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FC!#355 - O desenvolvimento da liturgia - Pe. João Batista Reus, S. J.
A Liturgia divina
No antigo testamento, todo o culto do povo de Israel foi ordenado por lei divina. Os deveres múltiplos dos sacerdotes israelitas, bem como o modo de oferecer os vários sacrifícios, foram minuciosamente revelados por Deus a Moisés, que os fixou no livro Levítico.
A Igreja do novo testamento devia abranger todos os povos do mundo, tão distantes, tão diferentes em costumes. Um novo culto público tornou-se indispensável. O Legislador divino criou-o e estatuiu para a nova Liturgia, que consiste mormente na missa, umas poucas leis, encarregando a sua Igreja de alargá-las com cerimônias convenientes, sob a direção do Espírito Santo. As partes essenciais da missa, a forma essencial dos sacramentos, o Pai Nosso formam os elementos da Liturgia divina.
A Liturgia apostólica
Os apóstolos contentaram-se, a princípio, com os poucos ritos divinos e acompanham-nos com as orações e algumas cerimônias, que conheciam do templo. O próprio Salvador tinha empregado antigos e novos ritos, pois tinha preparado a primeira consagração eucarística com o rito da páscoa antiga. Esta ordem conservou-se nas duas partes da missa: a missa dos catecúmenos e a missa dos fiéis. Na primeira havia orações e leitura da sagrada Escritura, na segunda a consagração; divisão esta que se encontra desde o princípio do cristianismo.
Os apóstolos usaram o seu direito litúrgico. S. Paulo, por exemplo, ordenou que as mulheres viessem para a reunião dos fiéis de cabeça velada ( 1 Cor 11). Quais dos ritos modernos foram introduzidos pelos apóstolos, não podemos definir com certeza. Sabemos, porém, que os aposfolos receberam do divino Redentor a ordem: "Depois de doze anos, saí para o mundo, a fim de que ninguém diga: não ouvimos nada" (Post duodecim annos egredimini, ne quis dicat: non audivimus. Clemens Alex. Strom 6, 5, 43; Apollonius em Eusébio, Hist. Eccl. 5, 18, 14; outro autor fala de 7 anos.) A cronologia bíblica, baseada também em outros cálculos, chegou quase ao mesmo número de 12 a 13 anos (Pirot, Dict. d. l. bible 1928, Suppl. I. p. 1294-1295). Sem dúvida, durante esses 12 anos em Jerusalém, todos os apóstolos celebraram os santos mistérios e a Liturgia da mesma maneira. Por isso é muito provável que os ritos comuns a todas as Liturgias tenham por autores apóstolos.
Também foi sempre tradição da Igreja que na Liturgia há partes instituídas por eles. S. Basílio († 379) diz que os ritos litúrgicos, usados por toda a parte e cujo autor é desconhecido, dimanam da autoridade dos apóstolos. Portanto, a leitura da escritura sagrada, o Sursum corda e as outras saudações e respostas antes do prefácio, o cânon, foram introduzidos por eles.
Quando se disse a primeira missa pelos apóstolos, não sabemos. Mas é provável que fosse no próprio dia de Pentecostes; pois a missa é a parte essencial do culto da Igreja, que neste dia principiou a desempenhar as funções sagradas. (Bellarm., De cultu Sanctor. III, c. 11.) A Igreja costumava dar logo aos batizados a s. comunhão. Maria SS. desejava tanto receber Jesus Cristo nas espécies sacramentais. S. Tomás diz: celebramos a instituição do SS. Sacramento especialmente naquele tempo, em que o Espírito Santo ensinou os corações dos discípulos a conhecer perfeitamente os mistérios deste sacramento. Pois também no mesmo tempo foi que os fiéis começaram a receber este sacramento. (S. Tomás, Opúsc. 57, II die intra oct. Corp. Chr.)
Bento XIV (Inst. 21. n. 13; Festa Dom. c. 11, n. 42) cita o opinião do cardeal Bona, de que antes de pentecostes não se podia propriamente dizer a missa; pois não convinha oferecer o novo sacrifício, enquanto o sacerdócio ainda não fôra transferido. Concorda com isto a escritura sagrada. Pois diz que os apóstolos antes da vinda do Espírito Santo perseveraram unânimes em oração (At 1, 14), sem mencionar a comunhão do pão, por não haver ainda missa. Tendo recebido o Espírito Santo, continuaram na "comunhão da fração do pão" (At 2, 42). Pois então havia missa e comunhão.
A Liturgia primeva eclesiástica
Os apóstolos legaram aos seus sucessores o poder sobre a Liturgia e o cuidado dela. Fixá-la inteiramente foi impossível por causa das perseguições e do segrêdo severo relativo aos santos mistérios. Os cristãos, quase sempre acossados pelos satélites dos tiranos, não queriam deixar cair nas mãos dos pagãos um livro completo dos seus ritos santos.
Mais tarde, conformando-se com os costumes do povo respectivo, os bispos adotaram também cerimônias já conhecidas, contanto que não fôssern contrárias à doutrina cristã ou próprias do paganismo.
Esta formação deu-se, antes de tudo, nos grandes centros de civilização. Pois sabemos que os apóstolos procuravam de preferência cidades importantes: Antioquia, Corinto, Éfeso, Roma. Os seus sucessores fizeram o mesmo. Em redor das suas cidades episcopais fundaram outras comunidades religiosas, dependentes do centro também quanto à Liturgia. Pois eram sacerdotes da metrópole que plantavam a nova vinha do Senhor. Pouco a pouco, formou-se uma Liturgia comum a muitos lugares e finalmente a uma região inteira.
Como este processo natural se efetuasse igualmente no Oriente e no Ocidente, originaram-se várias Liturgias, concordantes nos ritos essenciais, diferindo, porém, nas cerimônias acidentais. As modificações tinham a origem nos esforços de paralisar a influência dos costumes pagãos e, mais tarde ao menos, na influência de príncipes, de mosteiros, de homens insignes ou de piedade privada. Principiou esta formação em maior escala depois de terminar a perseguição pagã pelo edito de Milão em 313; mas o poder dos bispos foi cada vez mais restringido, até que, finalmente, o direito litúrgico foi reservado aos concílios provinciais. (Conc. tolet. 633, cân. 12).
FC!#353 - A Antiguidade da Liturgia da Santa Missa (Justino de Roma)
Fraternidade e eucaristia
65. De nossa parte, depois que assim foi lavado aquele que creu e aderiu a nós, nós o levamos aos que se chamam irmãos, no lugar em que estão reunidos, a fim de elevar fervorosamente orações em comum por nós mesmos, por aquele que acaba de ser iluminado e por todos os outros espalhados pelo mundo inteiro, suplicando que nos conceda, já que conhecemos a verdade, ser encontrados por nossas obras como homens de boa conduta e observantes do que nos mandaram, e assim consigamos a salvação eterna. Terminadas as orações, nos damos mutuamente o ósculo da paz. Depois àquele que preside aos irmãos é oferecido pão e uma vasilha com água e vinho; pegando-os, ele louva e glorifica ao Pai do universo através do nome de seu Filho e do Espírito Santo, e pronuncia uma longa ação de graças, por ter-nos concedido esses dons que dele provêm. Quando o presidente termina as orações e a ação de graças, todo o povo presente aclama, dizendo: “Amém”. Amém, em hebraico, significa “assim seja”. Depois que o presidente deu ação de graças e todo o povo aclamou, os que entre nós se chamam ministros ou diáconos dão a cada um dos presentes parte do pão, do vinho e da água sobre os quais se pronunciou a ação de graças e os levam aos ausentes.
Teologia da eucaristia
66. Este alimento se chama entre nós Eucaristia, da qual ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros nossos ensinamentos e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração e vive conforme o que Cristo nos ensinou. De fato, não tomamos essas coisas como pão comum ou bebida ordinária, mas da maneira como Jesus Cristo, nosso Salvador, feito carne por força do Verbo de Deus, teve carne e sangue por nossa salvação, assim nos ensinou que, por virtude da oração ao Verbo que procede de Deus, o alimento sobre o qual foi dita a ação de graças — alimento com o qual, por transformação, se nutrem nosso sangue e nossa carne — é a carne e o sangue daquele mesmo Jesus encarnado. Foi isso que os Apóstolos nas memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos, nos transmitiram que assim foi mandado a eles, quando Jesus, tomando o pão e dando graças, disse: “Fazei isto em memória de mim, este é o meu corpo”. E igualmente, tomando o cálice e dando graças, disse: “Este é o meu sangue”, e só participou isso a eles. É certo que isso também, por arremedo, foi ensinado pelos demônios perversos para ser feito nos mistérios de Mitraj; com efeito, nos ritos de um novo iniciado, apresenta-se pão e uma vasilha de água com certas orações, como sabeis ou podeis informar-vos.
Liturgia dominical
67. Depois dessa primeira iniciação, recordamos constantemente entre nós essas coisas e aqueles de nós que possuem alguma coisa socorrem todos os necessitados e sempre nos ajudamos mutuamente. Por tudo o que comemos, bendizemos sempre ao Criador de todas as coisas, por meio de seu Filho Jesus Cristo e do Espírito Santo. No dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se lêem, enquanto o tempo o permite, as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas. Quando o leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos juntos e elevamos nossas preces. Depois de terminadas, como já dissemos, oferece-se pão, vinho e água, e o presidente, conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas preces e ações de graças e todo o povo exclama, dizendo: “Amém”. Vem depois a distribuição e participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos ausentes pelos diáconos. Os que possuem alguma coisa e queiram, cada um conforme sua livre vontade, dá o que bem lhe parece, e o que foi recolhido se entrega ao presidente. Ele o distribui a órfãos e viúvas, aos que por necessidade ou outra causa estão necessitados, aos que estão nas prisões, aos forasteiros de passagem, numa palavra, ele se torna o provisor de todos os que se encontram em necessidade. Celebramos essa reunião geral no dia do sol, porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, e também o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o crucificaram um dia antes do dia de Saturno e no dia seguinte ao de Saturno, que é o dia do Sol, ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou essas mesmas doutrinas que estamos expondo para vosso exame.
FC!#352 - Culto público - O Espírito de Deus na Santa Liturgia (Dom Gaspar Lefebvre, 1962)
Em seu colóquio com a Samaritana, Nosso Senhor, declara, relativamente ao culto a prestar a Deus:
"Aproxima-se — e mesmo já chegou — a hora em que os verdadeiros adoradores, adorarão o Pai em espírito e em verdade; c assim que quer o Pai seus adoradores. Deus é espírito, e em espírito e verdade é que o devem adorar os que o adoram” (Jo 4.23-24.).
Com o Messias soou a hora em que o culto mosaico deverá ceder lugar a um culto de caráter verdadeiramente universal. Já não terá fundamento a rivalidade entre Judeus e Samaritanos. Ao instituir a Nova Lei, Cristo estabelecerá um sacrifício novo que suplantará todos os da Lei antiga. Será celebrado no mundo inteiro e num espírito inteiramente novo que será verdadeiramente a alma de todo o culto cristão.
"A hora desse universalismo, diz o Pe. Braun, coincide com a hora da religião mais interior que Cristo nos veio ensinar, e que não nos é dada como destruição da religião antiga, mas como seu acabamento... Os Judeus contentavam-se muito facilmente com suas práticas rituais. Haviam chegado, assim, a reduzir o culto divino a um conjunto de atitudes e de gestos desprovidos de sentimento... Os verdadeiros adoradores evitam rejeitar as práticas exteriores que sempre serão postuladas pelo fato de sermos um composto de alma e de corpo. Acentuam, porém, o culto em espírito . . . Adorar e rogar a Deus em espírito é adorá-lo e rogá-lo de todo coração, de toda alma, com pureza de intenção. E adorá-lo assim, em espirito, é adorá-lo em verdade, "verdadeiramente”. O culto puramente exterior, sem devoção interior, não passa de simulacro da oração” (La Sainte Bible t. X , pp. 344-345).
Não é que Jesus rejeite a oração vocal, pois que a seus discípulos ensinou as fórmulas do Pater noster. Sta. Teresa nos fala de uma religiosa que "gozava da pura contemplação enquanto dizia o Pai Nosso” (Caminho de Perfeição, 25, 1; 30, 7.). E ela própria encontrava nessa recitação um grande meio de união a Deus.
O Pater noster cantado ou rezado em voz alta pelo sacerdote no altar tem grande força junto de Deus quando tais aspirações e pedidos emanam de uma alma que deles plenamente se apropria.
Declara Sto. Tomás na Suma Teológica:
"Mesmo a adoração corporal se faz em espírito, porquanto procede da devoção espiritual e conduz a esta” (Summa Theol. 2ª 2ae Q. 84 a. 2 ad 1). Reza em espírito e em verdade aquele que se põe em oração por impulso do Espírito Santo” (Summa Theol. 2ª 2ae Q. 83 a. 13 ad 1).
"Consiste a oração principalmente no espírito, e secundariamente exprime-se por palavras; do mesmo modo a adoração consiste principalmente na reverência interior para com Deus, e secundariamente em atitudes corporais” (Summa Theol. 2ª 2ae Q. 84 a. 14 ad 2).
No "sermão da montanha”, que é o código da Nova Lei, o divino Mestre verbera o formalismo daqueles que oram por simples ostentação e vaidade.
"Quando orardes, declara ele, não façais como os hipócritas que gostam de rezar ostensivamente nas sinagogas e nos cantos das praças para serem vistos pelos homens... Quanto a ti, quando quiseres orar, vai ao aposento mais retirado, fecha a porta à chave e ora a teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê no segredo, te dará a recompensa” (Mt 6, 5-6).
"Como! — exclama S. João Crisóstomo — ele nos interdiz a oração pública solene, a oração pública que reúne diante de Deus todo um povo em unânime clamor? Não; não pode interdizê-la aquele que prometeu eficácia à oração feita em comum; mas quis indicar as verdadeiras condições da prece pública” (Hom. 19 in Math. n.' 2).
O que Jesus tem em vista é a intenção dos que oram; devem estes ter no pensamento a glória de Deus e não a vanglória.
Quando se trata de oração pública, que comporta simultaneamente ação do corpo e da alma, orar em segredo significa entrar em contato íntimo com Deus no secreto de nosso coração, por meio de atos exteriores. "Sic stemus ad psallendum, diz S. Bento, ut mens nostra coticordet voei nostrae” (Santa Regra, c. 19).
A oração pública da Igreja, que põe em atividade todas as potências do homem, inteligência, vontade, sensibilidade e atividade física, é mais total do que qualquer outra. É plenamente apropriada à natureza humana. Mas devemos realizá-la sempre sob a moção do Espírito Santo, que permanece em nossas almas pela graça. Evitaremos assim a exprobração de Jesus, já dirigida pelo profeta Isaias aos adoradores superficiais:
"Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim" (Mt 15.18; Is 29.13).
Devem todos os nossos atos cultuais exteriores ser expressão sincera e leal de nossa fé e de nosso amor por Deus.
"É sobretudo pela fé, esperança e caridade, diz Sto. Agostinho, que Deus é honrado no culto que lhe é devido” (Enchiridion, 3).
Pelas virtudes teologais que regem a virtude de religião, a qual por sua vez lhes dirige as atividades à glória de Deus, nossa alma, que é espiritual, atinge diretamente a Deus, que é espírito, e nosso culto é assim verdadeiramente prestado "em espírito e em verdade".
Quanto aos atos exteriores desse culto, seu papel é serem ao mesmo tempo tradução sensível de nossa devoção interior, homenagem que nosso corpo, em dependência da alma, faz a Deus pondo-se totalmente a seu serviço, e o estimulante que essa exteriorização do culto está em condições de trazer à nossa inteligência e à nossa vontade.
Diz Sto. Tomás (Summa Theol. 2ª 2ae Q. 84 a. 2 ad 3):
"Se bem que pelos sentidos não possamos atingir a Deus, pelos sinais sensíveis nosso espírito é estimulado a elevar-se a Ele.”
E Joubert:
"As evoluções religiosas, como procissões, genuflexões, inclinações do corpo e da cabeça, a marcha e as estações, não são de pequeno efeito nem de pouca importância. Elas tornam maleável o coração para a piedade e o espirito para a fé” (Pensées).
Quando numerosa assembleia se rende à prece pública e proclama com entusiasmo a glória do Senhor, essa coletividade exerce fortíssima influência sobre todos. Ritos, palavras, cantos, tudo concorre então poderosamente para unificar a oração e exprimi-la com dinamismo sobremodo possante.
Não é nosso corpo destinado a participar por toda a eternidade da bem-aventurança infinita de Deus e da adoração que todos os eleitos rendem à Santíssima Trindade? Não pode ele portanto ficar alheio ao exercício da oração pelo qual, desde este mundo, santifica-se-nos a alma ao entrar em contato com a Majestade divina. Deve, ao contrário, associar-se intimamente a essa oração para proveito próprio e para que, espiritual e corporalmente, rendamos a Deus o culto pleno e público que Ele espera de criaturas que não são, como os anjos, puros espíritos.
O missal contém, aliás, várias orações em que simultaneamente se faz menção da alma e do corpo.
"Concedei-nos, Senhor, que sintamos na alma e no corpo a força protetora de vosso sacramento, a fim de que, salvos em todo o nosso ser, gozemos na glória, da plenitude desse celeste remédio” (Postc. X I dom. depois de Pentecostes).
"Dai, Senhor, a vosso povo a saúde da alma e do corpo para que, aplicando-se às boas obras, mereça o constante apoio de vossa poderosa proteção” (Postc, sobre o povo. Sexta-feira da 2ª semana da Quaresma).
FC!#351 - Definição da Liturgia - Meu Livro de Liturgia (Con. Hilário Wijten O. Prem., 1955)
A palavra "liturgia" tem sua origem no grego. A sua etimologia dá ideia duma obra feita em favor do povo, duma obra em favor do bem geral. Em quase todas as cidades da antiga Grécia, principalmente na culta Atenas, entendia-se por "liturgia" qualquer encargo imposto aos cidadãos, principalmente aos melhor aquinhoados pela fortuna, com o fito de, custear serviços públicos. Assim vemos que, no sentido particular, "liturgia" significa serviço público custeado por cidadãos de alta sociedade, que para si conservavam apenas a honra de para ele terem concorrido.
Tal encargo concedia ao cidadão a dignidade de ter concorrido para que um serviço público fosse realizado quer no âmbito de uma cidade, quer em todo o país. Era uma dignidade temporal que, em tempo de paz, se revestia de grande distinção e grande honra. Aos que a alcançavam competia, por exemplo: a direção de um coro ou de um corpo de dança, a organização duma festa pública, a chefia duma delegação que representasse as autoridades civis duma cidade, em festas nacionais (como os Jogos Olímpicos), a consulta do oráculo de Delfos; a apresentação, em seu nome, de uma oferta no templo.
No século IV a. C., Aristóteles usava, no seu "Politicon", a palavra "liturgia" para designar tanto o serviço do Estado como o culto dos deuses.
É, porém, preciso observar que nesta última acepção da palavra "liturgia" já não estava o interesse público nas mãos dum particular, mas passara a todos os cidadãos.
No último século a. C., observa o historiador Dionísio de Halicarnasso, é que as mulheres e as crianças das famílias sacerdotais exerciam os ofícios de segunda ordem.
Por isso, a palavra "liturgia", empregada antes para indicar uma instituição política, peculiar à Grécia, pode ser empregada no sentido religioso, porque a religião nesse país era a primeira e a mais cuidada das instituições do Estado.
A "liturgia" era um ofício temporal e honroso, dado temporariamente a um cidadão de alta classe social para realçar a magnificência das solenidades religiosas. Na decadência da Grécia, a palavra "liturgia" perdeu a significação que tinha na "era clássica".
Pela origem política, a palavra "liturgia" conserva uma relação necessária com as instituições religiosas e os ofícios sacros, sendo, na Grécia, a parte mais comum do culto dos deuses.
A Idade Média toma a palavra "liturgia" na sua verdadeira significação de: relação necessária com as instituições religiosas e os ofícios sacros, e, então, vemo-la introduzida na linguagem eclesiástica.
