
Eugênio Telles
Eugênio Telles é catequista em constante formação, publicitário, empreendedor, podcaster e foi coordenador da Pastoral da Comunicação no Santuário da Divina Misericórdia e no Vicariato Suburbano da ArqRio.
FC!#475 - 58º DMCS: Inteligência artificial e sabedoria do coração
MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA O LVIII DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS
12 de maio de 2024
Domingo da Ascensão do Senhor
Inteligência artificial e sabedoria do coração:
para uma comunicação plenamente humana
Queridos irmãos e irmãs!
A evolução dos sistemas da chamada «inteligência artificial», sobre a qual já me debrucei na recente Mensagem para o Dia Mundial da Paz, está a modificar de forma radical também a informação e a comunicação e, através delas, algumas bases da convivência civil. Trata-se duma mudança que afeta não só aos profissionais, mas a todos. A rápida difusão de maravilhosas invenções, cujo funcionamento e potencialidades são indecifráveis para a maior parte de nós, suscita um espanto que oscila entre entusiasmo e desorientação e põe-nos inevitavelmente diante de questões fundamentais: O que é então o homem, qual é a sua especificidade e qual será o futuro desta nossa espécie chamada homo sapiens na era das inteligências artificiais? Como podemos permanecer plenamente humanos e orientar para o bem a mudança cultural em curso?
A partir do coração
Antes de mais nada, convém limpar o terreno das leituras catastróficas e dos seus efeitos paralisadores. Já há um século Romano Guardini, refletindo sobre a técnica e o homem, convidava a não se inveterar contra o «novo» na tentativa de «conservar um mundo belo condenado a desaparecer». Ao mesmo tempo, porém, com veemência profética advertia: «O nosso posto é no devir. Devemos inserir-nos nele, cada um no seu lugar (...), aderindo honestamente, mas permanecendo sensíveis, com um coração incorruptível, a tudo o que nele houver de destrutivo e não-humano». E concluía: «Trata- se – é verdade – de problemas de natureza técnica, científica e política; mas só podem ser resolvidos passando pelo homem. Deve-se formar um novo tipo humano, dotado duma espiritualidade mais profunda, duma nova liberdade e duma nova interioridade». [1]
Neste tempo que corre o risco de ser rico em técnica e pobre em humanidade, a nossa reflexão só pode partir do coração humano. [2] Somente dotando-nos dum olhar espiritual, apenas recuperando uma sabedoria do coração é que poderemos ler e interpretar a novidade do nosso tempo e descobrir o caminho para uma comunicação plenamente humana. O coração, entendido biblicamente como sede da liberdade e das decisões mais importantes da vida, é símbolo de integridade e de unidade, mas evoca também os afetos, os desejos, os sonhos, e sobretudo é o lugar interior do encontro com Deus. Por isso a sabedoria do coração é a virtude que nos permite combinar o todo com as partes, as decisões com as suas consequências, as grandezas com as fragilidades, o passado com o futuro, o eu com o nós.
Esta sabedoria do coração deixa-se encontrar por quem a busca e deixa-se ver a quem a ama; antecipa-se a quem a deseja e vai à procura de quem é digno dela (cf. Sab 6, 12-16). Está com quem aceita conselho (cf. Pr 13, 10), com quem tem um coração dócil, um coração que escuta (cf. 1 Re 3, 9). É um dom do Espírito Santo, que permite ver as coisas com os olhos de Deus, compreender as interligações, as situações, os acontecimentos e descobrir o seu sentido. Sem esta sabedoria, a existência torna-se insípida, pois é precisamente a sabedoria que dá gosto à vida: a sua raiz latina sapere associa-a ao sabor.
