esta experiência, por exemplo: «Vinde, retiremo-nos a um lugar deserto, e repousai um pouco» (Mc 6, 31).

Como seria bom se cada um de nós, seguindo o exemplo de São José, conseguisse recuperar esta dimensão contemplativa da vida aberta precisamente pelo silêncio. Mas todos sabemos por experiência que não é fácil: o silêncio assusta-nos um pouco, porque nos pede para entrarmos em nós mesmos e encontrarmos a parte mais verdadeira de nós. Muita gente tem receio do silêncio, deve falar, falar, falar ou ouvir rádio, televisão…, mas não pode aceitar o silêncio porque tem medo. O filósofo Pascal observou que «toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa: não saber ficar tranquilo num quarto» (Pensamentos, 139).

Queridos irmãos e irmãs, aprendamos de São José a cultivar espaços de silêncio, nos quais possa surgir outra Palavra, isto é, Jesus, a Palavra: a do Espírito Santo que habita em nós e que traz Jesus. Não é fácil reconhecer esta Voz, que muitas vezes se confunde com os milhares de vozes de preocupações, tentações, desejos e esperanças que nos habitam; mas sem este treino que provém precisamente da prática do silêncio, até a nossa fala pode adoecer. Sem a prática do silêncio o nosso falar adoece. Ele, em vez de fazer resplandecer a verdade, pode tornar-se uma arma perigosa. De facto, as nossas palavras podem tornar-se adulação, jactância, mentira, maledicência, calúnia. É um dado da experiência que, como nos lembra o Eclesiástico, «a língua mata mais do que a espada» (28, 18). Jesus disse-o claramente: quem fala mal do irmão ou da irmã, quem calunia o próximo, é homicida (cf. Mt 5, 21-22).  Mata com a língua. Não acreditamos nisto, mas é a verdade. Recordemos as vezes que matamos com a língua, envergonhar-nos-íamos! Contudo, far-nos-á muito bem, tanto bem.

A sabedoria bíblica afirma que «morte e vida estão no poder da língua: quem fizer bom uso dela comerá o seu fruto» (Pr 18, 21). E o apóstolo Tiago, na sua Carta, desenvolve este antigo tema do poder, positivo e negativo, da palavra com exemplos impressionantes, diz assim: «Se alguém não peca pela palavra, esse é um homem perfeito, capaz de dominar o seu corpo [...] a língua é um pequeno membro e gloria-se de grandes coisas [...] Com ela bendizemos a Deus Pai, e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. De uma mesma boca procedem a bênção e a maldição» (3, 2-10).

Por este motivo, devemos aprender de José a cultivar o silêncio: aquele espaço de interioridade nos nossos dias nos quais damos ao Espírito a oportunidade de nos regenerar, de nos consolar, de nos corrigir. Não estou a dizer que devemos cair num mutismo, não, mas devemos cultivar o silêncio. Cada um olhe para dentro de si mesmo: muitas vezes estamos a fazer um trabalho e quando terminamos procuramos imediatamente o telemóvel para fazer outra coisa, somos sempre assim. E isto não ajuda, faz-nos escorregar para a superficialidade. A profundidade do coração cresce com o silêncio, um silêncio que não é mutismo, como eu disse, mas que deixa espaço à sabedoria, à reflexão e ao Espírito Santo. Por vezes temos medo dos momentos de silêncio, mas não devemos recear! O silêncio far-nos-á muito bem. E o benefício para os nossos corações curará também a nossa língua, as nossas palavras e, sobretudo, as nossas escolhas. Com efeito, José uniu o silêncio à ação. Ele não falou, mas fez, e assim mostrou-nos o que Jesus disse outrora aos seus discípulos: «Nem todo o que me diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos Céus» (Mt 7, 21). Palavras fecundas quando falamos e temos a recordação daquela canção “Parole, parole, parole…” [“Palavras, palavras, palavras…”] e nenhuma substância. Silêncio, falar o suficiente, às vezes morder a língua um pouquinho, que faz bem, em vez de dizer parvoíces.

Concluamos com uma oração:

São José, homem do silêncio,
vós que no Evangelho não proferistes palavra alguma,
ensinai-nos a jejuar de palavras vãs,
a redescobrir o valor das palavras que edificam, encorajam, consolam e apoiam.
Estai próximo de quantos sofrem por causa das palavras que ferem,
como as calúnias e as maledicências,
e ajudai-nos a unir sempre as ações às palavras. Amém.

Fonte: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2021/documents/papa-francesco_20211215_udienza-generale.html

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Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Continuemos o nosso caminho de reflexão sobre a figura de São José. Hoje gostaria de explorar o seu ser “justo” e “noivo de Maria”, e assim dar uma mensagem a todos os noivos, incluindo os recém-casados. Muitos acontecimentos ligados a José são contados nos evangelhos apócrifos, ou seja, evangelhos não canónicos, que também influenciaram a arte e vários lugares de culto. Estes escritos, que não estão na Bíblia  –  são histórias que a piedade cristã narrava naquele tempo –  respondem ao desejo de preencher as lacunas narrativas dos Evangelhos canónicos, aqueles que estão na Bíblia, os quais nos dão tudo o que é essencial para a fé e a vida cristã.

O evangelista Mateus. Isto é importante: o que diz o Evangelho sobre José? Não o que dizem os evangelhos apócrifos, que não são negativos nem maus; são bonitos, mas não são a Palavra de Deus. Ao contrário, os Evangelhos, que estão na Bíblia, são a Palavra de Deus. Entre eles está o evangelista Mateus que define José um homem “justo”. Ouçamos a sua narração: «Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José. Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo. José, seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la, resolveu rejeitá-la secretamente» (1, 18-19). Pois os noivos, quando a noiva não era fiel ou engravidava, deviam denunciá-la! E as mulheres naquele tempo eram apedrejadas. Mas José era justo. E disse: “Não, eu não farei isto. Ficarei calado”.

Para compreender o comportamento de José em relação a Maria, é útil recordar os costumes matrimoniais do antigo Israel. O matrimónio compreendia duas fases bem definidas. A primeira era como um noivado oficial, que já implicava uma nova situação: em particular, a mulher, embora continuasse a viver na casa do seu pai por mais um ano, era de facto considerada a “esposa” do noivo. Ainda não viviam juntos, mas era como se ela fosse sua esposa. O segundo ato era a transferência da noiva da casa do seu pai para a casa do noivo. Isto acontecia com uma procissão festiva, que completava o matrimónio. E as amigas da noiva acompanhavam-na até lá. De acordo com estes costumes, o facto que «antes que fossem viver juntos, Maria estava grávida», expunha a Virgem à acusação de adultério. E esta culpa, segundo a Lei antiga, devia ser punida com a lapidação (cf. Dt 22, 20-21). No entanto, na prática judaica posterior, uma interpretação mais moderada tinha-se tornado realidade e apenas impunha o ato de repúdio, com consequências civis e criminais para a mulher, mas não o apedrejamento.