Dada, de forma bem resumida, a explicação etimológica, resta-nos definir a palavra "liturgia" em seu sentido religioso.
A "liturgia" é o culto exterior e público que a santa Igreja, como sociedade pública, presta a Deus, nos seus atos, sacrifícios e sacramentos, como as cerimônias, bênçãos, leituras e cânticos. Tudo isso em formas exteriores sobre as quais o Espírito Santo estende suas graças e bênçãos: "Nam quid oremus, sicut oportet, nescimus, sed ipse Spiritus postulat pro nobis gemitibus inenarrabilibus", diz São Paulo. "Porque nem sabemos como devemos rezar dignamente, é o mesmo Espírito Santo que reza por nós com gemidos inenarráveis".
À primeira vista, parece estranho que uma oração vocal, feita em público, em uma vasta igreja, com um grande aparato exterior e no meio duma multidão compacta, tenha um lugar tão preponderante na vida cristã. Talvez sejamos tentados a dizer que a oração mental, mais libertada dos sentidos e feita no recolhimento dum quarto, é, por sua natureza, capaz de produzir melhores frutos de santificação. Todavia, o santo sacrifício, a sagrada comunhão, os sacramentos e o divino ofício são os mais legítimos atos da virtude de religião, e a Igreja pratica-os em sociedade.
Para isso é necessário que tais atos sejam ao mesmo tempo interiores, exteriores e coletivos, porque o homem é essencialmente composto de corpo e alma; é, além disso, um ente social que de modo nenhum pode ser afastado do meio em que deve viver. Como não podemos conceber sociedade sem autoridade, não podemos também imaginar o culto sem a chefia que naturalmente tem. Sob todos estes aspectos, o culto da Igreja, isto é, a "liturgia", é superior ao culto privado e é verdadeiramente fonte primária e indispensável do espírito cristão" (Liturgia, Princípios fundamentais, D. Gaspar Lefebvre. Trad. de A. C., p. 13).
Devemos, portanto, concluir que a própria razão declara que o culto, a homenagem prestada ao Criador por sua criatura, deve reunir três condições: ser interior, exterior e público.
O culto interior é a homenagem, prestada a Deus, com o espírito e o coração, e consiste em sentimentos de fé nos ensinamentos divinos, de amor para com o nosso Benfeitor, e de esperança e submissão à bondade divina.
Pelo culto exterior, externamos os sentimentos, pelas orações vocais, pelas posições suplicantes, pelas cerimônias e cânticos.
O culto público é a homenagem prestada a Deus, pela sociedade como tal. Assim, é preciso que todos os fiéis participem dessas homenagens públicas, assistindo à Santa Missa, aos divinos ofícios, às procissões. E esta oração social ou pública é a verdadeira oração da Igreja: "a liturgia".
A "liturgia", por sua definição, é de ordem verdadeiramente sensível. Como ela é oração, jorra do coração. Ela tem em nós sua fonte profunda, ela tem uma alma, que é a virtude de religião, inspirada pelas três grandes virtudes teologais que são a base da vida cristã: a fé, a esperança e a caridade (Liturgia, Encyclopédie populaire des connaissances liturgiques, de l' Abbé R. Aigran, p. 15).
S. Tomás, na sua profunda sapiência, reduz a virtude da religião à de justiça, não como uma espécie do mesmo gênero, mas como uma virtude anexa. A justiça dá a cada um o que lhe é devido. Como criaturas de Deus, temos tudo dele; devemos-lhe, portanto, a submissão e o respeito; nosso culto é necessário, ele deve ser o pagamento duma dívida – é, portanto, um ato de perfeita, de legítima justiça; é uma obrigação.
O corpo da "liturgia" é tudo que pertence à religião exterior-pública, principalmente o sacrifício da Missa, em redor do qual são organizados todos os outros elementos.
Antes de mais nada, digamos alguma coisa sobre os atos internos:
1. A adoração – Criaturas de Deus, sendo por nós mesmos nada, nossa lei, nossa vida é render tudo a Deus por um movimento livre de nosso coração. Dom total, submissão sem reserva: eis a adoração (Liturgia, o. c.).
2. A oração – A oração é a elevação da nossa alma a Deus, com o fim de afastar de nós males, ou de obter bens para nós e para nossos irmãos, e de bendizer a Deus (S. João Damasceno).
3. A vontade divina – Em tudo, nossa própria vontade deve ser subordinada à vontade divina.
Atos externos:
1. As palavras – A palavra é a expressão ordinária do pensamento. Falamos a Deus, não porque ele precisa de nossa palavra para nos escutar, mas pelo instinto que nos leva a entrar em comunicação com a pessoa que nos compreende. A palavra exprime o pensamento e dá mais energia à oração.
2. Os cânticos – O homem canta naturalmente suas alegrias, suas tristezas, os sentimentos mais elevados de sua alma, e, portanto, as suas emoções religiosas.
3. Os gestos – O homem, por instinto, recorre tanto ao gesto como à palavra, para exprimir o que sente. Reza-se melhor, de joelhos, com os braços estendidos e o olhar voltado para o céu.
A tais gestos chamamos "cerimônias", que, portanto, nada mais são senão as ações que secundam as palavras ou as coisas sobre as quais se dizem essas palavras (Conc. Trid. sess. XXII, 1. 5).
4. Os elementos materiais – Com isso designamos todas as substâncias necessárias ao culto exterior; p. ex. a hóstia,· a água, o vinho, o sal, o incenso.
FC!#350 - Por que a Liturgia? - Celebração do Mistério Cristão - CIC §1066-§1075
Por que a Liturgia?
1066. No Símbolo da Fé, a Igreja confessa o mistério da Santíssima Trindade e o seu «desígnio admirável» (Ef 1, 9) sobre toda a criação: o Pai realiza o «mistério da sua vontade», dando o seu Filho muito amado e o seu Espírito Santo para a salvação do mundo e para a glória do seu nome. Tal é o mistério de Cristo (1), revelado e realizado na história segundo um plano, uma «disposição» sabiamente ordenada, a que São Paulo chama «a economia do mistério» (Ef 3, 9)e a que a tradição patrística chamará «a economia do Verbo encarnado» ou «economia da salvação».
1067. «Esta obra da redenção humana e da glorificação perfeita de Deus, cujo prelúdio foram as magníficas obras divinas operadas no povo do Antigo Testamento, realizou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa ascensão, em que, "morrendo, destruiu a morte e ressuscitando restaurou a vida". Efectivamente, foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu "o sacramento admirável de toda a Igreja"» (2). É por isso que, na liturgia, a Igreja celebra principalmente o mistério pascal, pelo qual Cristo realizou a obra da nossa salvação.
1068. É este mistério de Cristo que a Igreja proclama e celebra na sua liturgia, para que os fiéis dele vivam e dele dêem testemunho no mundo.
«A liturgia, com efeito, pela qual, sobretudo no sacrifício eucarístico, "se actua a obra da nossa redenção", contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da, verdadeira Igreja» (3).
Qual o significado da palavra Liturgia?
1069. Originariamente, a palavra «liturgia» significa «obra pública», «serviço por parte dele em favor do povo». Na tradição cristã, quer dizer que o povo de Deus toma parte na «obra de Deus» (4). Pela liturgia, Cristo, nosso Redentor e Sumo-Sacerdote, continua na sua Igreja, com ela e por ela, a obra da nossa redenção.
1070. No Novo Testamento, a palavra «liturgia» é empregada para designar, não somente a celebração do culto divino mas também o anúncio do Evangelho (6) e a caridade em acto (7). Em todas estas situações, trata-se do serviço de Deus e dos homens. Na celebração litúrgica, a Igreja é serva, à imagem do seu Senhor, o único « Liturgo» (8), participando no seu sacerdócio (culto) profético (anúncio) e real (serviço da caridade):
«Com razão se considera a liturgia como o exercício da função sacerdotal de Jesus Cristo. Nela, mediante sinais sensíveis e no modo próprio de cada qual, significa-se e realiza-se a santificação dos homens e é exercido o culto público integral pelo corpo Místico de Jesus Cristo, isto é, pela cabeça e pelos membros. Portanto, qualquer celebração litúrgica, enquanto obra de Cristo Sacerdote e do seu corpo que é a Igreja, é acção sagrada por excelência e nenhuma outra acção da Igreja a iguala em eficácia com o mesmo título e no mesmo grau» (9).
A Liturgia como fonte de vida
1071. Obra de Cristo, a Liturgia é também uma acção da sua Igreja. Ela realiza e manifesta a Igreja como sinal visível da comunhão de Deus e dos homens por Cristo; empenha os fiéis na vida nova da comunidade, e implica uma participação «consciente, activa e frutuosa» de todos (10).
1072. «A liturgia não esgota toda a acção da Igreja» (11). Deve ser precedida pela evangelização, pela fé e pela conversão, e só então pode produzir os seus frutos na vida dos fiéis: a vida nova segundo o Espírito, o empenhamento na missão da Igreja e o serviço da sua unidade.
Oração e Liturgia
1073. A liturgia é também participação na oração de Cristo, dirigida ao Pai no Espírito Santo. Nela, toda a oração cristã encontra a sua fonte e o seu termo. Pela liturgia, o homem interior lança raízes e alicerça-se no «grande amor com que o Pai nos amou» (Ef 2, 4), em seu Filho bem-amado. É a mesma «maravilha de Deus» que é vivida e interiorizada por toda a oração, «em todo o tempo, no Espírito» (Ef 6, 18).
Catequese e Liturgia
1074. «A liturgia é simultaneamente o cume para o qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde dimana toda a sua força» (13). É, portanto, o lugar privilegiado da catequese do Povo de Deus. «A catequese está intrinsecamente ligada a toda a acção litúrgica e sacramental, pois é nos sacramentos, sobretudo na Eucaristia, que Jesus Cristo age em plenitude, em ordem à transformação dos homens» (14).
1075. A catequese litúrgica visa introduzir no mistério de Cristo (ela é «mistagogia»), partindo do visível para o invisível, do significante para o significado, dos «sacramentos» para os «mistérios». Tal catequese compete aos catecismos locais e regionais; o presente catecismo, que deseja colocar-se ao serviço de toda a Igreja na diversidade dos seus ritos e das suas culturas (15) apresentará o que é fundamental e comum a toda a Igreja a respeito da liturgia, enquanto mistério e enquanto celebração (Primeira Secção), e depois, dos sete sacramentos e sacramentais (Segunda Seção).
Sacrosanctum concilium (1963)
CONSTITUIÇÃO CONCILIAR
SACROSANCTUM CONCILIUM
SOBRE A SAGRADA LITURGIA
PROÉMIO
Fim do Concílio e sua relação com a reforma litúrgica
1. O sagrado Concílio propõe-se fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja. Julga, por isso, dever também interessar-se de modo particular pela reforma e incremento da Liturgia.
2. A Liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, «se opera o fruto da nossa Redenção» (1), contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultâneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na acção e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina, mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o visível ao invisível, a acção à contemplação, e o presente à cidade futura que buscamos (2). A Liturgia, ao mesmo tempo que edifica os que estão na Igreja em templo santo no Senhor, em morada de Deus no Espírito (3), até à medida da idade da plenitude de Cristo (4), robustece de modo admirável as suas energias para pregar Cristo e mostra a Igreja aos que estão fora, como sinal erguido entre as nações (5), para reunir à sua sombra os filhos de Deus dispersos (6), até que haja um só rebanho e um só pastor (7).
Aplicação aos diversos ritos
3. Entende, portanto, o sagrado Concílio dever recordar os princípios e determinar as normas práticas que se seguem, acerca do incremento e da reforma da Liturgia.
Entre estes princípios e normas, alguns podem e devem aplicar-se não só ao rito romano mas a todos os outros ritos, muito embora as normas práticas que se seguem devam entender-se referidas só ao rito romano, a não ser que se trate de coisas que, por sua própria natureza, digam respeito também aos outros ritos.
4. O sagrado Concílio, guarda fiel da tradição, declara que a santa mãe Igreja considera iguais em direito e honra todos os ritos legitimamente reconhecidos, quer que se mantenham e sejam por todos os meios promovidos, e deseja que, onde for necessário, sejam prudente e integralmente revistos no espírito da sã tradição e lhes seja dado novo vigor, de acordo com as circunstâncias e as necessidades do nosso tempo.
CAPÍTULO I
PRINCÍPIOS GERAIS EM ORDEM À REFORMA E INCREMENTO DA LITURGIA
I - NATUREZA DA SAGRADA LITURGIA E SUA IMPORTÂNCIA NA VIDA DA IGREJA
Jesus Cristo salvador do mundo
5. Deus, que «quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade» (I Tim. 2,4), «tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos aos nossos pais pelos profetas» (Hebr. 1,1), quando chegou a plenitude dos tempos, enviou o Seu Filho, Verbo feito carne, ungido pelo Espírito Santo, a evangelizar os pobres, curar os contritos de coração (8), como médico da carne e do espírito (9), mediador entre Deus e os homens (10). A sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento da nossa salvação. Por isso, em Cristo «se realizou plenamente a nossa reconciliação e se nos deu a plenitude do culto divino» (11).
Esta obra da redenção dos homens e da glorificação perfeita de Deus, prefigurada pelas suas grandes obras no povo da Antiga Aliança, realizou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão, em que «morrendo destruiu a nossa morte e ressurgindo restaurou a nossa vida» (12). Foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de toda a Igreja (13).
pelo sacrifício e pelos sacramentos
6. Assim como Cristo foi enviado pelo Pai, assim também Ele enviou os Apóstolos, cheios do Espírito Santo, não só para que, pregando o Evangelho a toda a criatura (14), anunciassem que o Filho de Deus, pela sua morte e ressurreição, nos libertara do poder de Satanás (15) e da morte e nos introduzira no Reino do Pai, mas também para que realizassem a obra de salvação que anunciavam, mediante o sacrifício e os sacramentos, à volta dos quais gira toda a vida litúrgica. Pelo Baptismo são os homens enxertados no mistério pascal de Cristo: mortos com Ele, sepultados com Ele, com Ele ressuscitados (16); recebem o espírito de adopção filial que «nos faz clamar: Abba, Pai» (Rom. 8,15), transformando-se assim nos verdadeiros adoradores que o Pai procura (17). E sempre que comem a Ceia do Senhor, anunciam igualmente a sua morte até Ele vir (18). Por isso foram baptizados no próprio dia de Pentecostes, em que a Igreja se manifestou ao mundo, os que receberam a palavra de Pedro. E «mantinham-se fiéis à doutrina dos Apóstolos, à participação na fracção do pão e nas orações... louvando a Deus e sendo bem vistos pelo povo» (Act. 2, 41-47). Desde então, nunca mais a Igreja deixou de se reunir em assembleia para celebrar o mistério pascal: lendo «o que se referia a Ele em todas as Escrituras» (Lc. 24,27), celebrando a Eucaristia, na qual «se torna presente o triunfo e a vitória da sua morte» (19), e dando graças «a Deus pelo Seu dom inefável (2 Cor. 9,15) em Cristo Jesus, «para louvor da sua glória» (Ef. 1,12), pela virtude do Espírito Santo.
presença de Cristo na Liturgia
7. Para realizar tão grande obra, Cristo está sempre presente na sua igreja, especialmente nas acções litúrgicas. Está presente no sacrifício da Missa, quer na pessoa do ministro - «O que se oferece agora pelo ministério sacerdotal é o mesmo que se ofereceu na Cruz» (20) -quer e sobretudo sob as espécies eucarísticas. Está presente com o seu dinamismo nos Sacramentos, de modo que, quando alguém baptiza, é o próprio Cristo que baptiza (21). Está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: «Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt. 18,20).
Em tão grande obra, que permite que Deus seja perfeitamente glorificado e que os homens se santifiquem, Cristo associa sempre a si a Igreja, sua esposa muito amada, a qual invoca o seu Senhor e por meio dele rende culto ao Eterno Pai.
Com razão se considera a Liturgia como o exercício da função sacerdotal de Cristo. Nela, os sinais sensíveis significam e, cada um à sua maneira, realizam a santificação dos homens; nela, o Corpo Místico de Jesus Cristo - cabeça e membros - presta a Deus o culto público integral.
Portanto, qualquer celebração litúrgica é, por ser obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja, acção sagrada por excelência, cuja eficácia, com o mesmo título e no mesmo grau, não é igualada por nenhuma outra acção da Igreja.
A Liturgia terrena, antecipação da Liturgia celeste
8. Pela Liturgia da terra participamos, saboreando-a já, na Liturgia celeste celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual, como peregrinos nos dirigimos e onde Cristo está sentado à direita de Deus, ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo (22); por meio dela cantamos ao Senhor um hino de glória com toda a milícia do exército celestial, esperamos ter parte e comunhão com os Santos cuja memória veneramos, e aguardamos o Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, até Ele aparecer como nossa vida e nós aparecermos com Ele na glória (23).
Lugar da Liturgia na vida da Igreja
9. A sagrada Liturgia não esgota toda a acção da Igreja, porque os homens, antes de poderem participar na Liturgia, precisam de ouvir o apelo à fé e à conversão: «Como hão-de invocar aquele em quem não creram? Ou como hão-de crer sem o terem ouvido? Como poderão ouvir se não houver quem pregue? E como se há-de pregar se não houver quem seja enviado?» (Rom. 10, 14-15).
É por este motivo que a Igreja anuncia a mensagem de salvação aos que ainda não têm fé, para que todos os homens venham a conhecer o único Deus verdadeiro e o Seu enviado, Jesus Cristo, e se convertam dos seus caminhos pela penitência (24). Aos que crêem, tem o dever de pregar constantemente a fé e a penitência, de dispó-los aos Sacramentos, de ensiná-los a guardar tudo o que Cristo mandou (25), de estimulá-los a tudo o que seja obra de caridade, de piedade e apostolado, onde os cristãos possam mostrar que são a luz do mundo, embora não sejam deste mundo, e que glorificam o Pai diante dos homens.
10. Contudo, a Liturgia é simultâneamente a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se tornaram filhos de Deus pela fé e pelo Baptismo se reunam em assembleia para louvar a Deus no meio da Igreja, participem no Sacrifício e comam a Ceia do Senhor.
A Liturgia, por sua vez, impele os fiéis, saciados pelos «mistérios pascais», a viverem «unidos no amor» (26); pede «que sejam fiéis na vida a quanto receberam pela fé» (27); e pela renovação da aliança do Senhor com os homens na Eucaristia, e aquece os fiéis na caridade urgente de Cristo. Da Liturgia, pois, em especial da Eucaristia, corre sobre nós, como de sua fonte, a graça, e por meio dela conseguem os homens com total eficácia a santificação em Cristo e a glorificação de Deus, a que se ordenam, como a seu fim, todas as outras obras da Igreja.
A participação dos fiéis
11. Para assegurar esta eficácia plena, é necessário, porém, que os fiéis celebrem a Liturgia com rectidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus, não aconteça de a receberem em vão (28). Por conseguinte, devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na acção litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, activa e frutuosamente.
Vida espiritual extra-litúrgica
12. A participação na sagrada Liturgia não esgota, todavia, a vida espiritual. O cristão, chamado a rezar em comum, deve entrar também no seu quarto para rezar a sós (29) ao Pai, segundo ensina o Apóstolo, deve rezar sem cessar (30). E o mesmo Apóstolo nos ensina a trazer sempre no nosso corpo os sofrimentos da morte de Jesus, para que a sua vida se revele na nossa carne mortal (31). É essa a razão por que no Sacrifício da Missa pedimos ao Senhor que, tendo aceite a oblação da vítima espiritual, faça de nós uma «oferta eterna» (32) a si consagrada.
13. São muito de recomendar os exercícios piedosos do povo cristão, desde que estejam em conformidade com as leis e as normas da Igreja, e especialmente quando se fazem por mandato da Sé Apostólica.
Gozam também de especial dignidade as práticas religiosas das Igrejas particulares, celebradas por mandato dos Bispos e segundo os costumes ou os livros legitimamente aprovados.
Importa, porém, ordenar essas práticas tendo em conta os tempos litúrgicos, de modo que se harmonizem com a sagrada Liturgia, de certo modo derivem dela, e a ela, que por sua natureza é muito superior, conduzam o povo.
II- EDUCAÇÃO LITÚRGICA E PARTICIPAÇÃO ACTIVA
Normas gerais
14. É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e activa participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da Liturgia exige e que é, por força do Baptismo, um direito e um dever do povo cristão, «raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido» (1 Ped. 2,9; cfr. 2, 4-5).
Na reforma e incremento da sagrada Liturgia, deve dar-se a maior atenção a esta plena e activa participação de todo o povo porque ela é a primeira e necessária fonte onde os fiéis hão-de beber o espírito genuìnamente cristão. Esta é a razão que deve levar os pastores de almas a procurarem-na com o máximo empenho, através da devida educação.
Mas, porque não há qualquer esperança de que tal aconteça, se antes os pastores de almas se não imbuírem plenamente. do espírito e da virtude da Liturgia e não se fizerem mestres nela, é absolutamente necessário que se providencie em primeiro lugar à formação litúrgica do clero. Por tal razões este sagrado Concílio determinou quanto segue:
Formação dos professores de Liturgia
15. Os professores que se destinam a ensinar a sagrada Liturgia nos seminários, nas casas de estudos dos religiosos e nas faculdades de teologia, devem receber a formação conveniente em ordem ao seu múnus em institutos para isso especialmente destinados.
O ensino da Liturgia nos Seminários
16. A sagrada Liturgia deve ser tida, nos seminários e casas de estudo dos religiosos, como uma das disciplinas necessárias e mais importantes, nas faculdades de teologia como disciplina principal, e ensinar-se nos seus aspectos quer teológico e histórico, quer espiritual, pastoral e jurídico.
Mais: procurem os professores das outras disciplinas, sobretudo de teologia dogmática, Sagrada Escritura, teologia espiritual e pastoral, fazer ressaltar, a partir das exigências intrínsecas de cada disciplina, o mistério de Cristo e a história da salvação, para que se veja claramente a sua conexão com a Liturgia e a unidade da formação sacerdotal.
A formação litúrgica dos seminaristas, sacerdotes e fiéis
17. Nos seminários e casas religiosas, adquiram os clérigos uma formação litúrgica da vida espiritual, mediante uma conveniente iniciação que lhes permita penetrar no sentido dos ritos sagrados e participar perfeitamente neles, mediante a celebração dos sagrados mistérios, como também mediante outros exercícios de piedade penetrados do espírito da sagrada Liturgia. Aprendam também a observar as leis litúrgicas, de modo que nos seminários e institutos religiosos a vida seja totalmente impregnada de espírito litúrgico.
18. Ajudem-se os sacerdotes, quer seculares quer religiosos, que já trabalham na vinha do Senhor, por todos os meios oportunos, a penetrarem cada vez melhor o sentido do que fazem nas funções sagradas, a viverem a vida litúrgica, e a partilharem-na com os fiéis que lhes estão confiados.
19. Procurem os pastores de almas fomentar com persistência e zelo a educação litúrgica e a participação activa dos fiéis, tanto interna como externa, segundo a sua idade, condição, género de vida e grau de cultura religiosa, na convicção de que estão cumprindo um dos mais importantes múnus do dispensador fiel dos mistérios de Deus. Neste ponto guiem o rebanho não só com palavras mas também com o exemplo.
O uso dos meios de comunicação
20. Façam-se com discrição e dignidade, e sob a direcção de pessoa competente, para tal designada pelos Bispos, as transmissões radiofónicas ou televisivas das acções sagradas, especialmente da Missa.
III - REFORMA DA SAGRADA LITURGIA
Razão e sentido da reforma
21. A santa mãe Igreja, para permitir ao povo cristão um acesso mais seguro à abundância de graça que a Liturgia contém, deseja fazer uma acurada reforma geral da mesma Liturgia. Na verdade, a Liturgia compõe-se duma parte imutável, porque de instituição divina, e de partes susceptíveis de modificação, as quais podem e devem variar no decorrer do tempo, se porventura se tiverem introduzido nelas elementos que não correspondam tão bem à natureza íntima da Liturgia ou se tenham tornado menos apropriados.
Nesta reforma, proceda-se quanto aos textos e ritos, de tal modo que eles exprimam com mais clareza as coisas santas que significam, e, quanto possível, o povo cristão possa mais fàcilmente apreender-lhes o sentido e participar neles por meio de uma celebração plena, activa e comunitária.
Para tal fim, o sagrado Concílio estabeleceu estas normas gerais:
A. Normas gerais
A autoridade competente
22. § 1. Regular a sagrada Liturgia compete ùnicamente à autoridade da Igreja, a qual reside na Sé Apostólica e, segundo as normas do direito, no Bispo.
§ 2. Em virtude do poder concedido pelo direito, pertence também às competentes assembleias episcopais territoriais de vário género legitimamente constituídas regular, dentro dos limites estabelecidos, a Liturgia.
§ 3. Por isso, ninguém mais, mesmo que seja sacerdote, ouse, por sua iniciativa, acrescentar, suprimir ou mudar seja o que for em matéria litúrgica.
Trabalho prudente
23. Para conservar a sã tradição e abrir ao mesmo tempo o caminho a um progresso legítimo, faça-se uma acurada investigação teológica, histórica e pastoral acerca de cada uma das partes da Liturgia que devem ser revistas. Tenham-se ainda em consideração às leis gerais da estrutura e do espírito da Liturgia, a experiência adquirida nas recentes reformas litúrgicas e nos indultos aqui e além concedidos. Finalmente, não se introduzam inovações, a não ser que uma utilidade autêntica e certa da Igreja o exija, e com a preocupação de que as novas formas como que surjam a partir das já existentes.
Evitem-se também, na medida do possível, diferenças notáveis de ritos entre regiões confinantes.
O lugar da Sagrada Escritura
24. É enorme a importância da Sagrada Escritura na celebração da Liturgia. Porque é a ela que se vão buscar as leituras que se explicam na homilia e os salmos para cantar; com o seu espírito e da sua inspiração nasceram as preces, as orações e os hinos litúrgicos; dela tiram a sua capacidade de significação as acções e os sinais. Para promover a reforma, o progresso e adaptação da sagrada Liturgia, é necessário, por conseguinte, desenvolver aquele amor suave e vivo da Sagrada Escritura de que dá testemunho a venerável tradição dos ritos tanto orientais como ocidentais.
A revisão dos livros
25. Faça-se o mais depressa possível a revisão dos livros litúrgicos, utilizando o trabalho de pessoas competentes e consultando Bispos de diversos países do mundo.
B. Normas que derivam da natureza hierárquica e comunitária da Liturgia
A liturgia, acção da Igreja comunitária
26. As acções litúrgicas não são acções privadas, mas celebrações da Igreja, que é «sacramento de unidade», isto é, Povo santo reunido e ordenado sob a direcção dos Bispos (33).
Por isso, tais acções pertencem a todo o Corpo da Igreja, manifestam-no, atingindo, porém, cada um dos membros de modo diverso, segundo a variedade de estados, funções e participação actual.
27. Sempre que os ritos comportam, segundo a natureza particular de cada um, uma celebração comunitária, caracterizada pela presença e activa participação dos fiéis, inculque-se que esta deve preferir-se, na medida do possível, à celebração individual e como que privada.
Isto é válido sobretudo para a celebração da Missa e para a administração dos sacramentos, ressalvando-se sempre a natureza pública e social de toda a Missa.
28. Nas celebrações litúrgicas, limite-se cada um, ministro ou simples fiel, exercendo o seu ofício, a fazer tudo e só o que é de sua competência, segundo a natureza do rito e as leis litúrgicas.
Os ministros inferiores
29. Os que servem ao altar, os leitores, comentadores e elementos do grupo coral desempenham também um autêntico ministério litúrgico. Exerçam, pois, o seu múnus com piedade autêntica e do modo que convêm a tão grande ministério e que o Povo de Deus tem o direito de exigir.
É, pois, necessário imbuí-los de espírito litúrgico, cada um a seu modo, e formá-los para executarem perfeita e ordenadamente a parte que lhes compete.
A participação do povo
30. Para fomentar a participação activa, promovam-se as aclamações dos fiéis, as respostas, a salmodia, as antífonas, os cânticos, bem como as acções, gestos e atitudes corporais. Não deve deixar de observar-se, a seu tempo, um silêncio sagrado.
31. Na revisão dos livros litúrgicas, procure-se que as rubricas tenham em conta a parte que compete aos fiéis.
A não-acepção das pessoas
32. Na Liturgia, à excepção da distinção que deriva da função litúrgica e da sagrada Ordem e das honras devidas às autoridades civis segundo as leis litúrgicas, não deve fazer-se qualquer acepção de pessoas ou classes sociais, quer nas cerimónias, quer nas solenidades externas.
C. Normas que derivam da natureza didáctica e pastoral da Liturgia
O valor didático da Liturgia
33. Embora a sagrada Liturgia seja principalmente culto da majestade divina, é também abundante fonte de instrução para o povo fiel (34). Efectivamente, na Liturgia Deus fala ao Seu povo, e Cristo continua a anunciar o Evangelho. Por seu lado, o povo responde a Deus com o canto e a oração.
Mais: as orações dirigidas a Deus pelo sacerdote que preside, em representação de Cristo, à assembleia, são ditas em nome de todo o Povo santo e de todos os que estão presentes. Os próprios sinais visíveis que a sagrada Liturgia utiliza para simbolizar as realidades invisíveis foram escolhidos por Cristo ou pela Igreja.
Por isso, não é só quando se faz a leitura «do que foi escrito para nossa instrução» (Rom. 15,4), mas também quando a Igreja reza, canta ou age, que a fé dos presentes é alimentada e os espíritos se elevam a Deus, para se lhe submeterem de modo racional e receberem com mais abundância a sua graça.
Por isso, na reforma da Liturgia, observem-se as seguintes normas gerais:
Aplicação aos diversos ritos
34. Brilhem os ritos pela sua nobre simplicidade, sejam claros na brevidade e evitem repetições inúteis; devem adaptar-se à capacidade de compreensão dos fiéis, e não precisar, em geral, de muitas explicações.
A conexão entre a palavra e o rito
35. Para se poder ver claramente que na Liturgia o rito e a palavra estão ìntimamente unidos:
1) Seja mais abundante, variada e bem adaptada a leitura da Sagrada Escritura nas celebrações litúrgicas.
2) Indiquem as rubricas o momento mais apto para a pregação, que é parte da acção litúrgica, quando o rito a comporta. O ministério da palavra deve ser exercido com muita fidelidade e no modo devido. A pregação deve ir beber à Sagrada Escritura e à Liturgia, e ser como que o anúncio das maravilhas de Deus na história da salvação, ou seja, no mistério de Cristo, o qual está sempre presente e operante em nós, sobretudo nas celebrações litúrgicas.
3) Procure-se também inculcar por todos os modos uma catequese mais directamente litúrgica, e prevejam-se nos próprios ritos, quando necessário, breves admonições, feitas só nos momentos mais oportunos, pelo sacerdote ou outro ministro competente, com as palavras prescritas ou semelhantes.
4) Promova-se a celebração da Palavra de Deus nas vigílias das festas mais solenes, em alguns dias feriais do Advento e da Quaresma e nos domingos e dias de festa, especialmente onde não houver sacerdote; neste caso, será um diácono, ou outra pessoa delegada pelo Bispo, a dirigir a celebração.
A língua litúrgica: traduções
36. § 1. Deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos, salvo o direito particular.
§ 2. Dado, porém, que não raramente o uso da língua vulgar pode revestir-se de grande utilidade para o povo, quer na administração dos sacramentos, quer em outras partes da Liturgia, poderá conceder-se à língua vernácula lugar mais amplo, especialmente nas leituras e admonições, em algumas orações e cantos, segundo as normas estabelecidas para cada caso nos capítulos seguintes.
§ 3. Observando estas normas, pertence à competente autoridade eclesiástica territorial, a que se refere o artigo 22 § 2, consultados, se for o caso, os Bispos das regiões limítrofes da mesma língua, decidir acerca do uso e extensão da língua vernácula. Tais decisões deverão ser aprovadas ou confirmadas pela Sé Apostólica.
§ 4. A tradução do texto latino em língua vulgar para uso na Liturgia, deve ser aprovada pela autoridade eclesiástica territorial competente, acima mencionada.
D. Normas para a adaptação da Liturgia à índole e tradições dos povos
A adaptação da Igreja
37. Não é desejo da Igreja impor, nem mesmo na Liturgia, a não ser quando está em causa a fé e o bem de toda a comunidade, uma forma única e rígida, mas respeitar e procurar desenvolver as qualidades e dotes de espírito das várias raças e povos. A Igreja considera com benevolência tudo o que nos seus costumes não está indissolùvelmente ligado a superstições e erros, e, quando é possível, mantem-no inalterável, por vezes chega a aceitá-lo na Liturgia, se se harmoniza com o verdadeiro e autêntico espírito litúrgico.
Aplicação à Liturgia
38. Mantendo-se substancialmente a unidade do rito romano, dê-se possibilidade às legítimas diversidades e adaptações aos vários grupos étnicos, regiões e povos, sobretudo nas Missões, de se afirmarem, até na revisão dos livros litúrgicos; tenha-se isto oportunamente diante dos olhos ao estruturar os ritos e ao preparar as rubricas.
A autoridade competente
39. Será da atribuição da competente autoridade eclesiástica territorial, de que fala o art. 22 § 2, determinar as várias adaptações a fazer, especialmente no que se refere à administração dos sacramentos, aos sacramentais, às procissões, à língua litúrgica, à música sacra e às artes, dentro dos limites estabelecidos nas edições típicas dos livros litúrgicos e sempre segundo as normas fundamentais desta Constituição.
Casos especiais
40. Mas como em alguns lugares e circunstâncias é urgente fazer uma adaptação mais profunda da Liturgia, que é, por isso, mais difícil:
1) Deve a competente autoridade eclesiástica territorial, a que se refere o art. 22 § 2, considerar com muita prudência e atenção o que, neste aspecto, das tradições e génio de cada povo, poderá oportunamente ser aceite na Liturgia. Proponham-se à Sé Apostólica as adaptações julgadas úteis ou necessárias, para serem introduzidas com o seu consentimento.
2) Para se fazer a adaptação com a devida cautela, a Sé Apostólica poderá dar, se for necessário, à mesma autoridade eclesiástica territorial a faculdade de permitir e dirigir as experiências prévias que forem precisas, em alguns grupos que sejam aptos para isso e por um tempo determinado.
3) Como as leis litúrgicas criam em geral dificuldades especiais quanto à adaptação, sobretudo nas Missões, haja, para a sua elaboração, pessoas competentes na matéria de que se trata.
IV - PROMOÇÃO DA VIDA LITÚRGICA NA DIOCESE E NA PARÓQUIA
O Bispo, centro de unidade de vida na diocese
41. O Bispo deve ser considerado como o sumo-sacerdote do seu rebanho, de quem deriva e depende, de algum modo, a vida de seus fiéis em Cristo.
Por isso, todos devem dar a maior importância à vida litúrgica da diocese que gravita em redor do Bispo, sobretudo na igreja catedral, convencidos de que a principal manifestação da Igreja se faz numa participação perfeita e activa de todo o Povo santo de Deus na mesma celebração litúrgica, especialmente na mesma Eucaristia, numa única oração, ao redor do único altar a que preside o Bispo rodeado pelo presbitério e pelos ministros (35).
O pároco seu representante
42. Impossibilitado como está o Bispo de presidir pessoalmente sempre e em toda a diocese a todo o seu rebanho, vê-se na necessidade de reunir os fiéis em grupos vários, entre os quais têm lugar proeminente as paróquias, constituídas localmente sob a presidência dum pastor que faz as vezes do Bispo. As paróquias representam, de algum modo, a Igreja visível estabelecida em todo o mundo.
Por consequência, deve cultivar-se no espírito e no modo de agir dos fiéis e dos sacerdotes a vida litúrgica da paróquia e a sua relação com ó Bispo, e trabalhar para que floresça o sentido da comunidade paroquial, especialmente na celebração comunitária da missa dominical.
V - INCREMENTO DA ACÇÃO PASTORAL LITÚRGICA
Sinal providencial
43. O interesse pelo incremento e renovação da Liturgia é justamente considerado como um sinal dos desígnios providenciais de Deus sobre o nosso tempo, como uma passagem do Espírito Santo pela sua Igreja, e imprime uma nota distintiva à própria vida da Igreja, a todo o modo religioso de sentir e de agir do nosso tempo.
Em ordem a desenvolver cada vez mais na Igreja esta acção pastoral litúrgica, o sagrado Concílio determina:
Comissões de Liturgia, música e arte sacra
44. Convém que a autoridade eclesiástica territorial competente, a que se refere o art. 22 § 2, crie uma Comissão litúrgica, que deve servir-se da ajuda de especialistas em liturgia, música, arte sacra e pastoral. A Comissão deverá contar, se possível, com o auxílio dum Instituto de Liturgia Pastoral, de cujos membros não se excluirão leigos particularmente competentes, se for necessário. Será atribuição da dita Comissão dirigir, guiada pela autoridade eclesiástica territorial, a pastoral litúrgica no território da sua competência, promover os estudos e as experiências necessárias sempre que se trate de adaptações a propor à Santa Sé.
45. Crie-se igualmente em cada diocese a Comissão litúrgica, em ordem a promover, sob a direcção do Bispo, a pastoral litúrgica. Poderá suceder que seja oportuno que várias dioceses formem uma só Comissão para promover em conjunto o apostolado litúrgico.
46. Criem-se em cada diocese, se possível, além da Comissão litúrgica, Comissões de música sacra e de arte sacra.
É necessário que estas três Comissões trabalhem em conjunto, e não raro poderá ser oportuno que formem uma só Comissão.
CAPÍTULO II
O SAGRADO MISTÉRIO DA EUCARISTIA
Instituição e natureza
47. O nosso Salvador instituiu na última Ceia, na noite em que foi entregue, o Sacrifício eucarístico do seu Corpo e do seu Sangue para perpetuar pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar, o Sacrifício da cruz, confiando à Igreja, sua esposa amada, o memorial da sua morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade (36), banquete pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é concedido o penhor da glória futura (37).
A participação dos fiéis
48. É por isso que a Igreja procura, solícita e cuidadosa, que os cristãos não entrem neste mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na acção sagrada, consciente, activa e piedosamente, por meio duma boa compreensão dos ritos e orações; sejam instruídos pela palavra de Deus; alimentem-se à mesa do Corpo do Senhor; dêem graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que, dia após dia, por Cristo mediador (38), progridam na unidade com Deus e entre si, para que finalmente Deus seja tudo em todos.
Revisão dos textos com mais leituras bíblicas
49. Para que o Sacrifício da missa alcance plena eficácia pastoral, mesmo quanto ao seu rito, o sagrado Concílio, tendo em atenção as missas que se celebram com assistência do povo, sobretudo aos domingos e nas festas de preceito, determina o seguinte:
50. O Ordinário da missa deve ser revisto, de modo que se manifeste mais claramente a estrutura de cada uma das suas partes bem como a sua mútua conexão, para facilitar uma participação piedosa e activa dos fiéis. Que os ritos se simplifiquem, bem respeitados na sua estrutura essencial; sejam omitidos todos os que, com o andar do tempo, se duplicaram ou menos ùtilmente se acrescentaram; restaurem-se, porém, se parecer oportuno ou necessário e segundo a antiga tradição dos Santos Padres, alguns que desapareceram com o tempo.
51. Prepare-se para os fiéis, com maior abundância, a mesa da Palavra de Deus: abram-se mais largamente os tesouros da Bíblia, de modo que, dentro de um período de tempo estabelecido, sejam lidas ao povo as partes mais importantes da Sagrada Escritura.
Homilia e oração dos fiéis
52. A homilia, que é a exposição dos mistérios da fé e das normas da vida cristã no decurso do ano litúrgico e a partir do texto sagrado, é muito para recomendar, como parte da própria Liturgia; não deve omitir-se, sem motivo grave, nas missas dos domingos e festas de preceito, concorridas pelo povo.