O Evangelho diz que José era “homem de bem” precisamente porque estava sujeito à lei como qualquer israelita piedoso. Mas dentro dele, o amor por Maria e a confiança nela sugeriam um modo de salvar a observância da lei e a honra da sua esposa: ele decidiu dar-lhe o ato de repúdio em segredo, sem clamor, sem a sujeitar à humilhação pública. Escolheu o caminho do segredo, sem julgamento nem vingança. Mas quanta santidade em José! Nós, que assim que temos um pouco de notícias folclóricas ou negativas sobre alguém, vamos imediatamente à tagarelice! José, ao contrário, fica calado.

Mas o evangelista Mateus acrescenta: «José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados» (1, 20-21). A voz de Deus intervém no discernimento de José e, através de um sonho, revela-lhe um significado maior do que a sua própria justiça. E como é importante para cada um de nós cultivar uma vida justa e, ao mesmo tempo, sentir que estamos sempre a precisar da ajuda de Deus! Para poder alargar os nossos horizontes e considerar as circunstâncias da vida sob um ponto de vista diferente e mais amplo. Muitas vezes sentimo-nos prisioneiros pelo que nos aconteceu: “Mas vejam o que me aconteceu!” e continuamos prisioneiros daquela situação má que nos aconteceu; mas precisamente perante algumas circunstâncias da vida, que inicialmente parecem dramáticas, existe uma Providência que com o tempo toma forma e ilumina com significado até a dor que nos atingiu. A tentação é fecharmo-nos nessa dor, nesse pensamento das coisas desagradáveis que nos aconteceram. E isto não é bom. Leva à tristeza e à amargura. O coração amargo é tão triste.

Gostaria que fizéssemos uma pausa e refletíssemos sobre um pormenor desta história narrada no Evangelho que muitas vezes ignoramos. Maria e José são dois noivos que provavelmente tinham sonhos e expetativas sobre as suas vidas e o seu futuro. Deus parece intervir como um acontecimento inesperado na sua vicissitude, embora com alguma dificuldade inicial, ambos abrem o coração para a realidade que lhes é apresentada.

Estimados irmãos e irmãs, muitas vezes as nossas vidas não são como as imaginamos. Especialmente nas relações de amor, de afeto, temos dificuldade em passar da lógica do apaixonamento para a do amor maduro. E temos de passar do apaixonamento para o amor maduro. Vós, recém-casados, pensai bem nisto. A primeira fase é sempre marcada por um certo encantamento, que nos faz viver imersos num mundo imaginário que muitas vezes não corresponde à realidade dos factos. Mas precisamente quando o apaixonamento com as suas expetativas parece chegar ao fim, neste momento o verdadeiro amor pode começar. Com efeito, amar não é pretender que o outro ou a vida corresponda à nossa imaginação; pelo contrário, significa escolher com total liberdade assumir a responsabilidade pela vida que nos é oferecida. É por isso que José nos dá uma lição importante, ele escolheu Maria “com olhos abertos”. E podemos dizer que com todos os riscos. Pensai, no Evangelho de João, uma reprimenda que fazem os doutores da lei a Jesus é esta: “Não somos filhos que provêm de lá”, referindo-se à prostituição. Porque sabiam como Maria tinha engravidado e queriam difamar a mãe de Jesus. Para mim este é o trecho mais sujo e demoníaco do Evangelho. E o risco de José dá-nos esta lição: assumir a vida como vem. Deus interveio nela? Assumo-a. E José comportou-se como o anjo do Senhor lhe ordenara: de facto o Evangelho diz: «Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa a sua esposa. E, sem que ele a tivesse conhecido, ela deu à luz o seu filho, que recebeu o nome de Jesus» (Mt 1, 24-25). Os noivos cristãos são chamados a dar testemunho deste amor, que tem a coragem de passar da lógica do apaixonamento para a do amor maduro. E esta é uma escolha exigente que, em vez de aprisionar a vida, pode fortalecer o amor para que seja duradouro face às provações do tempo. O amor de um casal continua na vida e amadurece todos os dias. O amor do noivado é um pouco – permiti-me que o diga – um pouco romântico. Vós vivestes-o, mas depois começa o amor maduro, quotidiano, o trabalho, as crianças que chegam. E, por vezes, aquele romantismo desaparece um pouco. Mas não há amor? Sim, mas amor maduro. “Mas sabe, padre, por vezes discutimos...”. Isto acontece desde o tempo de Adão e Eva até aos dias de hoje: que os esposos brigam é o pão nosso de cada dia. “Mas não deveríamos discutir?”. Sim, é possível. “E padre, mas por vezes erguemos a voz” –  “Acontece”. “E também por vezes os pratos voam” – “Acontece”. Mas como assegurar que não prejudica a vida do matrimónio? Escutai bem: nunca terminai o dia sem fazer a paz. Tivemos uma discussão, disse-te coisas más, meu Deus, disse-te palavras más. Mas agora o dia acaba: tenho de fazer a paz. Sabei por que? Porque a guerra fria do dia seguinte é muito perigosa. Não deixeis que no dia seguinte comece uma guerra. Por isso que se deve  fazer as pazes antes de ir para a cama. Lembrai-vos sempre: nunca terminar o dia sem fazer a paz. E isto irá ajudar-vos na vida de casado. Este percurso do apaixonamento para o amor maduro é uma escolha exigente, mas devemos seguir por esse caminho.

E também desta vez concluímos com uma oração a São José.

São José,
vós que amastes Maria com liberdade
e optastes por renunciar da sua imaginação para criar espaço à realidade,
ajudai cada um de nós a deixarmo-nos surpreender por Deus
e acolher a vida não como um acontecimento imprevisto do qual nos devemos defender,
mas como um mistério que esconde o segredo da verdadeira alegria.
Obtende alegria e radicalidade para todos os noivos cristãos,
Mas conservando sempre a consciência
De que só a misericórdia e o perdão tornam o amor possível. Amém.

Fonte: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2021/documents/papa-francesco_20211201_udienza-generale.html

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Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Na quarta-feira passada começámos o ciclo de catequeses sobre a figura de São José – o ano dedicado a ele está a findar. Hoje continuamos este percurso centrando-nos no seu papel na história da salvação.

Jesus é referido nos Evangelhos como «filho de José» (Lc 3, 23; 4, 22; Jo 1, 45; 6, 42) e «filho do carpinteiro» (Mt 13, 55; Mc 6, 3). Os Evangelistas Mateus e Lucas, ao narrarem a infância de Jesus, dão espaço ao papel de José. Ambos compõem uma «genealogia» para realçar a historicidade de Jesus. Mateus, dirigindo-se sobretudo aos judeus-cristãos, parte de Abraão e chega a José, definido como «o esposo de Maria, de quem nasceu Jesus, que se chama Cristo» (1, 16). Lucas, por sua vez, remonta até Adão, começando diretamente por Jesus, que «era filho de José», mas especifica: «como se supunha» (3, 33). Portanto, ambos os Evangelistas apresentam José não como o pai biológico, mas como o pai de Jesus a pleno título. Através dele, Jesus cumpre a história da aliança e da salvação entre Deus e o homem. Para Mateus esta história começa com Abraão, para Lucas com a própria origem da humanidade, isto é, com Adão.