53. Deve restaurar-se, especialmente nos domingos e festas de preceito, a «oração comum» ou «oração dos fiéis», recitada após o Evangelho e a homilia, para que, com a participação do povo, se façam preces pela santa Igreja, pelos que nos governam, por aqueles a quem a necessidade oprime, por todos os homens e pela salvação de todo o mundo (39).
Língua
54. A língua vernácula pode dar-se, nas missas celebradas com o povo, um lugar conveniente, sobretudo nas leituras e na «oração comum» e, segundo as diversas circunstâncias dos lugares, nas partes que pertencem ao povo, conforme o estabelecido no art. 36 desta Constituição.
Tomem-se providências para que os fiéis possam rezar ou cantar, mesmo em latim, as partes do Ordinário da missa que lhes competem.
Se algures parecer oportuno um uso mais amplo do vernáculo na missa, observe-se o que fica determinado no art. 40 desta Constituição.
Comunhão dos fiéis
55. Recomenda-se vivamente um modo mais perfeito de participação na missa, que consiste em que os fiéis, depois da comunhão do sacerdote, recebam do mesmo Sacrifício, o Corpo do Senhor.
A comunhão sob as duas espécies, firmes os princípios dogmáticos estabelecidos pelo Concílio de Trento (40), pode ser permitida, quer aos clérigos e religiosos, quer aos leigos, nos casos a determinar pela Santa Sé e ao arbítrio do Bispo, como seria o caso dos recém-ordenados na missa da ordenação, dos professos na missa da sua profissão religiosa, dos neófitos na missa pós-baptismal.
Unidade da liturgia da palavra e da liturgia eucarística
56. Estão tão intimamente ligadas entre si as duas partes de que se compõe, de algum modo, a missa - a liturgia da Palavra e a liturgia eucarística - que formam um só acto de culto. Por isso, o sagrado Concilio exorta com veemência os pastores de almas a instruirem bem os fiéis, na catequese, sobre o dever de ouvir a missa inteira, especialmente nos domingos e festas de preceito.
Concelebração e seu rito
57. § 1. A concelebração, que manifesta bem a unidade do sacerdócio, tem sido prática constante até ao dia de hoje, quer no Oriente quer no Ocidente. Por tal motivo, aprouve ao Concílio estender a faculdade de concelebrar aos seguintes casos:
1°. a) na quinta-feira da Ceia do Senhor, tanto na missa crismal como na missa vespertina;
b) nas missas dos Concílios, Conferências episcopais e Sínodos;
c) na missa da bênção dum Abade.
2°. Além disso, com licença do Ordinário, a quem compete julgar da oportunidade da concelebração:
a) na missa conventual e na missa principal das igrejas, sempre que a utilidade dos fiéis não exige a celebração individual de todos os sacerdotes presentes;
b) nas missas celebradas por ocasião de qualquer espécie de reuniões de sacerdotes, tanto seculares como religiosos.
§ 2. 1.° É da atribuição do Bispo regular a disciplina da concelebração na diocese.
2°. Ressalva-se, contudo, que se mantem sempre a faculdade de qualquer sacerdote celebrar individualmente, mas não simultâneamente na mesma igreja, nem na quinta-feira da Ceia do Senhor.
58. Deve compor-se o novo rito da concelebração a inserir no Pontifical e no Missal romano.
CAPÍTULO III
OS OUTROS SACRAMENTOS E OS SACRAMENTAIS
Natureza dos sacramentos
59. Os sacramentos estão ordenados à santificação dos homens, à edificação do Corpo de Cristo e, enfim, a prestar culto a Deus; como sinais, têm também a função de instruir. Não só supõem a fé, mas também a alimentam, fortificam e exprimem por meio de palavras e coisas, razão pela qual se chamam sacramentos da fé. Conferem a graça, a cuja frutuosa recepção a celebração dos mesmos òptimamente dispõe os fiéis, bem como a honrar a Deus do modo devido e a praticar a caridade.
Por este motivo, interessa muito que os fiéis compreendam facilmente os sinais sacramentais e recebam com a maior frequência possível os sacramentos que foram instituídos para alimentar a vida cristã.
Natureza dos sacramentais
60. A santa mãe Igreja instituiu também os sacramentais. Estes são, à imitação dos sacramentos, sinais sagrados que significam realidades, sobretudo de ordem espiritual, e se obtêm pela oração da Igreja. Por meio deles dispõem-se os homens para a recepção do principal efeito dos sacramentos e santificam-se as várias circunstâncias da vida.
61. Portanto, a liturgia dos sacramentos e sacramentais faz com que a graça divina, que deriva do Mistério pascal da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, onde vão buscar a sua eficácia todos os sacramentos e sacramentais, santifique todos os passos da vida dos fiéis que os recebem com a devida disposição. A ela se deve também que não deixe de poder ser orientado para a santificação dos homens e para o louvor de Deus o bom uso das coisas materiais.
Necessidade de revisão
62. Tendo-se introduzido, com o decorrer do tempo, no ritual dos sacramentos e sacramentais, elementos que tornam hoje menos claros a sua natureza e fim, e devendo por isso fazer-se algumas adaptações às necessidades do nosso tempo, o sagrado Concílio decretou o seguinte em ordem à sua revisão.
A língua
63. Pode ser frequentemente muito útil para o povo o uso do vernáculo na administração dos sacramentos e sacramentais. Dê-se-lhe, por isso, maior importância segundo estas normas:
a) Na administração dós sacramentos e sacramentais pode usar-se o vernáculo, segundo o estatuído no art. 36;
b) A competente autoridade eclesiástica territorial, a que se refere o art. 22 § 2." desta Constituição, prepare o mais depressa possível, com base na nova edição do Ritual romano, os Rituais particulares, adaptados às necessidades de cada uma das regiões, mesmo quanto à língua. Procure-se que sejam postos em vigor nas respectivas regiões depois de aprovados pela Sé Apostólica. Na composição destes Rituais ou especiais «Colecções de ritos» não devem omitir-se as instruções que o Ritual romano coloca no início de cada rito, quer sejam de carácter pastoral, quer digam respeito às rubricas, quer tenham especial importância comunitária.
Restauração do catecumenado
64. Restaure-se o catecumenado dos adultos, com vários graus, a praticar segundo o critério do Ordinário do lugar, de modo que se possa dar a conveniente instrução a que se destina o catecumenado e santificar este tempo por meio de ritos sagrados que se hão-de celebrar em ocasiões sucessivas.
65. Seja lícito admitir nas terras de Missão, ao lado dos elementos próprios da tradição cristã, os elementos de iniciação usados por cada um desses povos, na medida em que puderem integrar-se no rito cristão, segundo os art.s 37-40 desta Constituição.
Rito do Baptismo de adultos
66. Revejam-se tanto o rito simples do Baptismo de adultos, como o mais solene, tendo em conta a restauração do catecumenado, e insira-se no Missal romano a missa própria «para a administração do Baptismo».
Rito do Baptismo de crianças
67. Reveja-se o rito do Baptismo de crianças e adapte-se à sua real condição. Dê-se maior realce, no rito, à parte e aos deveres dos pais e padrinhos.
Adaptações do rito do Baptismo
68. Prevejam-se adaptações no rito do Baptismo, a usar, segundo o critério do Ordinário do lugar; para quando houver grande número de neófitos. Componha-se também um «Rito mais breve» que os catequistas, sobretudo em terras de Missão, e em perigo de morte qualquer fiel, possam utilizar na ausência de um sacerdote ou diácono.
Rito para suprir as cerimónias omitidas no Baptismo
69. Em vez do «Rito para suprir as cerimónias omitidas sobre uma criança já baptizada», componha-se um novo em que se exprima de modo mais claro e conveniente que uma criança, baptizada com o rito breve, já foi recebida na Igreja.
Prepare-se também um novo rito que exprima que são acolhidos na comunhão da Igreja os vàlidamente baptizados que se converteram à Religião católica.
Bênção da água baptismal
Fora do tempo pascal, pode benzer-se a água baptismal no próprio rito do baptismo e com uma fórmula especial mais breve.
Rito da Confirmação
71. Para fazer ressaltar a íntima união do sacramento da Confirmação com toda a iniciação cristã, reveja-se o rito deste sacramento; pela mesma razão, é muito conveniente, antes de o receber, fazer a renovação das promessas do Baptismo.
A Confirmação, se parecer oportuno, pode ser conferida durante a missa; prepare-se, entretanto, em ordem à celebração do rito fora da missa, uma fórmula que lhe possa servir de introdução.
Rito da Penitência
72. Revejam-se o rito e as fórmulas da Penitência de modo que exprimam com mais clareza a natureza e o efeito do sacramento.
A Unção dos enfermos
73. A «Extrema-Unção», que também pode, e melhor, ser chamada «Unção dos enfermos», não é sacramento só dos que estão no fim da vida. É já certamente tempo oportuno para a receber quando o fiel começa, por doença ou por velhice, a estar em perigo de morte.
74. Além dos ritos distintos da Unção dos enfermos e do Viático, componha-se um «Rito contínuo» em que a Unção se administre ao doente depois da confissão e antes da recepção do Viático.
75. O número das unções deve regular-se segundo a oportunidade. Revejam-se as orações do rito da Unção dos enfermos, de modo que correspondam às diversas condições dos que recebem este sacramento.
Revisão dos ritos da Ordem
76. Faça-se a revisão do texto e das cerimónias do rito das Ordenações. As alocuções do Bispo, no início da ordenação ou sagração, podem ser em vernáculo.
Na sagração episcopal, todos os Bispos presentes podem fazer a imposição das mãos.
Rito do Matrimónio
77. A fim de indicar mais claramente a graça do sacramento e inculcar os deveres dos cônjuges, reveja-se e enriqueça-se o rito do Matrimónio que vem no Ritual romano.
«É desejo veemente do sagrado Concílio que as regiões, onde na celebração do Matrimónio se usam outras louváveis tradições e cerimónias, as conservem» (41).
Concede-se à competente autoridade eclesiástica territorial, a que se refere o art. 22 § 2 desta Constituição, a faculdade de preparar um rito próprio de acordo com o uso dos vários lugares e povos, devendo, porém, o sacerdote que assiste pedir e receber o consentimento dos nubentes.
78. Celebre-se usualmente o Matrimónio dentro da missa, depois da leitura do Evangelho e da homilia e antes da «Oração dos fiéis». A oração pela esposa, devidamente corrigida a fim de inculcar que o dever de fidelidade é mútuo, pode dizer-se em vernáculo.
Se o Matrimónio não for celebrado dentro da missa, leiam-se no começo do rito a epístola e o evangelho da «Missa dos esposos» e nunca se deixe de dar a bênção nupcial.
Revisão dos Sacramentais
79. Faça-se uma revisão dos sacramentos, tendo presente o princípio fundamental de uma participação consciente, activa e fácil dos fiéis, bem como as necessidades do nosso tempo. Podem acrescentar-se nos Rituais, a rever segundo o disposto no art. 63, novos sacramentais conforme as necessidades o pedirem.
Limitem-se a um pequeno número, e só em favor dos Bispos ou Ordinários, as bênçãos reservadas.
Providencie-se de modo que alguns sacramentais, pelo menos em circunstâncias especiais e a juízo do Ordinário, possam ser administrados por leigos dotados das qualidades requeridas.
Rito da consagração das Virgens
80. Reveja-se o rito da consagração das Virgens, que vem no Pontifical romano.
Componha-se também um rito de profissão religiosa e de renovação de votos, a utilizar, salvo direito particular, por aqueles que fazem a profissão ou renovam os votos dentro da Missa, o qual contribua para maior unidade, sobriedade e dignidade. Será louvável fazer a profissão religiosa dentro da Missa.
Rito das exéquias
81. As exéquias devem exprimir melhor o sentido pascal da morte cristã. Adapte-se mais o rito às condições e tradições das várias regiões, mesmo na cor litúrgica.
82. Faça-se a revisão do rito de sepultura das crianças e dê-se-lhe missa própria.
CAPÍTULO IV
O OFÍCIO DIVINO
Sua natureza: oração da Igreja em nome de Cristo
83. Jesus Cristo, sumo sacerdote da nova e eterna Aliança, ao assumir a natureza humana, trouxe a este exílio da terra aquele hino que se canta por toda a eternidade na celeste mansão. Ele une a si toda a humanidade e associa-a a este cântico divino de louvor.
Continua esse múnus sacerdotal por intermédio da sua Igreja, que louva o Senhor sem cessar e intercede pela salvação de todo o mundo, não só com a celebração da Eucaristia, mas de vários outros modos, especialmente pela recitação do Ofício divino.
84. O Ofício divino, segundo a antiga tradição cristã, destina-se a consagrar, pelo louvor a Deus, o curso diurno e nocturno do tempo. E quando são os sacerdotes a cantar esse admirável cântico de louvor, ou outros para tal deputados pela Igreja, ou os fiéis quando rezam juntamente com o sacerdote segundo as formas aprovadas, então é verdadeiramente a voz da Esposa que fala com o Esposo ou, melhor, a oração que Cristo, unido ao seu Corpo, eleva ao Pai.
85. Todos os que rezam assim, cumprem, por um lado, a obrigação própria da Igreja, e, por outro, participam na imensa honra da Esposa de Cristo, porque estão em nome da Igreja diante do trono de Deus, a louvar o Senhor.
Valor pastoral
86. Os sacerdotes, dedicados ao sagrado ministério pastoral, recitarão com tanto mais fervor o Ofício divino, quanto mais conscientes estiverem de que devem seguir a exortação de S. Paulo: «Rezai sem cessar» (1 Tess. 5,17). É que só o Senhor pode dar eficácia e fazer progredir a obra em que trabalham, Ele que disse: «Sem mim, nada podeis fazer» (Jo. 15, 5). Razão tiveram os Apóstolos para dizer, quando instituiram os diáconos: «Nós atenderemos com assiduidade à oração e ao ministério da palavra» (Act. 6, 4).
Normas para a reforma
87. Para permitir nas circunstâncias actuais, quer aos sacerdotes, quer a outros membros da Igreja, uma melhor e mais perfeita recitação do Ofício divino, pareceu bem ao sagrado Concílio, continuando a restauração felizmente iniciada pela Santa Sé, estabelecer o seguinte sobre o Ofício do rito romano.
88. Sendo o objectivo do Ofício a santificação do dia, deve rever-se a sua estrutura tradicional, de modo que, na medida do possível, se façam corresponder as «horas» ao seu respectivo tempo, tendo presentes também as condições da vida hodierna em que se encontram sobretudo os que se dedicam a obras do apostolado.
89. Por isso, na reforma do Ofício, observem-se as seguintes normas:
a) As Laudes, oração da manhã, e as Vésperas, oração da noite, tidas como os dois polos do Ofício quotidiano pela tradição venerável da Igreja universal, devem considerar-se as principais Horas e como tais celebrar-se;
b) As Completas devem adaptar-se, para condizer com o fim do dia;
c) As Matinas, continuando embora, quando recitadas em coro, com a índole de louvor nocturno, devem adaptar-se para ser recitadas a qualquer hora do dia; tenham menos salmos e lições mais extensas;
d) Suprima-se a Hora de Prima;
e) Mantenham-se na recitação em coro as Horas menores de Tércia, Sexta e Noa. Fora da recitação coral, pode escolher-se uma das três, a que mais se coadune com a hora do dia.
90. Sendo ainda o Ofício divino, como oração pública da Igreja, fonte de piedade e alimento da oração pessoal, exortam-se no Senhor os sacerdotes, e todos os outros que participam no Ofício divino, a que, ao recitarem-no, o espírito corresponda às palavras; para melhor o conseguirem, procurem adquirir maior instrução litúrgica e bíblica, especialmente quanto aos salmos. Tenha-se como objectivo, ao fazer a reforma desse tesouro venerável e secular que é o Ofício romano, que mais larga e fàcilmente o possam usufruir todos aqueles a quem é confiado.
91. Para poder observar-se realmente o curso das Horas, proposta no artigo 89, distribuam-se os salmos, não já por uma semana, mas por mais longo espaço de tempo.
Conclua-se o mais depressa possível a obra, felizmente iniciada, da revisão do Saltério, procurando respeitar a língua latina cristã, o seu uso litúrgico mesmo no canto, e toda a tradição da Igreja latina.
92. Quanto às leituras, sigam-se estas normas:
a) Ordenem-se as leituras da Sagrada Escritura de modo que se permita mais fácil e amplo acesso aos tesouros da palavra de Deus;
b) Faça-se melhor selecção das leituras a extrair das obras dos Santos Padres, Doutores e Escritores eclesiásticos;
c) As «Paixões» ou vidas dos Santos sejam restituídas à verdade histórica.
93. Restaurem-se os hinos, segundo convenha, na sua forma original, tirando ou mudando tudo o que tenha ressaibos mitológicos ou for menos conforme com a piedade cristã. Se convier, admitam-se também outros que se encontram nas colecções hinológicas.
Recitação coral ou privada
94. Importa, quer para santificar verdadeiramente o dia, quer para recitar as Horas com fruto espiritual, que ao rezá-las se observe o tempo que mais se aproxima do verdadeiro tempo de cada uma das Horas canónicas.
95. As Comunidades com obrigação de coro têm o dever de celebrar, além da Missa conventual, diàriamente e em coro, o Ofício divino, ou seja;
a) O Ofício completo: as Ordens de Cónegos, de Monges e Monjas e de outros Regulares que por direito ou constituições estão obrigados ao coro;
b) As partes do Ofício que lhes são. impostas pelo direito comum ou particular: os Cabidos das catedrais ou das colegiadas;
c) Todos os membros dessas Comunidades que já receberam Ordens maiores ou fizeram profissão solene, à excepção dos conversos, devem recitar sòzinhos as Horas canónicas que não recitam no coro.
96. Os clérigos não obrigados ao coro, se já receberam Ordens maiores, são obrigados a recitar diàriamente, ou em comum ou individualmente, todo o Ofício, segundo o prescrito no art. 89.
97. As novas rubricas estabelecerão as comutações, que parecerem oportunas, do Ofício divino por outro acto litúrgico. Podem os Ordinários, em casos particulares e por causa justa, dispensar os seus súbditos da obrigação de recitar o Ofício no todo ou em parte, ou comutá-lo.
98. Os membros dos Institutos de perfeição, que, por força das constituições, recitam algumas partes do Ofício divino, participam na oração pública da Igreja.
Tomam parte igualmente na oração pública da Igreja se recitam, segundo as constituições, algum «Ofício breve», desde que seja composto à imitação do Ofício divino e devidamente aprovado.
99. Sendo o Ofício divino a voz da Igreja, isto é, de todo o Corpo místico a louvar a Deus pùblicamente, aconselha-se aos clérigos não obrigados ao coro, e sobretudo aos sacerdotes que convivem ou se retinem, que rezem em comum ao menos alguma parte do Ofício divino.
Todos, pois, os que recitam o Ofício quer em coro quer em comum, esforcem-se por desempenhar do modo mais perfeito possível o múnus que lhes está confiado, tanto na disposição interior do espírito como na compostura exterior. Além disso, é bem que se cante o Ofício divino, tanto em coro como em comum, segundo a oportunidade.
100. Cuidem os pastores de almas que nos domingos e festas mais solenes se celebrem em comum na igreja as Horas principais, especialmente Vésperas. Recomenda-se também aos leigos que recitem o Ofício divino, quer juntamente com os sacerdotes, quer uns com os outros, ou mesmo particularmente.
Língua
101. § 1. Conforme à tradição secular do rito latino, a língua a usar no Ofício divino é o latim. O Ordinário poderá, contudo, conceder, em casos particulares, aos clérigos para quem o uso da língua latina for um impedimento grave para devidamente recitarem o Ofício, a faculdade de usarem uma tradução em vernáculo, composta segundo a norma do art. 36.
§ 2. O Superior competente pode conceder às Monjas, como também aos membros dos Institutos de perfeição, não clérigos ou mulheres, o uso do vernáculo no Ofício divino, mesmo na celebração coral, desde que a versão seja aprovada.
§ 3. Cumprem a sua obrigação de rezar o Ofício divino os clérigos que o recitem em vernáculo com a assembleia dos fiéis ou com aqueles a que se refere o § 2, desde que a tradução seja aprovada.
CAPÍTULO V
O ANO LITÚRGICO
Sua natureza: o ciclo do tempo
102. A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar, em determinados dias do ano, a memória sagrada da obra de salvação do seu divino Esposo. Em cada semana, no dia a que chamou domingo, celebra a da Ressurreição do Senhor, como a celebra também uma vez no ano na Páscoa, a maior das solenidades, unida à memória da sua Paixão.
Distribui todo o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Incarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor.
Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em contacto com eles, se encham de graça.
as festas da Virgem e dos Santos
103. Na celebração deste ciclo anual dos mistérios de Cristo, a santa Igreja venera com especial amor, porque indissolùvelmente unida à obra de salvação do seu Filho, a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, em quem vê e exalta o mais excelso fruto da Redenção, em quem contempla, qual imagem puríssima, o que ela, toda ela, com alegria deseja e espera ser..
104. A Igreja inseriu também no ciclo anual a memória dos Mártires e outros Santos, os quais, tendo pela graça multiforme de Deus atingido a perfeição e alcançado a salvação eterna, cantam hoje a Deus no céu o louvor perfeito e intercedem por nós. Ao celebrar o «dies natalis» (dia da morte) dos Santos, proclama o mistério pascal realizado na paixão e glorificação deles com Cristo, propõe aos fiéis os seus exemplos, que conduzem os homens ao Pai por Cristo, e implora pelos seus méritos as bênçãos de Deus.
exercícios de piedade
105. Em várias épocas do ano e seguindo o uso tradicional, a Igreja completa a formação dos fiéis servindo-se de piedosas práticas corporais e espirituais, da instrução, da oração e das obras de penitência e misericórdia.
Por isso, aprouve ao sagrado Concílio determinar o seguinte:
Domingo e festas do Senhor
106. Por tradição apostólica, que nasceu do próprio dia da Ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o mistério pascal todos os oito dias, no dia que bem se denomina dia do Senhor ou domingo. Neste dia devem os fiéis reunir-se para participarem na Eucaristia e ouvirem a palavra de Deus, e assim recordarem a Paixão, Ressurreição e glória do Senhor Jesus e darem graças a Deus que os »regenerou para uma esperança viva pela Ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos» (1 Pedr. 1,3). O domingo é, pois, o principal dia de festa a propor e inculcar no espírito dos fiéis; seja também o dia da alegria e do repouso. Não deve ser sacrificado a outras celebrações que não sejam de máxima importância, porque o domingo é o fundamento e o centro de todo o ano litúrgico.
107. Reveja-se o ano litúrgico de tal modo que, conservando-se ou reintegrando-se os costumes tradicionais dos tempos litúrgicos, segundo o permitirem as circunstâncias de hoje, mantenha o seu carácter original para, com a celebração dos mistérios da Redenção cristã, sobretudo do mistério pascal, alimentar devidamente a piedade dos fiéis. Sé acaso forem necessárias adaptações aos vários lugares, façam-se segundo os art. 39 e 40.
108. Oriente-se o espírito dos fiéis em primeiro lugar para as festas do Senhor, as quais celebram durante o ano os mistérios da salvação e, para que o ciclo destes mistérios possa ser celebrado no modo devido e na sua totalidade, dê-se ao Próprio do Tempo o lugar que lhe convém, de preferência sobre as festas dos Santos.
A Quaresma
109. Ponham-se em maior realce, tanto na Liturgia como na catequese litúrgica, os dois aspectos característicos do tempo quaresmal, que pretende, sobretudo através da recordação ou preparação do Baptismo e pela Penitência, preparar os fiéis, que devem ouvir com mais frequência a Palavra de Deus e dar-se à oração com mais insistência, para a celebração do mistério pascal. Por isso:
a) utilizem-se com mais abundância os elementos baptismais próprios da liturgia quaresmal e retomem-se, se parecer oportuno, elementos da antiga tradição;
b) o mesmo se diga dos elementos penitenciais. Quanto à catequese, inculque-se nos espíritos, de par com as consequências sociais do pecado, a natureza própria da penitência, que é detestação do pecado por ser ofensa de Deus; nem se deve esquecer a parte da Igreja na prática penitenciai, nem deixar de recomendar a oração pelos pecadores.
110. A penitência quaresmal deve ser também externa e social, que não só interna e individual. Estimule-se a prática da penitência, adaptada ao nosso tempo, às possibilidades das diversas regiões e à condição de cada um dos fiéis. Recomendem-na as autoridades a que se refere o art. 22.
Mantenha-se religiosamente o jejum pascal, que se deve observar em toda a parte na Sexta-feira da Paixão e Morte do Senhor e, se oportuno, estender-se também ao Sábado santo, para que os fiéis possam chegar à alegria da Ressurreição do Senhor com elevação e largueza de espírito.
As festas dos santos
111. A Igreja, segundo a tradição, venera os Santos e as suas relíquias autênticas, bem como as suas imagens. É que as festas dos Santos proclamam as grandes obras de Cristo nos seus servos e oferecem aos fiéis os bons exemplos a imitar.
Para que as festas dos Santos não prevaleçam sobre as festas que recordam os mistérios da salvação, muitas delas ficarão a ser celebradas só por uma igreja particular ou nação ou família religiosa, estendendo-se apenas a toda a Igreja as que festejam Santos de inegável importância universal.
CAPÍTULO VI
A MÚSICA SACRA
Importância para a Liturgia
112. A tradição musical da Igreja é um tesouro de inestimável valor, que excede todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto sagrado, intimamente unido com o texto, constitui parte necessária ou integrante da Liturgia solene.
Não cessam de a enaltecer, quer a Sagrada Escritura (42), quer os Santos Padres e os Romanos Pontífices, que ainda recentemente, a começar em S. Pio X, vincaram com mais insistência a função ministerial da música sacra no culto divino.
A música sacra será, por isso, tanto mais santa quanto mais intimamente unida estiver à acção litúrgica, quer como expressão delicada da oração, quer como factor de comunhão, quer como elemento de maior solenidade nas funções sagradas. A Igreja aprova e aceita no culto divino todas as formas autênticas de arte, desde que dotadas das qualidades requeridas.
O sagrado Concílio, fiel às normas e determinações da tradição e disciplina da Igreja, e não perdendo de vista o fim da música sacra, que é a glória de Deus e a santificação dos fiéis, estabelece o seguinte:
113. A acção litúrgica reveste-se de maior nobreza quando é celebrada de modo solene com canto, com a presença dos ministros sagrados e a participação activa do povo.
Observe-se, quanto à língua a usar, o art. 36; quanto à Missa, o art. 54; quanto aos sacramentos, o art. 63; e quanto ao Ofício divino, o art. 101.
Promoção da música sacra
114. Guarde-se e desenvolva-se com diligência o património da música sacra. Promovam-se com empenho, sobretudo nas igrejas catedrais, as «Scholae cantorum». Procurem os Bispos e demais pastores de almas que os fiéis participem activamente nas funções sagradas que se celebram com canto, na medida que lhes compete e segundo os art. 28 e 30.
115. Dê-se grande importância nos Seminários, Noviciados e casas de estudo de religiosos de ambos os sexos, bem como noutros institutos e escolas católicas, à formação e prática musical. Para o conseguir, procure-se preparar também e com muito cuidado os professores que terão a missão de ensinar a música sacra.
Recomenda-se a fundação, segundo as circunstâncias, de Institutos Superiores de música sacra.
Os compositores e os cantores, principalmente as crianças, devem receber também uma verdadeira educação litúrgica.
116. A Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana o canto gregoriano; terá este, por isso, na acção litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar.
Não se excluem todos os outros géneros de música sacra, mormente a polifonia, na celebração dos Ofícios divinos, desde que estejam em harmonia com o espírito da acção litúrgica, segundo o estatuído no art. 30.
117. Procure terminar-se a edição típica dos livros de canto gregoriano; prepare-se uma edição mais crítica dos livros já editados depois da reforma de S. Pio X.
Convirá preparar uma edição com melodias mais simples para uso das igrejas menores.
118. Promova-se muito o canto popular religioso, para que os fiéis possam cantar tanto nos exercícios piedosos e sagrados como nas próprias acções litúrgicas, segundo o que as rubricas determinam.
Adaptação às diferentes culturas
119. Em certas regiões, sobretudo nas Missões, há povos com tradição musical própria, a qual tem excepcional importância na sua vida religiosa e social. Estime-se como se deve e dê-se-lhe o lugar que lhe compete, tanto na educação do sentido religioso desses povos como na adaptação do culto à sua índole, segundo os art. 39 e 40. Por isso, procure-se cuidadosamente que, na sua formação musical, os missionários fiquem aptos, na medida do possível, a promover a música tradicional desses povos nas escolas e nas acções sagradas.
Instrumentos músicos sagrados
120. Tenha-se em grande apreço na Igreja latina o órgão de tubos, instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de dar às cerimónias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus.
Podem utilizar-se no culto divino outros instrumentos, segundo o parecer e com o consentimento da autoridade territorial competente, conforme o estabelecido nos art. 22 § 2, 37 e 40, contanto que esses instrumentos estejam adaptados ou sejam adaptáveis ao uso sacro, não desdigam da dignidade do templo e favoreçam realmente a edificação dos fiéis.
Normas para os compositores
121. Os compositores possuídos do espírito cristão compreendam que são chamados a cultivar a música sacra e a aumentar-lhe o património.
Que as suas composições se apresentem com as características da verdadeira música sacra, possam ser cantadas não só pelos grandes coros, mas se adaptem também aos pequenos e favoreçam uma activa participação de toda a assembleia dos fiéis.
Os textos destinados ao canto sacro devem estar de acordo com a doutrina católica e inspirar-se sobretudo na Sagrada Escritura e nas fontes litúrgicas.
CAPÍTULO VII
A ARTE SACRA E AS ALFAIAS LITÚRGICAS
A arte sacra e seus estilos
122. Entre as mais nobres actividades do espírito humano estão, de pleno direito, as belas artes, e muito especialmente a arte religiosa e o seu mais alto cimo, que é a arte sacra. Elas tendem, por natureza, a exprimir de algum modo, nas obras saídas das mãos do homem, a infinita beleza de Deus, e estarão mais orientadas para o louvor e glória de Deus se não tiverem outro fim senão o de conduzir piamente e o mais eficazmente possível, através das suas obras, o espírito do homem até Deus.
É esta a razão por que a santa mãe Igreja amou sempre as belas artes, formou artistas e nunca deixou de procurar o contributo delas, procurando que os objectos atinentes ao culto fossem dignos, decorosos e belos, verdadeiros sinais e símbolos do sobrenatural. A Igreja julgou-se sempre no direito de ser como que o seu árbitro, escolhendo entre as obras dos artistas as que estavam de acordo com a fé, a piedade e as orientações veneráveis da tradição e que melhor pudessem servir ao culto.
A Igreja preocupou-se com muita solicitude em que as alfaias sagradas contribuissem para a dignidade e beleza do culto, aceitando no decorrer do tempo, na matéria, na forma e na ornamentação, as mudanças que o progresso técnico foi introduzindo.
Pareceu bem aos Padres determinar, a este propósito, o que segue:
123. A Igreja nunca considerou um estilo como próprio seu, mas aceitou os estilos de todas as épocas, segundo a índole e condição dos povos e as exigências dos vários ritos, criando deste modo no decorrer dos séculos um tesouro artístico que deve ser conservado cuidadosamente. Seja também cultivada livremente na Igreja a arte do nosso tempo, a arte de todos os povos e regiões, desde que sirva com a devida reverência e a devida honra às exigências dos edifícios e ritos sagrados. Assim poderá ela unir a sua voz ao admirável cântico de glória que grandes homens elevaram à fé católica em séculos passados.
124. Ao promoverem uma autêntica arte sacra, prefiram os Ordinários à mera sumptuosidade uma beleza que seja nobre. Aplique-se isto mesmo às vestes e ornamentos sagrados.
Tenham os Bispos todo o cuidado em retirar da casa de Deus e de outros lugares sagrados aquelas obras de arte que não se coadunam com a fé e os costumes e com a piedade cristã, ofendem o genuíno sentido religioso, quer pela depravação da forma, que pela insuficiência, mediocridade ou falsidade da expressão artística.
Na construção de edifícios sagrados, tenha-se grande preocupação de que sejam aptos para lá se realizarem as acções litúrgicas e permitam a participação activa dos fiéis.
O culto das imagens
125. Mantenha-se o uso de expor imagens nas igrejas à veneração dos fiéis. Sejam, no entanto, em número comedido e na ordem devida, para não causar estranheza aos fiéis nem contemporizar com uma devoção menos ortodoxa.
Comissão diocesana da arte
126. Para emitir um juízo sobre as obras de arte, oiçam os Ordinários de lugar o parecer da Comissão de arte sacra e de outras pessoas particularmente competentes, se for o caso, assim como também das Comissões a que se referem os art. 44, 45, 46.
Os Ordinários vigiarão com todo o cuidado para que não se percam nem se alienem as alfaias sagradas e obras preciosas, que embelezam a casa de Deus.
Promoção da arte e formação dos artistas
127. Cuidem os Bispos de, por si ou por sacerdotes idóneos e que conheçam e amem a arte, imbuir os artistas do espírito da arte sacra e da sagrada Liturgia.
Recomenda-se também, para formar os artistas, a criação de Escolas ou Academias de arte sacra, onde parecer oportuno.
Recordem-se constantemente os artistas que desejam, levados pela sua inspiração, servir a glória de Deus na santa Igreja, de que a sua actividade é, de algum modo, uma sagrada imitação de Deus criador e de que as suas obras se destinam ao culto católico, à edificação, piedade e instrução religiosa dos fiéis.
128. Revejam-se o mais depressa possível, juntamente com os livros litúrgicos, conforme dispõe o art. 25, os cânones e determinações eclesiásticas atinentes ao conjunto das coisas externas que se referem ao culto, sobretudo quanto a uma construção funcional e digna dos edifícios sagrados, erecção e forma dos altares, nobreza, disposição e segurança dos sacrários, dignidade e funcionalidade do baptistério, conveniente disposição das imagens, decoração e ornamentos. Corrijam-se ou desapareçam as normas que parecem menos de acordo com a reforma da Liturgia; mantenham-se e introduzam-se as que forem julgadas aptas a promovê-la.
Neste particular e especialmente quanto à matéria e forma dos objectos e das vestes sagradas, o sagrado Concílio concede às Conferências episcopais das várias regiões a faculdade de fazer a adaptação às necessidades e costumes dos lugares, segundo o art. 22 desta Constituição.
129. Para poderem estimar e conservar os preciosos monumentos da Igreja e para estarem aptos a orientar como convém os artistas na realização das suas obras, devem os clérigos, durante o curso filosófico e teológico, estudar a história e evolução da arte sacra, bem como os sãos princípios em que deve fundar-se.
Uso das insígnias pontifícias
130. É conveniente que o uso das insígnias pontificais seja reservado às pessoas eclesiásticas que possuem a dignidade episcopal ou gozam de especial jurisdição.
Apêndice
DECLARAÇÃO DO CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO II SOBRE A REFORMA DO CALENDÁRIO
Apêndice: Declaração sobre a revisão do Calendário
O sagrado Concílio Ecuménico Vaticano II, tendo na devida conta o desejo expresso por muitos para dar à festa da Páscoa um domingo certo e adoptar um calendário fixo, depois de ter ponderado maduramente as consequências que poderão resultar da introdução do novo calendário, declara o seguinte:
1. O sagrado Concílio não tem nada a opor à fixação da festa da Páscoa num domingo certo do calendário gregoriano, se obtiver o assentimento daqueles a quem interessa, especialmente dos irmãos separados da comunhão com a Sé Apostólica.
2. Igualmente declara não se opor às iniciativas para introduzir um calendário perpétuo na sociedade civil.
Contudo, entre os vários sistemas em estudo para fixar um calendário perpétuo e introduzi-lo na sociedade civil, a Igreja só não se opõe àqueles que conservem a semana de sete dias e com o respectivo domingo. A Igreja deseja também manter intacta a sucessão hebdomadária, sem inserção de dias fora da semana, a não ser que surjam razões gravíssimas sobre as quais deverá pronunciar-se a Sé Apostólica.
Roma, 4 de Dezembro de 1963.
PAPA PAULO VI
Notas
1. IX Dom. d. Pentec., oração sobre as oblatas.
2. Cfr. Hebr. 13,14.
3. Cfr. Ef. 2, 21-22.
4. Cfr. Ef. 4,13.
5. Cfr. Is. 11,12.
6. Cfr. Jo. 11,52.
7. Cfr. Jo. 10,16.
8. Cfr. Is. 61,1; Lc. 4,18.
9. S. Inácio de Antioquia aos Efésios, 7, 8: F. X. Funk, Patres Apostolici, I, Tubinga, 1901, p. 218.
10. Cfr. I Tim. 2,5.
11. Sacramentário de Verona (Leoniano): ed. C. Mohlberg, Roma, 1956, n.° 1265, p. 162.
12. Missal Romano, Prefácio pascal.
13. Cfr. S. Agostinho, Enarr. in Ps. CXXXVIII, 2: Corpus Christianorum XL, Tournai, 1956, p. 1991; e a oração depois da segunda leitura de Sábado Santo antes da reforma da Semana Santa, no Missal Romano.
14. Cfr. Mc. 16,15
15. Cfr. Act. 26,18
16. Cfr. Rom. 6,4; Ef. 2,6; Col. 3,1; 2 Tim. 2,11.
17. Cfr. Jo. 4,23.
18. Cfr. 1 Cor. 11,26.
19. Conc. Trento, Sess. XIII, 11 Out. 1551, Decr. De ss. Eucharist., ci 5: Concilium Tridentinum, Diariorum, Actorum, Epistolarum, Tractatuum nova collectio, ed. Soc. Goerresiana, t. VII. Actas: Parte IV, Friburgo da Brisgóvia, 1961, p. 202.
20. Conc. Trento, Sess. XXII, 17 Set. 1562, Dout. De ss. Missae sacrif., c. 2: Concilium Tridentinum, ed. cit., t. VIII, Actas: Parte V, Friburgo da Brisgóvia, 1919, p. 960.
21. Cfr. S. Agostinho, In Joannis Evangelium Tractatus VI, c. I, n.° 7: PL 35, 1428.
22. Cfr. Apoc. 21,2; Col. 3,1; Heb. 8,2.
23. Cfr. Fil. 3,20; Col. 3,4,
24. Cfr. Jo. 17,3; Lc. 24,47; Act. 2,38.
25. Cfr. Mt. 28,20.
26. Oração depois da comunhão na Vigília Pascal e no Domingo da Ressurreição.
27. Oração da missa de terça-feira da Oitava de Páscoa.
28. Cfr. 2 Cor. 6,1.
29 Cfr. Mt. 6,6.
30. Cfr. 1 Tess. 5,17.
31. Cfr. 2 Cor. 4, 10-11.
32. Missal Romano, 2ª feira da Oitava de Pentecostes, oração sobre as oblatas.
33. S. Cipriano, De Cath. Eccl. unitate, 7: ed. G. Hartel, em CSEL, t. III, 1, Viena 1868, pp. 215-216. Cfr. Ep. 66, n.° 8, 3: ed. cit., t. III„ 2, Viena 1871, pp. 732-733.
34. Cfr. Conc. Trento, Sess. XXII, 17 Setembro 1562, Doctr. de ss. missae sacrif., c. 8: Concilium Trident. ed. cit., t. VIII, p. 961.