O evangelista Mateus ajuda-nos a compreender que a figura de José, embora aparentemente marginal, discreta, em segunda linha, representa antes de tudo um elemento central na história da salvação. José vive o seu protagonismo sem nunca querer apoderar-se da cena. Se pensarmos nisto, «as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns - habitualmente esquecidas - que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas […] Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos, e com gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos» (Carta ap. Patris corde, 1). Assim, todos podem encontrar em São José, o homem que passa despercebido, o homem da presença diária, da presença discreta e escondida, um intercessor, um apoio e um guia em tempos de dificuldade. Ele lembra-nos que todos aqueles que aparentemente estão escondidos, ou na “segunda linha”, têm um protagonismo inigualável na história da salvação. O mundo precisa destes homens e destas mulheres: homens e mulheres na segunda linha, mas que apoiam o desenvolvimento da nossa vida, de cada um de nós, e que com a oração, com o exemplo, com o ensinamento nos apoiam no caminho da vida.

No Evangelho de Lucas, José aparece como o guardião de Jesus e de Maria. E por esta razão ele é também «o “Guardião da Igreja”: mas, se foi o guardião de Jesus e de Maria, trabalha, agora que está nos céus, e continua a ser o guardião, neste caso da Igreja; porque a Igreja é o prolongamento do Corpo de Cristo na história e ao mesmo tempo, na maternidade da Igreja, espelha-se a maternidade de Maria. José, continuando a proteger a Igreja – por favor, não vos esqueçais disto: hoje, José protege a Igreja – continua a proteger o Menino e sua mãe» (ibid., 5). Este aspeto da guarda de José é a grande resposta ao relato do Génesis. Quando Deus pede a Caim que preste contas da vida de Abel, ele responde: «Sou porventura o guarda do meu irmão?» (4, 9). José, com a sua vida, parece querer dizer-nos que somos sempre chamados a sentirmo-nos guardas dos nossos irmãos, guardas dos que nos são próximos, daqueles que o Senhor nos confia através das muitas circunstâncias da vida.

Uma sociedade como a nossa, que foi definida “líquida”, pois parece que não tem consistência. Eu corrigiria aquele filósofo que cunhou esta definição e diria: mais do que líquida, gasosa, uma sociedade propriamente gasosa. Esta sociedade líquida, gasosa, encontra na história de José uma indicação muito clara da importância dos vínculos humanos. De facto, o Evangelho narra-nos a genealogia de Jesus, não só por uma razão teológica, mas também para recordar a cada um de nós que a nossa vida é constituída por laços que nos precedem e acompanham. O Filho de Deus escolheu o caminho dos vínculos para vir ao mundo, a via da história: não desceu ao mundo magicamente, não. Percorreu o caminho histórico que fazemos todos nós.

Estimados irmãos e irmãs, penso em tantas pessoas que lutam para encontrar relacionamentos significativos na sua vida, e por para isso mesmo lutam, sentem-se sozinhas, falta-lhes força e coragem para ir em frente. Gostaria de concluir com uma oração que ajude a eles e a todos nós a encontrar em São José um aliado, um amigo e um apoio.

São José,
vós que guardastes o vínculo com Maria e Jesus,
ajudai-nos a cuidar das relações na nossa vida.
Que ninguém experimente o sentimento de abandono
que vem da solidão.
Que cada um de nós se reconcilie com a própria história,
com aqueles que nos precederam,
e reconheça inclusive nos erros cometidos
um modo pelo qual a Providência abriu o seu caminho,
e o mal não teve a última palavra.
Mostrai-vos amigo para aqueles que mais lutam,
e como apoiastes Maria e Jesus nos momentos difíceis,
assim apoiai também a nós no nosso caminho. Amém.

Fonte: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2021/documents/papa-francesco_20211124_udienza-generale.html

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Hoje, 19 de março, é dia de São José, o homem que recebeu de Deus a honra de tutelar a vida daquele que viria para libertar, não apenas o povo da Aliança da servidão do Império Romano, mas toda a humanidade dos grilhões do pecado. Quão nobre deveria ser o homem que recebeu de Deus tarefa tão importante? O que podemos aprender com este homem?

Pouco se fala sobre São José na Bíblia, mas muito podemos aprender com ele. Não à toa, Papa Francisco fez uma série de 12 catequeses sobre São José em Audiências Gerais, desde 17 de novembro de 2021 a 16 de fevereiro de 2022, que se tornarão episódios do Fala, Chico!.

A partir de hoje será publicada diariamente no podcast e aqui no blog uma catequese sobre São José feita pelo Papa Francisco.

Que São José possa te inspirar e, assim como conduziu Jesus e Maria durante anos, possa te conduzir para mais próximo de Deus.

Valei-nos, São José!


Catequese sobre São José 1. São José e o ambiente em que viveu

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

A 8 de dezembro de 1870, o Beato Pio IX proclamou São José padroeiro da Igreja universal. Depois de 150 anos daquele evento, estamos a viver um ano especial dedicado a São José, e na Carta Apostólica Patris corde recolhi algumas reflexões sobre a sua figura. Nunca como hoje, neste tempo marcado por uma crise global com diferentes componentes, ele pode ser apoio, conforto e orientação para nós. Por isso decidi dedicar-lhe um ciclo de catequeses, que espero nos possa ajudar ulteriormente a deixar-nos iluminar pelo seu exemplo e pelo seu testemunho. Durante algumas semanas falaremos de São José.

Na Bíblia há mais de dez personagens com o nome de José. O mais importante de todos é o filho de Jacob e Raquel, que, através de várias vicissitudes, de escravo, tornou-se a segunda pessoa mais importante no Egito depois do Faraó (cf. Gn 37-50). O nome José em hebraico significa “Deus aumente, Deus faça crescer”. É um desejo, uma bênção baseada na confiança na providência e refere-se especialmente à fecundidade e ao crescimento dos filhos. De facto, este mesmo nome revela-nos um aspeto essencial da personalidade de José de Nazaré. Ele é um homem cheio de fé na providência: acredita na providência de Deus, tem fé na providência de Deus. Toda a sua ação, narrada no Evangelho, é ditada pela certeza de que Deus “faz crescer”, que Deus “aumenta”, que Deus “acrescenta”, ou seja, que Deus providencia à continuação do seu desígnio de salvação. E nisto, José de Nazaré é muito parecido com José do Egito.

As principais referências geográficas relativas a José – Belém e Nazaré – também desempenham um papel importante na compreensão da sua figura.

No Antigo Testamento, a cidade de Belém é chamada Beth Lechem, “Casa do pão”, ou também Efrata, devido à tribo que se estabeleceu naquele território. No entanto, em árabe, o nome significa “Casa da carne”, provavelmente devido ao grande número de rebanhos de ovinos e caprinos na área. Não foi por acaso, de facto, que quando Jesus nasceu, os pastores foram as primeiras testemunhas do acontecimento (cf. Lc 2, 8-20). À luz da história de Jesus, estas alusões ao pão e à carne referem-se ao mistério da Eucaristia: Jesus é o pão vivo que desce do céu (cf. Jo 6, 51). Ele próprio dirá de si: «Quem comer a minha carne e beber o meu sangue viverá eternamente» (Jo 6, 54).

Belém é mencionada várias vezes na Bíblia, desde o Livro do Génesis. Belém está também ligada à história de Rute e Noémi, narrada no pequeno, mas maravilhoso Livro de Rute. Rute deu à luz um filho chamado Obed, do qual por sua vez nasceu Jessé, o pai do rei David. E José, o pai legal de Jesus, descende preciosamente da linhagem de David. Então o profeta Miqueias predisse grandes coisas sobre Belém: «E tu, Bet-Ephrata, tão pequena entre as famílias de Judá, é de ti que me há de sair aquele que governará Israel» (Mi 5, 1). O evangelista Mateus retomará esta profecia e ligá-la-á à história de Jesus como o seu evidente cumprimento.

De facto, o Filho de Deus não escolheu Jerusalém como o lugar da sua encarnação, mas Belém e Nazaré, duas aldeias periféricas, longe do clamor da crónica e do poder da época. Contudo, Jerusalém era a cidade amada pelo Senhor (cf. Is 62, 1-12), a «cidade santa» (Dn 3, 28), escolhida por Deus para lá habitar (cf. Zc 3, 2; Sl 132, 13). Ali, com efeito, habitavam os doutores da Lei, os escribas e fariseus, os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo (cf. Lc 2, 46; Mt 15, 1; Mc 3, 22; Jo 1, 19; Mt 26, 3).

É por isso que a escolha de Belém e Nazaré nos diz que a periferia e a marginalidade são prediletas a Deus. Jesus não nasceu em Jerusalém com toda a corte… não: nasceu numa periferia e transcorreu a sua vida, até aos 30 anos, naquela periferia, trabalhando como carpinteiro, como José. Para Jesus, as periferias e a marginalidade são prediletas. Não levar esta realidade a sério equivale a não levar a sério o Evangelho e a obra de Deus, que continua a manifestar-se nas periferias geográficas e existenciais. O Senhor age sempre de maneira escondida nas periferias, também na nossa alma, nas periferias da alma, dos sentimentos, talvez sentimentos dos quais nos envergonhamos; mas o Senhor está ali para nos ajudar a ir em frente. O Senhor continua a manifestar-se nas periferias, quer geográficas quer existenciais. Em particular, Jesus vai em busca dos pecadores, entra nas suas casas, fala com eles, chama-os à conversão. E foi até repreendido por isto: “Mas, veja, este Mestre – diziam os doutores da lei – veja este Mestre: come junto com os pecadores, suja-se, vai à procura daqueles que não praticam o mal, mas o sofrem: os doentes, os famintos, os pobres, os últimos”. Jesus vai sempre rumo às periferias. E isto deve dar-nos muita confiança, pois o Senhor conhece as periferias do nosso coração, as periferias da nossa alma, as periferias da nossa sociedade, da nossa cidade, da nossa família, isto é, aquela parte um pouco obscura que não mostramos talvez por vergonha.

Sob este aspeto, a sociedade daquela época não é muito diferente da nossa. Hoje também há um centro e uma periferia. E a Igreja sabe que é chamada a anunciar a boa nova a partir das periferias. José, que é um carpinteiro de Nazaré e que confia no plano de Deus para a sua jovem noiva e para si mesmo, recorda à Igreja que fixe o olhar naquilo que o mundo ignora deliberadamente. Hoje José ensina-nos isto: “Não olhemos para as coisas que o mundo louva, olhemos para os ângulos, as sombras, as periferias, para aquilo que o mundo não quer”. Ele lembra a cada um de nós que demos importância ao que os outros descartam. Neste sentido, é verdadeiramente um mestre do essencial: lembra-nos que o que é realmente valioso não atrai a nossa atenção, mas requer um discernimento paciente para ser descoberto e valorizado. Descubramos o que é válido. Peçamos-lhe que interceda para que toda a Igreja possa recuperar este discernimento, esta capacidade de discernir, esta capacidade de avaliar o que é essencial. Comecemos de novo a partir de Belém, comecemos de novo a partir de Nazaré.

Hoje gostaria de transmitir uma mensagem a todos os homens e mulheres que vivem nas periferias geográficas mais esquecidas do mundo ou que experimentam situações de marginalidade existencial. Que encontreis em São José a testemunha e o protetor para quem olhar. A ele podemos recorrer com esta oração, prece “feita em casa”, mas nascida do coração:

São José,
vós que sempre confiastes em Deus,
e fizestes as vossas escolhas
guiado pela sua providência
ensinai-nos a não contar tanto com os nossos projetos
mas com o seu desígnio de amor.
Vós que viestes das periferias
ajudai-nos a converter o nosso olhar
e a preferir o que o mundo descarta e marginaliza.
Confortai quantos se sentem sozinhos
e apoiai quantos se comprometem em silêncio
para defender a vida e a dignidade humana. Amém.

Fonte: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2021/documents/papa-francesco_20211117_udienza-generale.html

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Sexta, 18 Março 2022 22:24

FC!#160 - [meditação 2] O que é Oração?

Cara(o) Amiga(o)

Uma definição muito antiga de oração descreveu-a como “a elevação do coração e da mente para Deus”. O que é a “mente”? O que é o “coração”? A mente é aquilo que pensa – ela questiona, preocupa-se, fantasia. O coração é aquilo que conhece – ele ama. A mente é o órgão do conhecimento; o coração, o órgão do amor. A consciência mental precisa afinal ceder e abrir-se para o modo mais pleno de conhecer, que é a consciência do coração. Amor é conhecimento completo.

A maior parte do nosso treinamento em oração, contudo, limita-se à mente. Fomos ensinados desde crianças a recitar nossas orações, a pedir a Deus pelas necessidades dos outros ou nossas. Entretanto, isso é apenas metade do mistério da oração.

A outra metade é a oração do coração, em que nós não estamos pensando em Deus, ou falando com ele, ou pedindo algo. Simplesmente, estamos com Deus, que está em nós, no Espírito Santo que Jesus nos deu. O Espírito Santo é o amor, a relação de amor que flui entre o Pai e o Filho. Foi esse Espírito que Jesus insuflou em cada coração humano. A meditação, então, é a oração do coração, unindo-nos com a consciência humana de Jesus no Espírito. “Porque não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis”. (Rm 8, 26).

O Espírito Santo na Igreja moderna, especialmente desde o Concílio Vaticano II no início dos anos 1960, vem-nos ensinando a recuperar essa outra dimensão de nossa oração. Os documentos do Concílio relativos à Igreja e à liturgia enfatizaram a necessidade de desenvolver “uma orientação contemplativa” na vida espiritual dos cristãos hoje. Todos são chamados à plenitude da experiência de Cristo, independente do seu percurso de vida.

Isso significa que devemos ir além do nível da oração mental: conversar com Deus, pensar em Deus, pedir a Deus por nossas necessidades. Devemos ir até as profundezas, até onde o próprio espírito de Jesus está orando em nossos corações, no profundo silêncio de sua união com nosso Pai no Espírito Santo.

A oração contemplativa não é privilégio de monges e freiras ou de tipos místicos especiais. Ela é uma dimensão de oração para a qual nós todos somos chamados. Não se trata de experiências extraordinárias, nem de estados alterados de consciência. Trata-se daquilo que São Tomás de Aquino chamava de “simples desfrutar da verdade”. William Blake falava da necessidade de “limpar as portas da percepção”, de modo que possamos ver tudo como verdadeiramente é: infinito.

Isso tudo se refere à consciência contemplativa, tal como vivida na vida normal. A meditação leva-nos a isso, e é parte de todo o mistério da oração na vida de qualquer pessoa que esteja buscando a plenitude do ser.