35. Cfr. S. Inácio de Antioquia, Ad Magn. 7; Ad Philad. 4; Ad Smyrn. 8: ed. cit. F. X. Funk, I, pp 336, 266, 281.
36. Cfr. S. Agostinho. In Joannis Evang. tractatus XXVI, cap. VI, n.° 13: PL 35, 1613.
37. Breviário Romano, na festa do Corpo de Deus: Antífona do Magnificat em 2ªs Vésperas.
38. Cfr. S. Cirilo de Alexandria, Commentarium in Joannis Evangelium, livro XI, cap. XI-XII: PG 74, 557-565.
39. Cfr. 1 Tim. 2, 1-2.
40. Sessão XXI, Doctrina de Communione sub utraque specie et parvulorum, e. 1-3, cân. 1-3: Concilium Trident. ed. cit., t. VIII, pp. 698-699.
41. Conc. Trento, Sessão XXIV, 11 Novembro 1563, Decr. De reformatione, c. I: Concilium Trident. ed. cit., t. IX. Actas: parte VI, Friburgo Br. 1924., p. 969. Cfr. Ritual Romano, tit.8, c. II, n° 6.
42. Cfr. Ef. 5,19; Col. 3,16.
Desiderio desideravi (2022)
CARTA APOSTÓLICA
DESIDERIO DESIDERAVI
DO SANTO PADRE FRANCISCO AOS BISPOS, AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS, ÀS PESSOAS CONSAGRADAS E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A FORMAÇÃO LITÚRGICA DO POVO DE DEUS
“DESIDERIO DESIDERAVI hoc Pascha manducare vobiscum antequam patiar” (Lc 22, 15).
1. Caríssimos irmãos e irmãs:
Com esta carta desejo dirigir-me a todos – depois de já ter escrito apenas aos bispos na sequência da publicação do Motu Proprio Traditionis custodes – para partilhar convosco algumas reflexões sobre a Liturgia, dimensão fundamental para a vida da Igreja. O tema é muito vasto e merece uma consideração atenta em todos os seus aspetos: todavia, com este escrito não pretendo tratar a questão de modo exaustivo. Quero, simplesmente, oferecer alguns pontos de reflexão para contemplar a beleza e a verdade do celebrar cristão.
A Liturgia: o “hoje” da história da salvação
2. “Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco, antes de padecer” (Lc 22, 15). As palavras de Jesus, com que se abre a narração da última Ceia, são a fresta através da qual nos é dada a surpreendente possibilidade de intuir a profundidade do amor das Pessoas da Santíssima Trindade para connosco.
3. Pedro e João tinham sido mandados fazer os preparativos para se poder comer a Páscoa mas, vendo bem, toda a criação, toda a história – que finalmente estava para se revelar como história de salvação – é uma grande preparação para a Ceia. Pedro e os outros estão a essa mesa inconscientes e, todavia, necessários: qualquer dom para o ser deve ter alguém disposto a recebê-lo. Neste caso a desproporção entre a imensidade do dom e a pequenez de quem o recebe é infinita e não pode deixar de nos surpreender. Apesar disso – por misericórdia do Senhor – o dom é confiado aos Apóstolos para que seja levado a todos os homens.
4. Ninguém tinha ganho um lugar para aquela Ceia. Todos foram convidados ou, melhor, atraídos pelo desejo ardente que Jesus tem de comer aquela Páscoa com eles: Ele sabe que é o Cordeiro daquela Páscoa, sabe que é a Páscoa. Esta é a novidade absoluta daquela Ceia, a única verdadeira novidade da história, que torna aquela Ceia única e, por isso, “última”, irrepetível. Todavia, o seu infinito desejo de restabelecer a comunhão connosco, que era e continua a ser o projeto originário, só poderá ser saciado quando todos os homens, “de todas as tribos, línguas, povos e nações” (Ap 5, 9) comerem o seu Corpo e beberem o seu Sangue: por isso aquela mesma Ceia se tornará presente, até ao seu regresso, na celebração da Eucaristia.
5. O mundo não o sabe ainda, mas todos “são convidados para o banquete das núpcias do Cordeiro” (Ap 19, 9). Para ter acesso a Ele só precisa da veste nupcial da fé que vem da escuta da sua Palavra (cf. Rm 10, 17): a Igreja prepara-a à medida com a alvura de um tecido “lavado no Sangue do Cordeiro” (cf. Ap 7, 14). Não deveríamos ter um instante sequer de repouso, sabendo que nem todos ainda receberam o convite para a Ceia ou que outros o esqueceram ou perderam nas sendas tortuosas da vida dos homens. Por isso disse que “sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo actual que à auto-preservação” (Evangelii gaudium, n. 27): para que todos se possam sentar à Ceia do sacrifício do Cordeiro e d’Ele viver.
6. Antes da nossa resposta ao convite – muito antes – está o seu desejo de nós: até podemos não ter consciência disso, mas de cada vez que vamos à Missa a razão primeira é porque somos atraídos pelo seu desejo de nós. Por nossa parte, a resposta possível, a ascese mais exigente é, como sempre, a de nos rendermos ao seu amor, de nos deixarmos atrair por Ele. O certo é que todas as nossas comunhões no Corpo e Sangue de Cristo foram por Ele desejadas na última Ceia.
7. O conteúdo do Pão partido é a cruz de Jesus, o seu sacrifício em obediência de amor ao Pai. Se não tivéssemos tido a última Ceia, isto é, a antecipação ritual da sua morte, não teríamos podido compreender como a execução da sua condenação à morte pudesse ser o ato de culto perfeito e agradável ao Pai, o único verdadeiro ato de culto. Poucas horas depois, os Apóstolos teriam podido ver na cruz de Jesus, se tivessem suportado o seu peso, o que é que queria dizer “corpo oferecido”, “sangue derramado”: e é disso que fazemos memória em cada Eucaristia. Quando regressa, ressuscitado dos mortos, para partir o pão pelos discípulos de Emaús e pelos seus que tinham voltado a pescar peixe – e não homens – no lago da Galileia, esse gesto abre os seus olhos, cura-os da cegueira infligida pelo horror da Cruz, tornando-os capazes de “ver” o Ressuscitado, de crer na Ressurreição.
8. Se tivéssemos chegado a Jerusalém depois do Pentecostes e tivéssemos sentido o desejo não só de ter informações sobre Jesus de Nazaré, mas também de ainda o poder encontrar, não teríamos tido outra possibilidade a não ser a de procurar os seus para escutar as suas palavras e ver os seus gestos, mais vivos do que nunca. Não teríamos tido outra possibilidade de um verdadeiro encontro com Ele a não ser a daquela comunidade que celebra. Por isso a Igreja sempre guardou como o seu tesouro mais precioso o mandato do Senhor: “fazei isto em memória de mim”.
9. Desde o princípio que a Igreja foi consciente de que não se tratava de uma mera representação, mesmo que sagrada, da Ceia do Senhor: não teria tido qualquer sentido e ninguém poderia ter pensado em “pôr em cena” – e ainda mais sob o olhar de Maria, a Mãe do Senhor – aquele altíssimo momento da vida do Mestre. Iluminada pelo Espírito Santo, a Igreja entendeu desde o primeiro instante que aquilo que era visível de Jesus, aquilo que se podia ver com os olhos e tocar com as mãos, as suas palavras e os seus gestos, o caráter concreto do Verbo encarnado, tudo d’Ele tinha passado para a celebração dos sacramentos [1].
A Liturgia: lugar do encontro com Cristo
10. Aqui reside toda a poderosa beleza da Liturgia. Se a Ressurreição fosse para nós um conceito, uma ideia, um pensamento; se o Ressuscitado fosse para nós a recordação da recordação de outros, ainda que com autoridade, como os Apóstolos, se não nos fosse dada também a nós a possibilidade de um verdadeiro encontro com Ele, seria como declarar esgotada a novidade do Verbo feito carne. Pelo contrário, a encarnação para além de ser o único acontecimento novo que a história conhece, é também o método que a Santíssima Trindade escolheu para nos abrir a via da comunhão. A fé cristã ou é encontro com Ele vivo, ou não é.
11. A Liturgia garante-nos a possibilidade desse encontro. Não nos basta ter uma vaga recordação da última Ceia: nós precisamos de estar presentes nessa Ceia, de poder ouvir a sua voz, de comer o seu Corpo e beber o seu Sangue: precisamos d’Ele. Na Eucaristia e em todos os sacramentos é-nos garantida a possibilidade de encontrar o Senhor Jesus e de ser alcançados pela potência da sua Páscoa. A potência salvífica do sacrifício de Cristo, de qualquer das suas palavras, de todos os seus gestos, olhares, sentimentos alcança-nos na celebração dos sacramentos. Eu sou Nicodemos e a Samaritana, o endemoninhado de Cafarnaum e o paralítico em casa de Pedro, a pecadora perdoada e a hemorroíssa, a filha de Jairo e o cego de Jericó, Zaqueu e Lázaro, o ladrão e Pedro perdoados. O Senhor Jesus, que “foi imolado sobre a cruz, mas não morrerá jamais; foi morto, mas agora vive para sempre” [2], continua a perdoar-nos, a curar-nos, a salvar-nos com a potência dos seus sacramentos. É o modo concreto, pela via da encarnação, com que nos ama; é o modo com que sacia aquela sede de nós que declarou na Cruz (cf. Jo 19, 28).
12. O nosso primeiro encontro com a sua Páscoa é o acontecimento que marca a vida de todos nós que acreditamos em Cristo: o nosso Batismo. Não é uma adesão mental ao seu pensamento ou a subscrição de um código de comportamento imposto por Ele: é o imergir-se na sua paixão, morte, ressurreição e ascensão. Não é um gesto mágico: a magia é o oposto à lógica dos sacramentos porque pretende ter um poder sobre Deus e por essa razão vem do tentador. Em perfeita continuidade com a encarnação, é-nos dada a possibilidade, por força da presença e da ação do Espírito Santo, de morrer e ressuscitar em Cristo.
13. É comovedor o modo como isto acontece. A oração de bênção da água batismal [3] revela-nos que Deus criou a água precisamente em vista do Batismo. Quer dizer que ao criar a água Deus pensava no Batismo de cada um de nós e que este pensamento o acompanhou no seu agir ao longo da história da salvação todas as vezes que, com desígnio bem determinado, se quis servir da água. É como se, depois de a ter criado, a tivesse querido aperfeiçoar para chegar a ser a água do Batismo. E assim a quis encher do movimento do seu Espírito que pairava sobre ela (cf. Gn 1, 2) para que contivesse em germe a força de santificar; usou-a para regenerar a humanidade no dilúvio (cf. Gn 6, 1 – 9, 29); dominou-a, separando-a para abrir um caminho de libertação no Mar Vermelho (cf. Ex 14); consagrou-a no Jordão nela imergindo a carne do Verbo repleta de Espírito (cf. Mt 3, 13-17; Mc 1, 9-11; Lc 3, 21-22). Por fim, misturou-a com o sangue do seu Filho, dom do Espírito inseparavelmente unido ao dom da vida e da morte do Cordeiro imolado por nós, e do lado trespassado a derramou sobre nós (cf. Jo 19, 34). É nesta água que fomos submergidos para que pelo seu poder pudéssemos ser enxertados no Corpo de Cristo e com Ele ressuscitar para a vida imortal (cf. Rm 6, 1-11).
A Igreja: sacramento do Corpo de Cristo
14. Como nos recordou o Concílio Vaticano II, citando a Escritura, os Padres e a Liturgia – as colunas da verdadeira Tradição – “foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de toda a Igreja” [4]. O paralelismo entre o primeiro e o novo Adão é surpreendente: tal como Deus tirou Eva do lado do primeiro Adão, depois de ter feito cair sobre ele um sono profundo, assim do lado do novo Adão, adormecido no sono da morte, nasce a nova Eva, a Igreja. O espanto para nós reside nas palavras que podemos pensar que o novo Adão faça suas, olhando para a Igreja: “Desta vez é osso dos meus ossos e carne da minha carne” ( Gn 2, 23). Por ter acreditado na Palavra e termos descido à água do Batismo, nós tornamo-nos osso dos seus ossos, carne da sua carne.
15. Sem esta incorporação não há qualquer possibilidade de viver a plenitude do culto a Deus. Efetivamente, há um só ato de culto perfeito e agradável ao Pai: a obediência do Filho, cuja medida é a sua morte na cruz. A única possibilidade de poder participar na sua oferta é tornarmo-nos filhos no Filho. É este o dom que recebemos. O sujeito que age na Liturgia é sempre e só Cristo-Igreja, o Corpo místico de Cristo.
O sentido teológico da Liturgia
16. Devemos ao Concílio – e ao movimento litúrgico que o precedeu – a redescoberta da compreensão teológica da Liturgia e da sua importância na vida da Igreja: os princípios gerais enunciados pela Sacrosanctum Concilium, tal como foram fundamentais para a intervenção da reforma, assim o continuam a ser para a promoção daquela participação plena, consciente, ativa e frutuosa na celebração, “primeira e indispensável fonte na qual os fiéis podem haurir o genuíno espírito cristão” ( Sacrosanctum Concilium, n. 14; veja-se também o n. 11). Com esta carta gostaria simplesmente de convidar toda a Igreja a redescobrir, guardar e viver a verdade e a força da celebração cristã. Gostaria que a beleza do celebrar cristão e das suas necessárias consequências na vida da Igreja não fosse deturpada por uma compreensão superficial e redutora do seu valor ou, pior ainda, por uma instrumentalização dela ao serviço de uma qualquer visão ideológica, seja ela qual for. A oração sacerdotal de Jesus na última Ceia para que todos sejam um só ( Jo 17, 21), julga qualquer divisão nossa em torno do Pão partido, “sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade” [5].
A Liturgia: antídoto contra o veneno da mundanidade espiritual
17. Várias vezes tenho advertido contra uma perigosa tentação para a vida da Igreja que é a “mundanidade espiritual”: dela falei profusamente na Exortação Evangelii gaudium (nn. 93-97), identificando no gnosticismo e no neopelagianismo os dois modos, relacionados entre si, que a alimentam.
O primeiro reduz a fé cristã a um subjetivismo que encerra o indivíduo “na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos” (Evangelii gaudium, n. 94).
O segundo anula o valor da graça para confiar exclusivamente nas suas próprias forças dando lugar “a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar” (Evangelii gaudium, n. 94). Estas formas distorcidas do cristianismo podem ter consequências desastrosas para a vida da Igreja.
18. De tudo o que quis recordar acima, resulta evidente que a Liturgia é, pela sua própria natureza, o antídoto mais eficaz contra esses venenos. Obviamente, falo da Liturgia no seu sentido teológico e não, certamente – já Pio XII o afirmava – como “um cerimonial decorativo (…) ou mera soma de leis e de preceitos (…) que regulam o cumprimento dos ritos” [6].
19. Se o gnosticismo nos intoxica com o veneno do subjetivismo, a celebração litúrgica liberta-nos da prisão de uma autorreferencialidade alimentada pela própria razão ou pelo próprio sentir: a ação celebrativa não pertence ao indivíduo mas a Cristo-Igreja, à totalidade dos fiéis unidos em Cristo. A Liturgia não diz “eu” mas “nós” e qualquer limitação à amplitude deste “nós” é sempre demoníaca. A Liturgia não nos deixa sós na busca individual de um suposto conhecimento do mistério de Deus, mas toma-nos pela mão, juntos, como assembleia, para nos conduzir para dentro do mistério que a Palavra e os sinais sacramentais nos revelam. E fá-lo, em coerência com o agir de Deus, seguindo a via da encarnação, através da linguagem simbólica do corpo que se prolonga nas coisas, no espaço e no tempo.
20. Se o neopelagianismo nos intoxica com a presunção de uma salvação ganha com as nossas forças, a celebração litúrgica purifica-nos proclamando a gratuidade do dom da salvação acolhida na fé. Participar no sacrifício eucarístico não é uma conquista nossa como se disso nos pudéssemos gloriar perante Deus e os irmãos. O início de cada celebração recorda-me quem sou, pedindo-me para confessar o meu pecado e convidando-me a suplicar à bem-aventurada Virgem Maria, aos anjos e santos e a todos os irmãos e irmãs que roguem por mim ao Senhor: porque não somos dignos de entrar na sua casa, precisamos de uma palavra sua para sermos salvos (cf. Mt 8, 8). Não temos outra glória a não ser a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Gl 6, 14). A Liturgia não tem nada a ver com um moralismo ascético: é o dom da Páscoa do Senhor que, acolhido com docilidade, faz nova a nossa vida. Não se entra no Cenáculo a não ser pela força de atração do seu desejo de comer a Páscoa connosco: Desiderio desideravi hoc Pascha manducare vobiscum, antequam patiar (Lc 22, 15).
Redescobrir em cada dia a beleza da verdade da celebração cristã
21. Devemos, porém, estar atentos: para que o antídoto da Liturgia seja eficaz é-nos pedido que em cada dia redescubramos a beleza da verdade da celebração cristã. Refiro-me, mais uma vez, ao seu sentido teológico, tal como o n. 7 da Sacrosanctum Concilium maravilhosamente o descreveu: a liturgia é o sacerdócio de Cristo a nós revelado e doado na sua Páscoa, hoje tornado presente e atuante mediante sinais sensíveis (água, azeite, pão, vinho, gestos, palavras) para que o Espírito, submergindo-nos no mistério pascal, transforme toda a nossa vida, conformando-nos cada vez mais a Cristo.
22. A contínua redescoberta da beleza da Liturgia não é a procura de um esteticismo ritual que se compraz apenas no cuidado da formalidade exterior de um rito ou se satisfaz com uma escrupulosa observância rubrical. Obviamente, esta afirmação não quer de modo algum aprovar a atitude oposta que confunda a simplicidade com a banalidade rasteira, a essencialidade com uma superficialidade ignorante, a concreção do agir ritual com um exasperado funcionalismo prático.
23. Entendamo-nos: todos os aspetos do celebrar devem ser cuidados (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, canto, música, …) e todas as rubricas devem ser observadas: bastaria esta atenção para evitar subtrair à assembleia aquilo que lhe é devido, isto é, o mistério pascal celebrado na modalidade ritual que a Igreja estabelece. Mas mesmo que a qualidade e a norma da ação celebrativa estejam garantidas, isso não bastaria para tornar plena a nossa participação.
O assombro pelo mistério pascal: parte essencial do ato litúrgico
24. Se viesse a faltar o assombro pelo mistério pascal que se torna presente no concreto dos sinais sacramentais, poderíamos verdadeiramente correr o risco de ser impermeáveis ao oceano de graça que inunda cada celebração. Não bastam os esforços, ainda que louváveis, em prol de uma melhor qualidade da celebração e nem sequer um apelo à interioridade: também esta corre o risco de se reduzir a uma vazia subjetividade se não acolher a revelação do mistério cristão. O encontro com Deus não é fruto de uma individual busca interior d’Ele mas é um acontecimento dado: podemos encontrar Deus pelo facto novo da Encarnação que na última Ceia chega ao extremo de desejar ser comido por nós. Como poderá acontecer-nos a desgraça de nos subtrairmos ao fascínio da beleza deste dom?
25. Ao dizer assombro perante o mistério pascal não pretendo dizer de forma alguma aquilo que por vezes me parece querer exprimir-se com a nebulosa expressão “sentido do mistério”: por vezes entre os supostos capítulos de imputação contra a reforma litúrgica vem também esse de o ter – assim se diz – eliminado da celebração. O assombro de que falo não é uma espécie de desmaio perante uma realidade obscura ou um rito enigmático, mas é, pelo contrário, o maravilhamento pelo facto de que o plano salvífico de Deus nos foi revelado na Páscoa de Jesus (cf. Ef 1, 3-14), cuja eficácia nos continua a alcançar na celebração dos “mistérios”, isto é, dos sacramentos. Entretanto, continua a ser verdade que a plenitude da revelação tem, em confronto com a nossa finitude humana, uma excedência que nos transcende e que terá o seu cumprimento no fim dos tempos, quando o Senhor vier de novo. Se o assombro é verdadeiro não há qualquer risco de que não se perceba, apesar da vizinhança que a encarnação quis, a alteridade da presença de Deus. Se a reforma tivesse eliminado esse “sentido do mistério”, mais do que um capítulo de acusação, isso seria uma nota de mérito. A beleza, como a verdade, gera sempre assombro e quando se referem ao mistério de Deus, levam à adoração.