Extraído de Prática Diária da Meditação Cristã, de Laurence Freeman.

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Como você se prepara para meditar?

Cara(o) Amiga(o)

John Main redescobriu a meditação, a repetição fiel de uma frase-oração para conduzir-nos ao silêncio da oração “pura”. Para sua imensa alegria, ele a encontrou nos escritos de um monge cristão do século IV AD: João Cassiano, que se sentou aos pés de muitos cristãos eremitas que viviam no deserto do Egito daquele tempo, para aprender sobre a oração, e sobre como levar uma autêntica vida cristã. Cassiano ressaltava que esta prática conduz ao silêncio da oração “pura”, a oração contemplativa, sem palavras ou imagens.

“A mente, assim, expulsa e reprime o rico e amplo assunto de todos os pensamentos e, se restringe à pobreza da repetição de um simples verso”. Enfatizando a importância do mantra, ele continuava e, dizia: “Este mantra deve estar sempre em seu coração. Quando se preparar para dormir, faça-o repetindo este verso até que, tendo sido moldado por ele, você se habitua a repeti-lo até mesmo durante seu sono.”

A repetição fiel da frase-oração (ou da palavra-oração), apenas a repetição dessa nossa palavra, não é, contudo, tão fácil como parece. Necessitamos nos preparar para esse período; não podemos esperar tornar-nos plenamente focados em nossa oração, sem uma preparação. Quando perguntaram a John Main, como deveríamos nos preparar para a meditação, ele certa vez respondeu “realizando gestos de gentileza.” Precisamos estar em uma atitude mental correta; tentar meditar depois de uma calorosa discussão com alguém realmente não iria funcionar, não é mesmo? Nossa vida diária e nossa vida de oração não estão separadas: “Da mesma maneira como você vive, assim você ora”, esse era um ditado comum entre os cristãos primitivos.

No mundo em que vivemos, nossa vida tende a ser atarefada e desgastante. Se acharmos que estamos realmente cansados, poderá mesmo ser aconselhável tirarmos uma soneca antes de irmos para nosso grupo de meditação. Fazer algumas posturas de alongamento de Yoga, ou um ou dois movimentos de Tai Chi, também ajuda a fazer com que a energia flua. De outro modo, tudo o que poderemos fazer será uma “soneca sagrada”, que também não é errado, mas frequentemente se faz acompanhar por um doce ressonar! O ronco e outros ruídos que ocorrem durante a meditação, no entanto, podem representar uma excelente prática para nos desligarmos de assuntos alheios ao momento presente, e nos remetermos suavemente de volta a nossa palavra. Ruídos em geral, na verdade, não nos perturbam, desde que não nos irritemos com eles. Devemos simplesmente aceitar que é assim que as coisas são. Sem julgar, sem criticar.

A razão pela qual nos sentamos com nossas costas eretas, ombros para trás e relaxados, é que essa posição ajuda a nos mantermos despertos: o peito está livre e aberto, de modo a podermos respirar bem, e o oxigênio possa fluir livremente por todo nosso corpo, mantendo-nos alertas. Relaxar e dormir, por mais necessários que sejam, não são obviamente o objetivo da meditação; a atenção plena necessária para a meditação é de fato um caminho para nos mantermos alertas e energizados. Pode ajudar começarmos nosso período de meditação fazendo respirações abdominais profundas, que tanto servem para nos relaxar, quanto nos energizar.

A tarefa essencial na meditação é “repetir a sua palavra”. Este é o nosso foco. A palavra recomendada por John Main é “maranatha”, a mais antiga oração cristã em aramaico, a língua falada por Jesus. Repetimos essa palavra em quatro sílabas igualmente acentuadas – ma-ra-na-tha. Não importa se você a diz com o som ‘th’ da língua inglesa, ou simplesmente se o reverbera como ‘t’. A pronúncia não é importante. Você só precisa se lembrar de que orando a Jesus, pronunciamos Seu nome em todas as línguas do mundo, e isso não muda a eficácia da oração. Além do mais, em aramaico, seus amigos e sua família O chamavam Yeshua. O importante é você repeti-la com plena atenção, amorosa e fielmente. Sempre que seus pensamentos lhe distraírem, gentilmente traga sua mente de volta para sua palavra. Algumas pessoas acham mais fácil repetir a palavra em conexão com o movimento respiratório, mas se isso lhe causa distrações simplesmente preste atenção nela, no ritmo que melhor se adequa a você.

Como meditar:

Sente-se.
Confortável e com a coluna ereta.
Feche suavemente seus olhos.
Mantenha-se relaxada(o), mas alerta.
Silenciosa e interiormente comece a repetir uma simples palavra.
Recomendamos a palavra/oração, Maranatha.
Ouça-a à medida que a pronuncia, suave, mas continuamente.
Pensamentos e imagens provavelmente afluirão, mas deixe-os passar.
Mantenha-se fiel à repetição da sua palavra do início ao fim da sua meditação.
Medite de vinte a trinta minutos, toda manhã e toda noite.

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Audiência Geral de 1° de Março de 2006, quarta-feira de cinzas, do Papa Bento XVI, sobre a Quaresma: um itinerário de reflexão e de intensa oração.

Quarta-feira de Cinzas
A Quaresma: um itinerário de reflexão e de intensa oração

Amados irmãos e irmãs

Começa hoje, com a Liturgia da Quarta-Feira de Cinzas, o itinerário quaresmal de quarenta dias, que nos conduzirá ao Tríduo pascal, memória da paixão, morte e ressurreição do Senhor, cerne do mistério da nossa salvação. Este é um tempo favorável, em que a Igreja convida os cristãos a tomar consciência mais viva da obra redentora de Cristo e a viver com maior profundidade o próprio Baptismo. Com efeito, neste período litúrgico o Povo de Deus, desde os primórdios, alimenta-se abundantemente da Palavra de Deus para se fortalecer na fé, percorrendo toda a história da criação e da redenção.

Na sua duração de quarenta dias, a Quaresma possui uma indubitável força evocadora. De facto, ela tenciona recordar alguns acontecimentos que cadenciaram a vida e a história do antigo Israel, voltando a propor-nos também a nós o seu valor paradigmático: pensemos, por exemplo, nos quarenta dias do dilúvio universal, que terminaram com o pacto de aliança estabelecido por Deus com Noé, e assim com a humanidade, e nos quarenta dias de permanência de Moisés no Monte Sinai, aos quais se seguiu o dom das tábuas da Lei. O período quaresmal quer convidar-nos sobretudo a reviver com Jesus os quarenta dias por Ele transcorridos no deserto, rezando e jejuando, antes de empreender a sua missão pública. Hoje, também nós fazemos um caminho de reflexão e de oração com todos os cristãos do mundo, para nos dirigirmos espiritualmente ao Calvário, meditando os mistérios centrais da fé. Assim, preparar-nos-emos para experimentar, depois do mistério da Cruz, a alegria da Páscoa da Ressurreição.

Realiza-se hoje, em todas as comunidades paroquiais, um gesto austero e simbólico: a imposição das cinzas, e este rito é acompanhado por duas fórmulas significativas, que constituem um apelo urgente a reconhecermo-nos pecadores e a voltarmos para Deus. A primeira fórmula diz: "Lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar" (cf. Gn 3, 19). Estas palavras, tiradas do livro do Génesis, evocam a condição humana posta sob o sinal da caducidade e do limite, e tencionam levar-nos a depositar de novo toda a esperança somente em Deus. A segunda fórmula inspira-se nas palavras pronunciadas por Jesus no início do seu ministério itinerante: "Convertei-vos e crede no Evangelho" (Mc 1, 15). Trata-se de um convite a lançar, como fundamento da renovação pessoal e comunitária, a adesão firme e confiante ao Evangelho. A vida do cristão é vida de fé, alicerçada na Palavra de Deus e por ela alimentada. Nas provações da vida e em cada tentação, o segredo da vitória consiste em ouvir a Palavra de verdade e em rejeitar com determinação a mentira e o mal. Este é o programa verdadeiro e central do tempo da Quaresma: ouvir a palavra de verdade, viver, dizer e cumprir a verdade, rejeitando a mentira que envenena a humanidade e constitui a porta de todos os males. Portanto, nestes quarenta dias é urgente voltar a ouvir o Evangelho, a palavra do Senhor, palavra de verdade, para que em cada cristão, em cada um de nós, se revigore a consciência da verdade que lhe foi oferecida, que nos foi dada, a fim de que ele a viva e dela se torne testemunha. A Quaresma impele-nos a isto, a deixarmos que a nossa vida seja imbuída pela Palavra de Deus e assim a conhecermos a verdade fundamental: quem somos, de onde vimos, aonde devemos ir, qual é o caminho a empreender na vida. E assim o período da Quaresma oferece-nos um percurso ascético e litúrgico que, enquanto nos ajuda a abrir os olhos para a nossa debilidade, nos faz abrir o coração ao amor misericordioso de Cristo.

O caminho quaresmal, aproximando-nos de Deus, permite-nos ver com olhos novos os irmãos e as suas necessidades. Quem começa a ver Deus, a contemplar o rosto de Cristo, vê com outros olhos também o irmão, descobre o irmão, o seu bem, o seu mal e as suas necessidades. Por isso a Quaresma, como escuta da verdade, é um momento favorável para se converter ao amor, porque a verdade profunda, a verdade de Deus, é ao mesmo tempo amor. Convertendo-nos à verdade de Deus, devemos necessariamente converter-nos ao amor. Um amor que saiba tornar própria a atitude de compaixão e de misericórdia do Senhor, como desejei recordar na Mensagem para a Quaresma, que tem como tema as seguintes palavras evangélicas: "Jesus, ao ver as multidões, encheu-se de compaixão por elas" (Mt 9, 36). Consciente da própria missão no mundo, a Igreja não cessa de proclamar o amor misericordioso de Cristo, que continua a dirigir o olhar comovido aos homens e aos povos de todos os tempos. "À vista dos tremendos desafios da pobreza de grande parte da humanidade escrevi na citada Mensagem quaresmal a indiferença e o encerramento no próprio egoísmo apresentam-se em contraste intolerável com o "olhar" de Cristo. O jejum e a esmola, juntamente com a oração, que a Igreja propõe de modo especial no período da Quaresma, são uma ocasião propícia para nos conformarmos àquele "olhar"" (Ed. port. de L'Osservatore Romano de 4 de Fevereiro de 2006, pág. 7), ao olhar de Cristo, e vermo-nos a nós mesmos, a humanidade e os outros com este seu olhar. Com este espírito, entramos no clima austero e orante da Quaresma, que é precisamente um clima de amor ao irmão.

Sejam dias de reflexão e de intensa oração, em que nos deixemos orientar pela Palavra de Deus, que a liturgia nos propõe abudantemente. Além disso, a Quaresma seja um tempo de jejum, de penitência e de vigilância sobre nós mesmos, persuadidos de que a luta contra o pecado nunca termina, porque a tentação é realidade de todos os dias e a fragilidade e a ilusão são experiências de todos. Enfim, através da esmola e dos gestos de bem ao próximo, a Quaresma seja ocasião de partilha sincera dos dons recebidos com os irmãos e de atenção às necessidades dos mais pobres e abandonados. Que neste itinerário penitencial nos acompanhe Maria, a Mãe do Redentor, que é Mestra de escuta e de adesão fiel a Deus. A Virgem Santíssima nos ajude a chegar, purificados e renovados na mente e no espírito, à celebração do grande mistério da Páscoa de Cristo. Com estes sentimentos, formulo a todos vós os votos de uma boa e fecunda Quaresma.

Fonte: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2006/documents/hf_ben-xvi_aud_20060301.html

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Audiência Geral de 26 de Fevereiro de 2020, quarta-feira de cinzas, do Papa Francisco, sobre a Quaresma: entrar no deserto.

Bom dia, prezados irmãos e irmãs!

Hoje, Quarta-Feira de Cinzas, iniciamos o caminho quaresmal, uma viagem de quarenta dias rumo à Páscoa, ao coração do ano litúrgico e da fé. É um caminho que segue o de Jesus, que no início do seu ministério se retirou durante quarenta dias para orar e jejuar, tentado pelo diabo no deserto. Hoje gostaria de falar convosco precisamente sobre o significado espiritual do deserto. O que significa espiritualmente o deserto para todos nós, até para quem vive na cidade, o que significa o deserto.

Imaginemos que estamos num deserto. A primeira sensação seria a de nos encontrarmos envolvidos por um grande silêncio: sem barulho, a não ser o vento e a nossa respiração. Eis que o deserto é o lugar do desapego do barulho que nos rodeia. É ausência de palavras para dar lugar a outra Palavra, a Palavra de Deus que, como uma brisa suave, acaricia o nosso coração (cf. 1 Rs 19, 12). O deserto é o lugar da Palavra, com letra maiúscula. Com efeito, na Bíblia o Senhor gosta de falar connosco no deserto. No deserto Ele entrega a Moisés as “dez palavras”, os dez mandamentos. E quando o povo se afasta dele, tornando-se como que uma noiva infiel, Deus diz: «Eis que a conduzirei ao deserto para lhe falar ao coração. Aí ela responderá, como nos dias da sua mocidade» (Os 2, 16-17). No deserto ouve-se a Palavra de Deus, que é como um som suave. O Livro dos Reis diz que a Palavra de Deus é como um fio de silêncio sonoro. No deserto encontra-se a intimidade com Deus, o amor do Senhor. Jesus gostava de se retirar todos os dias para lugares desertos e entregava-se à oração (cf. Lc 5, 16). Ele ensinou-nos como procurar o Pai, que nos fala no silêncio. E não é fácil fazer silêncio no coração, pois procuramos sempre conversar um pouco, estar com os outros.