26. O assombro é parte essencial do ato litúrgico, porque é uma atitude de quem sabe que se encontra perante a peculiaridade dos gestos simbólicos; é o enlevo de quem experimenta a força do símbolo, que não consiste em remeter para um conceito abstrato, mas em conter e exprimir na sua concreção aquilo que significa.
A necessidade de uma séria e vital formação litúrgica
27. A questão fundamental é, portanto, esta: como recuperar a capacidade de viver em plenitude a ação litúrgica? Tal era o objetivo da reforma do Concílio. O desafio é muito exigente porque o homem moderno – não do mesmo modo em todas as culturas – perdeu a capacidade de se confrontar com o agir simbólico que é uma característica essencial do ato litúrgico.
28. A pós-modernidade – em que o homem se sente cada vez mais perdido, sem referências de qualquer tipo, privado de valores porque tornados indiferentes, órfão de tudo, numa fragmentação em que parece impossível um horizonte de sentido – é ainda agravada pela pesada herança que nos deixou a época anterior, feita de individualismo e subjetivismo (que, mais uma vez, remetem para pelagianismo e gnosticismo) bem como de um espiritualismo abstrato que contradiz a própria natureza do homem, espírito encarnado e, portanto, capaz em si mesmo de ação e de compreensão simbólica.
29. Foi com a realidade da modernidade que a Igreja reunida em Concílio se quis confrontar, reafirmando a consciência de ser sacramento de Cristo, luz dos povos (Lumen gentium), pondo-se em religiosa escuta da Palavra de Deus (Dei Verbum) e reconhecendo como suas as alegrias e as esperanças (Gaudium et spes) dos homens de hoje. As grandes Constituições conciliares não são separáveis e não é por acaso que esta única grande reflexão do Concílio Ecuménico – a mais alta expressão da sinodalidade da Igreja, de cuja riqueza eu sou chamado a ser guardião, com todos vós – partiu da Liturgia (Sacrosanctum Concilium).
30. Ao encerrar a segunda sessão do Concílio (4 de dezembro de 1963), são Paulo VI assim se exprimia:
“Não ficou sem fruto a discussão difícil e intrincada, pois um dos temas – o primeiro a ser examinado e o primeiro, em certo sentido, na excelência intrínseca e na importância para a vida da Igreja – o da sagrada Liturgia – foi felizmente concluído e é hoje por Nós solenemente promulgado. Exulta o Nosso espírito com este resultado. Vemos que se respeitou nele a escala dos valores e dos deveres: Deus, em primeiro lugar; a oração, a nossa primeira obrigação; a Liturgia, fonte primeira da vida divina que nos é comunicada, primeira escola da nossa vida espiritual, primeiro dom que podemos oferecer ao povo cristão, que junto a nós crê e ora, e primeiro convite dirigido ao mundo para que solte a sua língua muda em oração feliz e autêntica e sinta a inefável força regeneradora, ao cantar connosco os divinos louvores e as esperanças humanas, por Cristo Nosso Senhor e no Espírito Santo” [7].
31. Não posso nesta carta demorar-me sobre a riqueza das diversas expressões desta passagem que deixo à vossa meditação. Se a Liturgia é o “cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de onde promana toda a sua energia” (Sacrosanctum Concilium, n. 10), compreendemos bem o que é que está em jogo na questão litúrgica. Seria banal ler as tensões acerca da celebração, infelizmente presentes, como se de uma simples divergência se tratasse entre sensibilidades diversas em relação a uma forma ritual. A problemática é antes de mais eclesiológica. Não vejo como se possa dizer que se reconhece a validade do Concílio – se bem que me surpreenda que um católico possa ter a pretensão de o não fazer – e não aceitar a reforma litúrgica nascida da Sacrosanctum Concilium, que exprime a realidade da Liturgia em íntima conexão com a visão de Igreja admiravelmente descrita pela Lumen gentium. Por isso – como expliquei na carta enviada a todos os Bispos – senti o dever de afirmar que “os livros litúrgicos promulgados pelos santos pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano” (Motu Proprio Traditionis custodes, art. 1).
A não aceitação da reforma, bem como uma compreensão superficial da mesma, distraem-nos da tarefa de encontrar as respostas à questão que volto a repetir: como crescer na capacidade de viver em plenitude a ação litúrgica? Como continuar a surpreendermo-nos com o que acontece na celebração diante dos nossos olhos? Precisamos de uma séria e vital formação litúrgica.
32. Voltemos de novo ao Cenáculo de Jerusalém: na manhã de Pentecostes nasce a Igreja, célula inicial da nova humanidade. Só a comunidade de homens e mulheres reconciliados porque perdoados, vivos porque Ele está vivo, verdadeiros porque habitados pelo Espírito da verdade, pode abrir o espaço estreito do individualismo espiritual.
33. É a comunidade do Pentecostes que é capaz de partir o Pão na certeza de que o Senhor está vivo, ressuscitado dos mortos, presente com a sua Palavra, com os seus gestos, com a oferta do seu Corpo e do seu Sangue. A partir desse momento a celebração torna-se o lugar privilegiado, não o único, do encontro com Ele. Nós sabemos que é só graças a esse encontro que o homem se torna plenamente homem. Só a Igreja do Pentecostes pode conceber o homem como pessoa, aberto a uma relação plena com Deus, com a criação e com os irmãos.
34. Aqui se coloca a questão decisiva da formação litúrgica. Diz Guardini: “Eis a primeira tarefa prática a fazer: sustentados por esta transformação interior do nosso tempo, devemos aprender de novo a colocarmo-nos perante a relação religiosa como homens em sentido pleno” [8]. É isto o que a Liturgia possibilita, para isto nos devemos formar. O mesmo Guardini não hesita em afirmar que sem formação litúrgica “as reformas no rito e no texto não ajudam muito” [9]. Não é minha intenção tratar agora de modo exaustivo o riquíssimo tema da formação litúrgica: gostaria apenas de oferecer algumas pistas de reflexão. Penso que podemos distinguir dois aspetos: a formação para a Liturgia e a formação pela Liturgia. O primeiro está em função do segundo que é essencial.
35. É preciso encontrar os canais para uma formação como estudo da liturgia: a partir do movimento litúrgico muito tem sido feito nesse sentido, com contributos preciosos de muitos estudiosos e instituições académicas. Entretanto, é preciso divulgar estes conhecimentos para fora do âmbito académico, de modo acessível, para que todos os fiéis cresçam num conhecimento do sentido teológico da Liturgia – é a questão decisiva e o alicerce de qualquer conhecimento e prática litúrgica – bem como do desenvolvimento do celebrar cristão, adquirindo a capacidade de compreender os textos eucológicos, os dinamismos rituais e a sua valência antropológica.
36. Penso na normalidade das nossas assembleia que se reúnem para celebrar a Eucaristia no dia do Senhor, domingo após domingo, Páscoa após Páscoa, em momentos particulares da vida das pessoas e das comunidades, nas diferentes etapas da vida: os ministros ordenados desempenham uma ação pastoral de primária importância quando tomam pela mão os fiéis batizados para os guiar dentro da repetida experiência da Páscoa. Recordemo-nos sempre de que é a Igreja, Corpo de Cristo, o sujeito celebrante, não só o sacerdote. O conhecimento que vem do estudo é só o primeiro passo para poder entrar no mistério celebrado. É evidente que para poder guiar os irmãos e irmãs, os ministros que presidem à assembleia devem conhecer o caminho, quer porque o estudaram no mapa da ciência teológica quer porque o frequentaram na prática de uma experiência de fé viva, alimentada pela oração e não certamente apenas como obrigação a satisfazer. No dia da ordenação cada presbítero ouve o bispo dizer-lhe: “Toma consciência do que virás a fazer; imita o que virás a realizar, e conforma a tua vida com o mistério da cruz do Senhor” [10].
37. Também o plano de estudos da Liturgia nos seminários deve ter em conta a extraordinária capacidade que a celebração tem em si própria para oferecer uma visão orgânica do saber teológico. Todas as disciplinas da teologia, cada qual segundo a sua perspetiva própria, devem mostrar a sua conexão íntima com a Liturgia, em virtude da qual se revela e se realiza a unidade da formação sacerdotal (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 16). Uma abordagem litúrgico-sapiencial da formação teológica nos seminários também teria, certamente, efeitos positivos na ação pastoral. Não há aspeto da vida eclesial que não encontre nela o seu cume e a sua fonte. A pastoral de conjunto, orgânica, integrada, mais do que ser o resultado de programas elaborados é a consequência do colocar no centro da vida da comunidade a celebração eucarística dominical, fundamento da comunhão. A compreensão teológica da Liturgia não permite de modo algum entender estas palavras como se tudo se reduzisse ao aspeto cultual. Uma celebração que não evangeliza não é autêntica, tal como não o é um anúncio que não leve ao encontro com o Ressuscitado na celebração: ambos, por fim, sem o testemunho da caridade são como o bronze que soa e como o címbalo que retine (cf. 1Cor 13, 1).
38. Para os ministros e para todos os batizados, a formação litúrgica neste seu primeiro significado não é algo que se possa pensar adquirir de uma vez por todas: dado que o dom do mistério celebrado supera a nossa capacidade de conhecimento, este compromisso deverá certamente acompanhar a formação permanente de cada qual, com a humildade dos pequenos, atitude que abre ao assombro.
39. Uma última observação sobre os seminários: para além do estudo devem também oferecer a possibilidade de experimentar uma celebração não só exemplar do ponto de vista ritual, mas autêntica, vital, que permita viver aquela verdadeira comunhão com Deus, à qual também o saber teológico deve tender. Só a ação do Espírito pode aperfeiçoar o nosso conhecimento do mistério de Deus, que não é questão de compreensão intelectual mas de relação que toca a vida. Essa experiência é fundamental para que, quando forem ministros ordenados, possam acompanhar as comunidades no mesmo percurso de conhecimento do mistério de Deus, que é mistério de amor.
40. Esta última consideração leva-nos a refletir sobre o segundo significado com que podemos entender a expressão “formação litúrgica”. Refiro-me ao ser formados, cada qual segundo a sua vocação, pela participação na celebração litúrgica. Mesmo o conhecimento de estudo de que acabei de falar, para que não se torne racionalismo, deve estar em função do realizar-se da ação formadora da Liturgia em cada crente em Cristo.
41. De quanto dissemos sobre a natureza da Liturgia resulta evidente que o conhecimento do mistério de Cristo, questão decisiva para a nossa vida, não consiste numa assimilação mental de uma ideia, mas numa real implicação existencial com a sua pessoa. Neste sentido a Liturgia não diz respeito ao “conhecimento” e a sua finalidade não é primariamente pedagógica (embora tenha um grande valor pedagógico: cf. Sacrosanctum Concilium, n. 33), mas é o louvor, a ação de graças pela Páscoa do Filho, cuja força de salvação alcança a nossa vida. A celebração diz respeito à realidade do nosso ser dóceis à ação do Espírito que nela opera, até que Cristo seja formado em nós (cf. Gl 4, 19). A plenitude da nossa formação é a conformação a Cristo. Repito: não se trata de um processo mental, abstrato, mas de chegar a ser Ele. É esta a finalidade para a qual foi dado o Espírito, cuja ação é sempre e só a de fazer o Corpo de Cristo. É assim com o pão eucarístico, é assim para todos os batizados chamados a tornarem-se cada vez mais aquilo que receberam em dom no Batismo, isto é, a serem membros do Corpo de Cristo. Escreve Leão Magno: “A nossa participação no Corpo e no Sangue de Cristo não tem outro fim a não ser transformar-nos naquilo que recebemos” [11].
42. Esta implicação existencial acontece – em continuidade e coerência com o método da encarnação – por via sacramental. A Liturgia é feita de coisas que são exatamente o oposto de abstrações espirituais: pão, vinho, azeite, água, perfume, fogo, cinzas, pedra, tecido, cores, corpo, palavras, sons, silêncios, gestos, espaço, movimento, ação, ordem, tempo, luz. Toda a criação é manifestação do amor de Deus: desde que o mesmo amor se manifestou em plenitude na Cruz de Jesus, toda a criação é atraída por Ele. É toda a criação que é assumida para ser posta ao serviço do encontro com o Verbo encarnado, crucificado, morto, ressuscitado, que subiu ao Pai. Tal como canta a oração sobre a água da fonte batismal, mas também a do óleo para o santo Crisma e as palavras da apresentação do pão e do vinho, frutos da terra e do trabalho do homem.
43. A Liturgia dá glória a Deus, não porque nós possamos acrescentar algo à beleza da luz inacessível em que Ele habita (cf. 1 Tm 6, 16) ou à perfeição do canto angélico que ressoa eternamente nas moradas celestes. A Liturgia dá glória a Deus porque nos permite, aqui, na terra, ver a Deus na celebração dos mistérios e, ao vê-lo, ser vivificados pela sua Páscoa: nós, que estávamos mortos por causa dos nossos pecados, por graça fomos restituídos à vida com Cristo (cf. Ef 2, 5), somos a glória de Deus. Ireneu, doctor unitatis, no-lo recorda: “A glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem consiste na visão de Deus: se já a revelação de Deus na Criação dá a vida a todos os seres que vivem na terra, quanto mais a manifestação do Pai através do Verbo é causa de vida para os que veem a Deus!” [12].
44. Escreve Guardini: “É assim que se esboça a primeira tarefa do trabalho da formação litúrgica: o homem deve voltar a ser de novo capaz de símbolos” [13]. É uma responsabilidade para todos, ministros ordenados e fiéis. A tarefa não é fácil porque o homem moderno tornou-se analfabeto, já não sabe ler os símbolos, quase nem sequer pressente a sua existência. Isso acontece também com o símbolo do nosso corpo. É símbolo porque íntima união da alma e do corpo, visibilidade da alma espiritual na ordem do corpóreo e nisto consiste a unicidade humana, a especificidade da pessoa irredutível a qualquer outra forma de ser vivo. A nossa abertura ao transcendente, a Deus, é constitutiva: não a reconhecer leva inevitavelmente a um não conhecimento, não só de Deus mas também de nós próprios. Basta ver o modo paradoxal como é tratado o corpo, ora cuidado de modo quase obsessivo na sequela do mito da eterna juventude, ora reduzido a uma materialidade à qual se nega qualquer dignidade. O facto é que não se pode dar valor ao corpo partindo apenas do corpo. Todo o símbolo é, ao mesmo tempo, poderoso e frágil: se não é respeitado, se não é tratado pelo que é, quebra-se, perde a sua força, torna-se insignificante.
Já não temos o olhar de São Francisco que olhava para o sol – que chamava irmão porque assim o sentia – via-o “belo e radiante com grande esplendor” e, cheio de assombro, cantava: “de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem” [14]. O ter perdido a capacidade de compreender o valor simbólico do corpo e de todas as criaturas torna a linguagem simbólica da Liturgia quase inacessível ao homem moderno. Não se trata, contudo, de renunciar a essa linguagem: não é possível renunciar a ela porque foi o que a Santíssima Trindade escolheu para nos alcançar na carne do Verbo. Trata-se, antes, de recuperar a capacidade de utilizar e de compreender os símbolos da Liturgia. Não devemos desesperar, porque no homem esta dimensão, como acabei de dizer, é constitutiva e, apesar dos males do materialismo e do espiritualismo – ambos negação da unidade corpo e alma – está sempre pronta a reemergir, como toda a verdade.
45. A pergunta que nos colocamos é, portanto, a seguinte: como voltar a ser capazes de símbolos? Como voltar a sabê-los ler para os poder viver? Bem sabemos que a celebração dos sacramentos é – por graça de Deus – eficaz em si mesma (ex opere operato) mas isso não garante uma plena implicação das pessoas sem um modo adequado de se colocar perante a linguagem da celebração. A leitura simbólica não é uma questão de conhecimento mental, de aquisição de conceitos, mas é uma experiência vital.
46. Em primeiro lugar devemos readquirir a confiança na criação. Quero dizer que as coisas – com que “se fazem” os sacramentos – vêm de Deus, orientam-se para Ele e por Ele foram assumidas, de modo particular com a encarnação, para se tornarem instrumentos de salvação, veículos do Espírito, canais de graça. Note-se aqui toda a distância, quer da visão materialista quer da visão espiritualista. Se as coisas criadas são parte irrenunciável do agir sacramental que realiza a nossa salvação, devemos predispor-nos em relação a elas com um novo olhar que não seja superficial mas respeitoso e agradecido. Desde a origem elas contêm o germe da graça santificante dos sacramentos.
47. Uma outra questão decisiva – sempre refletindo sobre como a Liturgia nos forma – é a educação necessária para poder adquirir a atitude interior que nos permite utilizar e compreender os símbolos litúrgicos. Exprimo-o de modo simples. Penso nos pais e, mais ainda, nos avós, mas também nos nossos párocos e catequistas. Muitos de nós aprendemos, precisamente com eles, a força dos gestos da liturgia, como por exemplo o sinal da cruz, o estar de joelhos, as fórmulas da nossa fé. É possível que já não nos lembremos bem, mas facilmente podemos imaginar o gesto de uma mão maior que toma a mão pequena de uma criança e a acompanha lentamente no traçar pela primeira vez o sinal da nossa salvação. Ao movimento juntam-se as palavras, também elas lentas, quase a querer tomar posse de cada instante daquele gesto, de todo o corpo: “Em nome do Pai … e do Filho … e do Espírito Santo … Amen”. Para depois deixar a mão da criança e vê-la a repetir sozinha, prontos a ajudá-la, aquele gesto acabado de entregar, como uma veste que crescerá com ela, vestindo-a no modo que só o Espírito conhece. A partir daquele momento, aquele gesto, a sua força simbólica, pertence-nos ou, talvez seja melhor dizer, nós pertencemos àquele gesto que nos dá forma, somos formados por ele. Não são precisos muitos discursos, não é necessário ter compreendido tudo daquele gesto: é preciso ser-se pequenino quer no entregá-lo quer no recebê-lo. O resto é obra do Espírito. Assim fomos iniciados na linguagem simbólica. Desta riqueza não podemos deixar-nos despojar. Crescendo poderemos ter mais meios para poder compreender, mas sempre na condição de continuarmos pequenos.
Ars celebrandi
48. Um modo para conservar e para crescer na compreensão vital dos símbolos da Liturgia é certamente o cuidado da arte de celebrar. Também esta expressão é objeto de diversas interpretações. Ela esclarece-se se for compreendida, tendo como referência o sentido teológico da Liturgia, descrito no número 7 da Sacrosanctum Concilium, a que já nos referimos diversas vezes. A ars celebrandi não se pode reduzir à mera observância de um aparato de rubricas, e ainda menos pode ser pensada como uma fantasiosa – por vezes selvagem – criatividade sem regras. O rito é por si mesmo uma norma e a norma nunca é fim para si mesma, mas está sempre ao serviço da realidade mais alta que quer salvaguardar.
49. Como qualquer arte, requer diversos conhecimentos.
Em primeiro lugar, a compreensão do dinamismo que descreve a Liturgia. O momento da ação celebrativa é o lugar em que, através do memorial se torna presente o mistério pascal para que os batizados, em virtude da sua participação, possam experimentá-lo na sua vida: sem esta compreensão cai-se facilmente no exteriorismo (mais ou menos refinado) e no rubricismo (mais ou menos rígido).
Em seguida, é preciso conhecer o modo como o Espírito Santo age em cada celebração: a arte de celebrar deve estar em sintonia com a ação do Espírito. Só assim estará a salvo de subjetivismos, que são o fruto da prevalência de sensibilidades individuais, e de culturalismos, que são aquisições acríticas de elementos culturais que nada têm a ver com um processo correto de inculturação.
Por fim, é necessário conhecer as dinâmicas da linguagem simbólica, a sua peculiaridade, a sua eficácia.