A Quaresma é o momento propício para dar espaço à Palavra de Deus. É o tempo para desligar a televisão e abrir a Bíblia. É o tempo para nos desligarmos do telemóvel e para nos ligarmos ao Evangelho. Quando eu era criança não havia televisão, mas tínhamos o hábito de não ouvir o rádio. A Quaresma é deserto, é tempo para renunciar, para nos desligarmos do telemóvel e para nos ligarmos ao Evangelho. É o tempo para renunciar a palavras inúteis, conversas, boatos, tagarelices, e falar e tratar o Senhor por “tu”. É o tempo para se dedicar a uma saudável ecologia do coração, para fazer limpeza. Vivemos num ambiente poluído por demasiada violência verbal, por tantas palavras ofensivas e nocivas, que a rede amplifica. Hoje insulta-se como se se dissesse: “Bom dia”. Estamos inundados de palavras vazias, publicidades, mensagens subliminares. Estamos acostumados a ouvir tudo sobre todos e corremos o risco de cair numa mundanidade que atrofia o nosso coração e não existe um bypass para curar isto, apenas o silêncio. Temos dificuldade em distinguir a voz do Senhor que nos fala, a voz da consciência, a voz do bem. Chamando-nos ao deserto, Jesus convida-nos a escutar o que conta, o importante, o essencial. Ao diabo que o tentava, respondeu: «Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4, 4). Como o pão, mais do que o pão, precisamos da Palavra de Deus, temos necessidade de falar com Deus: precisamos de orar. Pois só diante de Deus vêm à luz as inclinações do coração e a duplicidade da alma desvanece. Eis o deserto, lugar de vida, não de morte, porque dialogar em silêncio com o Senhor nos restitui vida.

Procuremos pensar de novo num deserto. O deserto é o lugar do essencial. Vejamos as nossas vidas: quantas coisas inúteis nos circundam! Perseguimos mil coisas que parecem necessárias mas na realidade não o são. Como nos faria bem livrar-nos de tantas realidades supérfluas, para redescobrir o que importa, para encontrar os rostos de quantos estão ao nosso lado! Também sobre isto Jesus nos dá um exemplo, jejuando. Jejuar é saber renunciar às coisas vãs, ao supérfluo, para ir ao essencial. Jejuar não é apenas para perder peso, jejuar é ir diretamente ao essencial, é procurar a beleza de uma vida mais simples.

Por fim, o deserto é o lugar da solidão. Até hoje, perto de nós, há muitos desertos. São as pessoas solitárias e abandonadas. Quantos pobres e idosos estão ao nosso lado e vivem no silêncio, sem fazer barulho, marginalizados e descartados! Falar sobre eles não chama a atenção do público. Mas o deserto leva-nos a eles, àqueles que, calados, pedem em silêncio a nossa ajuda. Tantos olhares silenciosos que pedem a nossa ajuda. O caminho através do deserto quaresmal é uma senda de caridade para com os mais fracos.

Oração, jejum, obras de misericórdia: este é o caminho no deserto quaresmal.

Queridos irmãos e irmãs, com a voz do profeta Isaías, Deus fez esta promessa: «Vou realizar algo de novo... vou abrir um caminho no deserto» (43, 19). No deserto abre-se o caminho que nos leva da morte para a vida. Entremos no deserto com Jesus e dali sairemos saboreando a Páscoa, o poder do amor de Deus que renova a vida. Acontecerá connosco como com aqueles desertos que florescem na primavera, fazendo germinar de repente, “do nada”, brotos e plantas. Ânimo, entremos neste deserto quaresmal, sigamos Jesus no deserto: com Ele os nossos desertos hão de florescer.

Fonte: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2020/documents/papa-francesco_20200226_udienza-generale.html

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Queridos irmãos e irmãs!

A Quaresma é um tempo favorável de renovação pessoal e comunitária que nos conduz à Páscoa de Jesus Cristo morto e ressuscitado. Aproveitemos o caminho quaresmal de 2022 para refletir sobre a exortação de São Paulo aos Gálatas: «Não nos cansemos de fazer o bem; porque, a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido. Portanto, enquanto temos tempo (kairós), pratiquemos o bem para com todos» (Gal 6, 9-10a).

1. Sementeira e colheita

Neste trecho, o Apóstolo evoca a sementeira e a colheita, uma imagem que Jesus muito prezava (cf. Mt 13). São Paulo fala-nos dum kairós: um tempo propício para semear o bem tendo em vista uma colheita. Qual poderá ser para nós este tempo favorável? Certamente é a Quaresma, mas é-o também a nossa inteira existência terrena, de que a Quaresma constitui de certa forma uma imagem [1]. Muitas vezes, na nossa vida, prevalecem a ganância e a soberba, o anseio de possuir, acumular e consumir, como se vê no homem insensato da parábola evangélica, que considerava assegurada e feliz a sua vida pela grande colheita acumulada nos seus celeiros (cf. Lc 12, 16-21). A Quaresma convida-nos à conversão, a mudar mentalidade, de tal modo que a vida encontre a sua verdade e beleza menos no possuir do que no doar, menos no acumular do que no semear o bem e partilhá-lo.

O primeiro agricultor é o próprio Deus, que generosamente «continua a espalhar sementes de bem na humanidade» (Enc. Fratelli tutti, 54). Durante a Quaresma, somos chamados a responder ao dom de Deus, acolhendo a sua Palavra «viva e eficaz» (Heb 4, 12). A escuta assídua da Palavra de Deus faz maturar uma pronta docilidade à sua ação (cf. Tg 1, 19.21), que torna fecunda a nossa vida. E se isto já é motivo para nos alegrarmos, maior motivo ainda nos vem da chamada para sermos «cooperadores de Deus» (1 Cor 3, 9), aproveitando o tempo presente (cf. Ef 5, 16) para semearmos, também nós, praticando o bem. Esta chamada para semear o bem deve ser vista, não como um peso, mas como uma graça pela qual o Criador nos quer ativamente unidos à sua fecunda magnanimidade.

E a colheita? Porventura não se faz toda a sementeira a pensar na colheita? Certamente; o laço estreito entre a sementeira e a colheita é reafirmado pelo próprio São Paulo, quando escreve: «Quem pouco semeia, também pouco há de colher; mas quem semeia com generosidade, com generosidade também colherá» (2 Cor 9, 6). Mas de que colheita se trata? Um primeiro fruto do bem semeado, temo-lo em nós mesmos e nas nossas relações diárias, incluindo os gestos mais insignificantes de bondade. Em Deus, nenhum ato de amor, por mais pequeno que seja, e nenhuma das nossas «generosas fadigas» se perde (cf. Exort. Evangelii gaudium, 279). Tal como a árvore se reconhece pelos frutos (cf. Mt 7, 16.20), assim também a vida repleta de obras boas é luminosa (cf. Mt 5, 14-16) e difunde pelo mundo o perfume de Cristo (cf. 2 Cor 2, 15). Servir a Deus, livres do pecado, faz maturar frutos de santificação para a salvação de todos (cf. Rm 6, 22).

Na realidade, só nos é concedido ver uma pequena parte do fruto daquilo que semeamos, pois, segundo o dito evangélico, «um é o que semeia e outro o que ceifa» (Jo 4, 37). É precisamente semeando para o bem do próximo que participamos na magnanimidade de Deus: constitui «grande nobreza ser capaz de desencadear processos cujos frutos serão colhidos por outros, com a esperança colocada na força secreta do bem que se semeia» (Enc. Fratelli tutti, 196). Semear o bem para os outros liberta-nos das lógicas mesquinhas do lucro pessoal e confere à nossa atividade a respiração ampla da gratuidade, inserindo-nos no horizonte maravilhoso dos desígnios benfazejos de Deus.

A Palavra de Deus alarga e eleva ainda mais a nossa perspetiva, anunciando-nos que a colheita mais autêntica é a escatológica, a do último dia, do dia sem ocaso. O fruto perfeito da nossa vida e das nossas ações é o «fruto em ordem à vida eterna» (Jo 4, 36), que será o nosso «tesouro no céu» (Lc 18, 22; cf. 12, 33). O próprio Jesus, para exprimir o mistério da sua morte e ressurreição, usa a imagem da semente que morre na terra e frutifica (cf. Jo 12, 24); e São Paulo retoma-a para falar da ressurreição do nosso corpo: «semeado corrutível, o corpo é ressuscitado incorrutível; semeado na desonra, é ressuscitado na glória; semeado na fraqueza, é ressuscitado cheio de força; semeado corpo terreno, é ressuscitado corpo espiritual» (1 Cor 15, 42-44). Esta esperança é a grande luz que Cristo ressuscitado traz ao mundo: «Se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram» (1 Cor 15, 19-20), para que quantos estiverem intimamente unidos a Ele no amor, «por uma morte idêntica à Sua» (Rm 6, 5), também estejam unidos à sua ressurreição para a vida eterna (cf. Jo 5, 29): «então os justos resplandecerão como o sol, no reino do seu Pai» (Mt 13, 43).

2. «Não nos cansemos de fazer o bem»

A ressurreição de Cristo anima as esperanças terrenas com a «grande esperança» da vida eterna e introduz, já no tempo presente, o germe da salvação (cf. Bento XVI, Spe salvi, 3; 7). Perante a amarga desilusão por tantos sonhos desfeitos, a inquietação com os desafios a enfrentar, o desconsolo pela pobreza de meios à disposição, a tentação é fechar-se num egoísmo individualista e, à vista dos sofrimentos alheios, refugiar-se na indiferença. Com efeito, mesmo os recursos melhores conhecem limitações: «Até os adolescentes se cansam, se fatigam, e os jovens tropeçam e vacilam» (Is 40, 30). Deus, porém, «dá forças ao cansado e enche de vigor o fraco. (…) Aqueles que confiam no Senhor, renovam as suas forças. Têm asas como a águia, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 29.31). A Quaresma chama-nos a repor a nossa fé e esperança no Senhor (cf. 1 Ped 1, 21), pois só com o olhar fixo em Jesus Cristo ressuscitado (cf. Heb 12, 2) é que podemos acolher a exortação do Apóstolo: «Não nos cansemos de fazer o bem» (Gal 6, 9).

 Não nos cansemos de rezar. Jesus ensinou que é necessário «orar sempre, sem desfalecer» ( Lc 18, 1). Precisamos de rezar, porque necessitamos de Deus. A ilusão de nos bastar a nós mesmos é perigosa. Se a pandemia nos fez sentir de perto a nossa fragilidade pessoal e social, permita-nos esta Quaresma experimentar o conforto da fé em Deus, sem a qual não poderemos subsistir (cf. Is 7, 9). No meio das tempestades da história, encontramo-nos todos no mesmo barco, pelo que ninguém se salva sozinho [2]; mas sobretudo ninguém se salva sem Deus, porque só o mistério pascal de Jesus Cristo nos dá a vitória sobre as vagas tenebrosas da morte. A fé não nos preserva das tribulações da vida, mas permite atravessá-las unidos a Deus em Cristo, com a grande esperança que não desilude e cujo penhor é o amor que Deus derramou nos nossos corações por meio do Espírito Santo (cf. Rm 5, 1-5).

Não nos cansemos de extirpar o mal da nossa vida. Possa o jejum corporal, a que nos chama a Quaresma, fortalecer o nosso espírito para o combate contra o pecado. Não nos cansemos de pedir perdão no sacramento da Penitência e Reconciliação, sabendo que Deus nunca Se cansa de perdoar[3]Não nos cansemos de combater a concupiscência, fragilidade esta que inclina para o egoísmo e todo o mal, encontrando no decurso dos séculos vias diferentes para fazer precipitar o homem no pecado (cf. Enc. Fratelli tutti, 166). Uma destas vias é a dependência dos meios de comunicação digitais, que empobrece as relações humanas. A Quaresma é tempo propício para contrastar estas ciladas, cultivando ao contrário uma comunicação humana mais integral (cf. ibid., 43), feita de «encontros reais» ( ibid., 50), face a face.

Não nos cansemos de fazer o bem, através duma operosa caridade para com o próximo. Durante esta Quaresma, exercitemo-nos na prática da esmola, dando com alegria (cf. 2 Cor 9, 7). Deus, «que dá a semente ao semeador e o pão em alimento» (2 Cor 9, 10), provê a cada um de nós os recursos necessários para nos nutrirmos e ainda para sermos generosos na prática do bem para com os outros. Se é verdade que toda a nossa vida é tempo para semear o bem, aproveitemos de modo particular esta Quaresma para cuidar de quem está próximo de nós, para nos aproximarmos dos irmãos e irmãs que se encontram feridos na margem da estrada da vida (cf. Lc 10, 25-37). A Quaresma é tempo propício para procurar, e não evitar, quem passa necessidade; para chamar, e não ignorar, quem deseja atenção e uma boa palavra; para visitar, e não abandonar, quem sofre a solidão. Acolhamos o apelo a praticar o bem para com todos, reservando tempo para amar os mais pequenos e indefesos, os abandonados e desprezados, os discriminados e marginalizados (cf. Enc. Fratelli tutti, 193).

3. «A seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido»

Cada ano, a Quaresma vem recordar-nos que «o bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia» (ibid., 11). Por conseguinte peçamos a Deus a constância paciente do agricultor (cf. Tg 5, 7), para não desistir na prática do bem, um passo de cada vez. Quem cai, estenda a mão ao Pai que nos levanta sempre. Quem se extraviou, enganado pelas seduções do maligno, não demore a voltar para Deus, que «é generoso em perdoar» (Is 55, 7). Neste tempo de conversão, buscando apoio na graça divina e na comunhão da Igreja, não nos cansemos de semear o bem. O jejum prepara o terreno, a oração rega, a caridade fecunda-o. Na fé, temos a certeza de que «a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido», e obteremos, com o dom da perseverança, os bens prometidos (cf. Heb 10, 36) para salvação nossa e do próximo (cf. 1 Tm 4, 16). Praticando o amor fraterno para com todos, estamos unidos a Cristo, que deu a sua vida por nós (cf. 2 Cor 5, 14-15), e saboreamos desde já a alegria do Reino dos Céus, quando Deus for «tudo em todos» (1 Cor 15, 28).

A Virgem Maria, em cujo ventre germinou o Salvador e que guardava todas as coisas «ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19), obtenha-nos o dom da paciência e acompanhe-nos com a sua presença materna, para que este tempo de conversão dê frutos de salvação eterna.

Roma, em São João de Latrão, na Memória litúrgica do bispo São Martinho, 11 de novembro de 2021.

Francisco


[1] Cf. Santo Agostinho, Sermones 243, 9,8; 270, 3; Enarratio in Psalmis 110, 1.

[2] Cf. Francisco, Momento extraordinário de oração em tempo de pandemia (27 de março de 2020).

[3] Cf. Idem, Angelus de 17 de março de 2013.

Fonte: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/lent/documents/20211111-messaggio-quaresima2022.html

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