50. Destes breves acenos, resulta evidente que a arte de celebrar não se pode improvisar. Como qualquer arte, requer aplicação assídua. A um artesão basta a técnica; a um artista, para além de conhecimentos técnicos, não pode faltar a inspiração que é uma forma positiva de posse: o verdadeiro artista não possui uma arte, é possuído por ela. Não se aprende a arte de celebrar porque se frequenta um curso de oratória ou de técnicas de comunicação persuasiva (não julgo as intenções, vejo os efeitos). Qualquer instrumento pode servir, mas deve sempre submeter-se à natureza da Liturgia e à ação do Espírito. Há que dedicar-se diligentemente à celebração, deixando que seja a própria celebração a transmitir-nos a sua arte. Escreve Guardini: “Devemos dar-nos conta de quão profundamente ainda estamos enraizados no individualismo e no subjetivismo, de até que ponto nos desabituamos do apelo das grandezas e de como é pequena a medida da nossa vida religiosa. Deve despertar-se de novo o sentido do alto estilo da oração, a vontade de implicar também nela a nossa existência. Mas o caminho para estas metas é a disciplina, a renúncia a um sentimentalismo mole; um trabalho sério, feito em obediência à Igreja, em relação com o nosso ser e com o nosso comportamento religioso” [15]. É assim que se aprende a arte de celebrar.
51. Ao falar deste assunto, somos levados a pensar que só diga respeito aos ministros ordenados que desempenham o serviço da presidência. Na realidade, é uma atitude que todos os batizados são chamados a viver. Penso em todos os gestos e palavras que pertencem à assembleia: o reunir-se, o avançar em procissão, o estar sentados, de pé, de joelhos, o cantar, o estar em silêncio, o aclamar, o olhar, o ouvir. São muitos os modos com que a assembleia, “como um só homem” (Ne 8, 1), participa na celebração. Realizar todos juntos o mesmo gesto, falar todos juntos a uma só voz, transmite a cada um a força de toda a assembleia. É uma uniformidade que não só não mortifica mas, pelo contrário, educa cada fiel a descobrir a unicidade autêntica da própria personalidade, não em atitudes individualistas mas na consciência de ser um só corpo. Não se trata de ter de seguir um protocolo de boas maneiras litúrgico: trata-se antes de uma “disciplina” – no sentido usado por Guardini – que, se observada com autenticidade, nos forma: são gestos e palavras que põem ordem dentro do nosso mundo interior fazendo-nos viver sentimentos, atitudes, comportamentos. Não são a enunciação de um ideal em que procuramos inspirar-nos, mas são uma ação que implica o corpo na sua totalidade, ou seja, no seu ser unidade de alma e corpo.
52. Entre os gestos rituais que pertencem a toda a assembleia, o silêncio ocupa um lugar de importância absoluta. Várias vezes é expressamente prescrito nas rubricas: toda a celebração eucarística é imersa no silêncio que precede o seu início e marca cada instante do seu desenvolvimento ritual. Efetivamente, está presente no ato penitencial; após o convite à oração; na liturgia da Palavra (antes das leituras, entre as leituras e após a homilia); na oração eucarística; depois da comunhão [16]. Não se trata de um refúgio onde esconder-se para um isolamento intimista, quase sofrendo a ritualidade como se de uma distração se tratasse: um tal silêncio estaria em contradição com a própria essência da celebração. O silêncio litúrgico é muito mais: é o símbolo da presença e da ação do Espírito Santo que anima toda a ação celebrativa; por esse motivo muitas vezes constitui o ápice da sequência ritual. Precisamente porque é símbolo do Espírito tem o poder de exprimir a sua ação multiforme. Assim, retomando os momentos que acima recordei, o silêncio move ao arrependimento e ao desejo de conversão; suscita a escuta da Palavra e a oração; dispõe à adoração do Corpo e do Sangue de Cristo; sugere a cada um, na intimidade da comunhão, o que o Espírito quer realizar na vida para nos conformar ao Pão partido. Por isso, somos chamados a realizar com extremo cuidado o gesto simbólico do silêncio: é nele que o Espírito nos dá forma.
53. Cada gesto e cada palavra contém uma ação precisa, que é sempre nova porque encontra um instante sempre novo da nossa vida. Explico o que quero dizer com um exemplo simples. Ajoelhamo-nos para pedir perdão; para vergar o nosso orgulho; para entregar a Deus o nosso pranto; para suplicar uma intervenção sua; para lhe agradecer um dom recebido: é sempre o mesmo gesto que diz essencialmente o nosso ser pequeninos diante de Deus. Todavia, feito em momentos diferentes do nosso viver, plasma a nossa interioridade profunda, para depois se manifestar exteriormente na nossa relação com Deus e com os irmãos. Também o ajoelhar-se deve ser feito com arte, quer dizer, com uma plena consciência do seu sentido simbólico e da necessidade que nós temos de exprimir com este gesto o nosso modo de estar na presença de Senhor. Se tudo isto é verdade para um simples gesto, quanto mais não o será para a celebração da Palavra? Que arte somos chamados a apreender ao proclamar a Palavra, ao escutá-la, ao fazê-la inspiração da nossa oração, ao fazê-la tornar-se vida? Tudo isto merece o máximo cuidado, não formal, exterior, mas vital, interior, porque cada gesto e cada palavra da celebração, expresso com “arte”, forma a personalidade cristã de cada um e da comunidade.
54. Se é verdade que a ars celebrandi diz respeito a toda a assembleia que celebra, é igualmente verdade que os ministros ordenados a devem cuidar com especial cuidado. Ao visitar as comunidades cristãs reparei, muitas vezes, que o seu modo de viver a celebração está condicionado – para o bem e, infelizmente, também para o mal – pelo modo como o seu pároco preside à assembleia. Poderia dizer-se que há diversos “modelos” de presidência. Eis uma possível lista de atitudes que, embora sendo opostos entre si, caraterizam a presidência de modo certamente inadequado: rigidez austera ou criatividade exagerada; misticismo espiritualizante ou funcionalismo prático; precipitação apressada ou lentidão acentuada; descuido negligente ou excessiva minúcia; excessiva afabilidade ou impassibilidade hierática. Apesar da variedade desta amostra, penso que a inadequação destes modelos de presidência tem uma raiz comum: um personalismo exacerbado do estilo celebrativo que, por vezes, manifesta uma mal disfarçada mania de protagonismo. Isto torna-se ainda mais evidente quando as nossas celebrações são transmitidas em rede, o que nem sempre é oportuno e sobre o qual devemos refletir. Entendamo-nos: não são estas as atitudes mais frequentes, mas não é raro que as assembleias sofram estes “maus tratos”.
55. Muito se poderia dizer acerca da importância e delicadeza do ato de presidir. Em várias ocasiões me demorei sobre a tarefa exigente de fazer a homilia [17]. Limito-me agora a algumas considerações mais amplas, querendo sempre refletir convosco sobre como somos formados pela Liturgia. Penso na normalidade das Missas dominicais nas nossas comunidades: refiro-me, portanto, aos presbíteros mas, implicitamente, a todos os ministros ordenados.
56. O presbítero vive a sua típica participação na celebração em virtude do dom recebido no sacramento da Ordem: esta especificidade exprime-se, precisamente, na presidência. Como todos os ofícios que é chamado a desempenhar, não se trata primariamente de uma tarefa que lhe é confiada pela comunidade, mas antes da consequência da efusão do Espírito Santo recebida na ordenação que o habilita para essa tarefa. Também o presbítero é formado pelo seu presidir à assembleia que celebra.
57. Para que este serviço seja bem feito – com arte, precisamente – é de fundamental importância que o presbítero tenha, acima de tudo, uma viva consciência de ser, por misericórdia, uma especial presença do Ressuscitado. O ministro ordenado é ele próprio uma das modalidades da presença do Senhor que tornam a assembleia cristã única, diferente de qualquer outra (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 7). Isto dá espessura “sacramental” – em sentido amplo – a todos os gestos e palavras de quem preside. A assembleia tem o direito de poder sentir nesses gestos e nessas palavras o desejo que o Senhor tem, hoje como na última Ceia, de continuar a comer a Páscoa connosco. O Ressuscitado é, portanto, o protagonista; não o são, seguramente, as nossas imaturidades que procuram, assumindo um papel e uma atitude, um modo de se apresentar que não podem ter. O próprio presbítero deve ser absorvido por este desejo de comunhão que o Senhor tem para com todos: é como se estivesse no meio entre o coração ardente de amor de Jesus e o coração de cada fiel, objeto do seu amor. Presidir à Eucaristia é submergir-se na fornalha do amor de Deus. Quando nos é dado compreender, ou até só intuir esta realidade, já não precisamos de um diretório que nos imponha um comportamento adequado. Se precisamos dele é pela dureza do nosso coração. A norma mais alta e, portanto, mais exigente, é a própria realidade da celebração eucarística que seleciona palavras, gestos, sentimentos, levando-nos a compreender se são ou não adequados à função que devemos desempenhar. É evidente que também isto não se improvisa: é uma arte, requer do presbítero aplicação, isto é, uma frequência assídua do fogo de amor que o Senhor veio trazer à terra (cf. Lc 12, 49).
58. Quando a primeira comunidade parte o pão em obediência ao mandato do Senhor, fá-lo sob o olhar de Maria que acompanha os primeiros passos da Igreja: “unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus” (At 1, 14). A Virgem Mãe “vela” sobre os gestos do seu Filho confiados aos Apóstolos. Tal como, depois de ter acolhido as palavras do anjo Gabriel, guardou no seu seio o Verbo feito carne, assim a Virgem continua a guardar no seio da Igreja aqueles gestos que fazem o Corpo do seu Filho. O presbítero que, em virtude do dom recebido com o sacramento da Ordem, repete esses gestos, é guardado no seio da Virgem. Será preciso ainda uma norma para nos dizer como nos devemos comportar?
59. Tornados instrumentos para fazer deflagrar o fogo do seu amor na terra, guardados no seio de Maria, Virgem feita Igreja (como cantava São Francisco), os presbíteros deixam-se trabalhar pelo Espírito que quer levar a cumprimento a obra que começou na sua ordenação. A ação do Espírito oferece-lhes a possibilidade de exercer a presidência da assembleia eucarística com o temor de Pedro, consciente do seu ser pecador (cf. Lc 5, 1-11), com a humildade forte do servo sofredor (cf. Is 42 ss), com o desejo de “ser comido” pelo povo que lhes está confiado no exercício quotidiano do ministério.
60. É a própria celebração que educa para esta qualidade de presidência, não é, repetimo-lo, uma adesão mental, se bem que toda a nossa mente, tal como a nossa sensibilidade, esteja nela implicada. O presbítero é, pois, formado para a presidência pelas palavras e pelos gestos que a liturgia põe nos seus lábios e nas suas mãos.
Não se senta num trono [18] porque o Senhor reina com a humildade de quem serve.
Não rouba a centralidade do altar, “sinal de Cristo de cujo lado aberto correu sangue e água, nos quais encontram fundamento os sacramentos da Igreja. (…) Seja o centro do nosso louvor e da nossa ação de graças” [19].
Aproximando-se do altar para a apresentação dos dons, o presbítero é educado na humildade e no arrependimento pelas palavras: “De coração humilhado e contrito sejamos recebidos por Vós, Senhor. Assim o nosso sacrifício seja agradável a vossos olhos” [20].
Não pode presumir de si mesmo para o ministério que lhe está confiado porque a Liturgia o convida a pedir para ser purificado, no sinal da água: “Lavai-me, Senhor, da minha iniquidade e purificai-me do meu pecado” [21].
As palavras que a Liturgia põe nos seus lábios têm conteúdos diversos que requerem tonalidades específicas: pela importância destas palavras é exigida ao presbítero uma verdadeira ars dicendi. Elas dão forma aos seus sentimentos interiores, ora na súplica ao Pai em nome da assembleia, ora na exortação dirigida à assembleia, ora na aclamação a uma só voz com toda a assembleia.
Com a Oração Eucarística – na qual também todos os batizados participam escutando “com reverência e silêncio” e intervindo com “aclamações” [22] – quem preside tem a força, em nome de todo o povo santo, de recordar ao Pai a oferta do seu Filho na última Ceia, para que esse dom imenso se torne novamente presente no altar. Nessa oferta participa com a oferta de si mesmo. O presbítero não pode narrar ao Pai a última Ceia sem participar nela. Não pode dizer: “Tomai todos e comei: isto é o meu Corpo entregue por vós” e não viver o mesmo desejo de oferecer o seu próprio corpo, a sua própria vida pelo povo a si confiado. É isto o que acontece no exercício do seu ministério.
Por tudo isto, e por muito mais, o presbítero é continuamente formado na ação celebrativa.
* * *
61. Quis simplesmente oferecer algumas reflexões, que certamente não esgotam o imenso tesouro da celebração dos santos mistérios. Peço a todos os bispos, aos presbíteros e aos diáconos, aos formadores dos seminários, aos docentes das faculdades e das escolas de teologia, a todos os catequistas que ajudem o povo santo de Deus a beberem daquela que é desde sempre a primeira fonte da espiritualidade cristã. Somos continuamente chamados a redescobrir a riqueza dos princípios gerais expostos nos primeiros números da Sacrosanctum Concilium, compreendendo a íntima ligação entre a primeira das Constituições conciliares e todas as demais. Por este motivo, não podemos voltar àquela forma ritual que os Padres conciliares, cum Petro e sub Petro, sentiram a necessidade de reformar, aprovando, sob a guia do Espírito e segundo a sua consciência de pastores, os princípios dos quais nasceu a reforma. Os santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, aprovando os livros litúrgicos reformados ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II garantiram a fidelidade da reforma ao Concílio. Por este motivo escrevi Traditionis custodes, para que a Igreja possa elevar, na variedade das línguas “uma só e idêntica oração” [23] capaz de exprimir a sua unidade. Pretendo que esta unidade, como já escrevi, seja restabelecida em toda a Igreja de Rito Romano.
62. Gostaria que esta Carta nos ajudasse a reavivar o assombro pela beleza da verdade do celebrar cristão, a recordar a necessidade de uma formação litúrgica autêntica e a reconhecer a importância de uma arte da celebração que esteja ao serviço da verdade do mistério pascal e da participação de todos os batizados, cada qual com a especificidade da sua vocação.
Toda esta riqueza não está longe de nós: está nas nossas igrejas, nas nossas festas cristãs, na centralidade do domingo, na força dos sacramentos que celebramos. A vida cristã é um contínuo caminho de crescimento: somos chamados a deixar-nos formar com alegria e na comunhão.
63. Por isso desejo deixar-vos mais uma indicação para prosseguir no nosso caminho. Convido-vos a redescobrir o sentido do ano litúrgico e do dia do Senhor: também esta é uma indicação do Concílio (cf. Sacrosanctum Concilium, nn. 102-111).
64. À luz de tudo o que acima recordámos, compreendemos que o ano litúrgico é para nós a possibilidade de crescer no conhecimento do mistério de Cristo, imergindo a nossa vida no mistério da sua Páscoa, na esperança da sua vinda. Esta é uma verdadeira formação contínua. A nossa vida não é uma sucessão casual e caótica de acontecimentos mas um percurso que, de Páscoa em Páscoa, nos conforma a Ele “enquanto esperamos em jubilosa esperança a vinda gloriosa de Jesus Cristo, nosso Salvador” [24].
65. No decurso do tempo feito novo pela Páscoa, em cada oito dias a Igreja celebra no domingo o acontecimento da salvação. O domingo, antes de ser um preceito, é um dom que Deus faz ao seu povo (por esse motivo a Igreja o guarda como um preceito). A celebração dominical oferece à comunidade cristã a possibilidade de ser formada pela Eucaristia. De domingo em domingo, a Palavra do Ressuscitado ilumina a nossa existência, querendo realizar em nós aquilo para que foi mandada (cf. Is 55, 10-11). De domingo em domingo, a comunhão no Corpo e no Sangue de Cristo quer fazer também da nossa vida um sacrifício agradável ao Pai, na comunhão fraterna que se faz partilha, acolhimento e serviço. De domingo em domingo, a força do Pão partido nos sustenta no anúncio do Evangelho no qual se manifesta a autenticidade da nossa celebração.
Abandonemos as polémicas para escutarmos juntos o que o Espírito diz à Igreja, conservemos a comunhão, continuemos a maravilhar-nos pela beleza da Liturgia. Foi-nos dada a Páscoa, deixemo-nos guardar pelo desejo que o Senhor continua a ter de a poder comer connosco. Sob o olhar de Maria, Mãe da Igreja.
Roma, em São João de Latrão, 29 de junho, solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo do ano 2022, décimo do meu pontificado.
FRANCISCO
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Que o homem todo se espante,
que o mundo todo trema, que o céu exulte,
quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote,
está presente Cristo, o Filho de Deus vivo!
Oh! grandeza admirável, oh! condescendência assombrosa!
Oh! humildade sublime, oh! sublimidade humilde,
que o Senhor de todo o universo, Deus e Filho de Deus,
se humilde a ponto de se esconder, para nossa salvação,
nas aparências de um bocado de pão.
Vede, irmãos, a humildade de Deus
e derramai diante dele os vossos corações;
humilhai-vos também vós, para que ele vos exalte.
Em conclusão: nada de vós mesmos retenhais para vós,
a fim de que totalmente vos possua
Aquele que totalmente a vós se dá.
São Francisco de Assis
Carta a toda a Ordem, 2, 26-29
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Notas
[1] Cf. Leão Magno, Sermão na Ascensão do Senhor 72, 2, 1: “… o que no nosso Salvador era visível, passou para os seus mistérios”, para os Sacramentos.
[2] “Prefácio Pascal III” - Missal Romano (1992), p. 471.
[3] Cf. “Bênção da Fonte Batismal, na Vigília Pascal”: Missal Romano (1992), pp. 315-316.
[4] Const. dogm. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, n. 5; cf. Agostinho, Comentários sobre os Salmos: Sal. 138, 2; “Oração depois da VII Leitura, na Vigília Pascal”: Missal Romano (1992), p. 306-307; “Oração sobre as Oblatas, na Missa pela Igreja (B)”: Missal Romano (1992), p. 1182.
[5] Cf. Agostinho, Tratado sobre o Evangelho de João, 26, 13.
[6] Carta encíclica Mediator Dei (20 de novembro de 1947): AAS 39 (1947), 532.
[7] AAS 56 (1964), 34.
[8] R. Guardini, “Liturgische Bildung” (1923): Liturgie und liturgische Bildung (Mainz 1992), p. 43; trad. it. Formazione liturgica (Brescia 2022), p. 69.
[9] Idem, “Der Kultakt und die gegenwärtige Aufgabe der Liturgischen Bildung” (1964): Liturgie und liturgische Bildung (Mainz 1992), p. 14; trad. it.”L’atto di culto e il compito attuale della formazione liturgica. Una lettera” (1964): Formazione liturgica (Brescia 2022), p. 33.
[10] Pontifical Romano , Ordenação do Bispo, dos Presbíteros e Diáconos (1992), p. 91.
[11] Leão Magno, Sermão XII: Sobre a Paixão III, 7.
[12] Ireneu de Lião, Contra as heresias IV, 20, 7.
[13] R. Guardini, “Liturgische Bildung” (1923): Liturgie und liturgische Bildung (Mainz 1992), p. 36; trad. it. Formazione Liturgica (Brescia 2022), p. 60.
[14] “O Cântico das Criaturas” : Fonti Francescane, n. 263.
[15] R. Guardini, “Liturgische Bildung” (1923): Liturgie und liturgische Bildung (Mainz 1992), p. 99; trad. it. Formazione Liturgica (Brescia 2022), p. 139.
[16] Cf. Instrução Geral do Missal Romano, nn. 45; 51; 54-56; 66; 71; 78; 84; 88; 271.
[17] Cf. Exortação apostólica Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), nn. 135-144.
[18] Cf. Instrução Geral do Missal Romano, n. 271.
[19] “Oração da Dedicação do Altar”: Pontifical Romano – Dedicação da Igreja e do Altar (1990), p. 119.
[20] Missal Romano (1992), p. 451.
[21] Ibidem.
[22] Cf. Instrução Geral do Missal Romano, nn. 78-79.
[23] Cf. Paulo VI, Constituição Apostólica Missale Romanum (3 de abril de 1969): AAS 61 (1969), 222.
[24] Missal Romano (1992), p. 545.