Oportunidade e perigo
Não podemos esperar esta sabedoria das máquinas. Embora o termo inteligência artificial já tenha suplantado o termo mais correto utilizado na literatura científica de machine learning (aprendizagem automática), o próprio uso da palavra «inteligência» é falacioso. É certo que as máquinas têm uma capacidade imensamente maior que os seres humanos de memorizar os dados e relacioná-los entre si, mas compete ao homem, e só a ele, descodificar o seu sentido. Não se trata, pois, de exigir das máquinas que pareçam humanas; mas de despertar o homem da hipnose em que cai devido ao seu delírio de omnipotência, crendo-se sujeito totalmente autónomo e autorreferencial, separado de toda a ligação social e esquecido da sua condição de criatura.
Realmente o homem sempre teve experiência de não se bastar a si mesmo, e procura superar a sua vulnerabilidade valendo-se de todos os meios. Partindo dos primeiros instrumentos pré-históricos, utilizados como prolongamento dos braços, passando pelos meios de comunicação como extensão da palavra, chegamos hoje às máquinas mais sofisticadas que funcionam como auxílio do pensamento. Entretanto cada uma destas realidades pode ser contaminada pela tentação primordial de se tornar como Deus sem Deus (cf. Gen 3), isto é, a tentação de querer conquistar com as próprias forças aquilo que deveria, pelo contrário, acolher como dom de Deus e viver na relação com os outros.
Cada coisa nas mãos do homem torna-se oportunidade ou perigo, segundo a orientação do coração. O próprio corpo, criado para ser lugar de comunicação e comunhão, pode tornar-se instrumento de agressão. Da mesma forma, cada prolongamento técnico do homem pode ser instrumento de amoroso serviço ou de domínio hostil. Os sistemas de inteligência artificial podem contribuir para o processo de libertação da ignorância e facilitar a troca de informações entre diferentes povos e gerações. Por exemplo, podem tornar acessível e compreensível um património enorme de conhecimentos, escrito em épocas passadas, ou permitir às pessoas comunicarem em línguas que lhes são desconhecidas. Mas simultaneamente podem ser instrumentos de «poluição cognitiva», alteração da realidade através de narrações parcial ou totalmente falsas, mas acreditadas – e partilhadas – como se fossem verdadeiras. Basta pensar no problema da desinformação que enfrentamos, há anos, no caso das fake news [3] e que hoje se serve da deep fake, isto é, da criação e divulgação de imagens que parecem perfeitamente plausíveis mas são falsas (já me aconteceu a mim também ser objeto delas), ou mensagens-áudio que usam a voz duma pessoa, dizendo coisas que ela própria nunca disse. A simulação, que está na base destes programas, pode ser útil nalguns campos específicos, mas torna-se perversa quando distorce as relações com os outros e com a realidade.
Já desde a primeira vaga de inteligência artificial – a das redes sociais – compreendemos a sua ambivalência, constatando a par das oportunidades também os riscos e as patologias. O segundo nível de inteligências artificiais geradoras marca, indiscutivelmente, um salto qualitativo. Por conseguinte é importante ter a possibilidade de perceber, compreender e regulamentar instrumentos que, em mãos erradas, poderiam abrir cenários negativos. Os algoritmos, como tudo o mais que sai da mente e das mãos do homem, não são neutros. Por isso é necessário prevenir propondo modelos de regulamentação ética para contornar os efeitos danosos, discriminadores e socialmente injustos dos sistemas de inteligência artificial e contrastar a sua utilização para a redução do pluralismo, a polarização da opinião pública ou a construção do pensamento único. Assim reitero aqui a minha exortação à «Comunidade das Nações a trabalhar unida para adotar um tratado internacional vinculativo, que regule o desenvolvimento e o uso da inteligência artificial nas suas variadas formas». [4] Entretanto, como em todo o âmbito humano, não é suficiente a regulamentação.
Crescer em humanidade
Somos chamados a crescer juntos, em humanidade e como humanidade. O desafio que temos diante de nós é realizar um salto de qualidade para estarmos à altura duma sociedade complexa, multiétnica, pluralista, multirreligiosa e multicultural. Cabe a nós questionar-nos sobre o progresso teórico e a utilização prática destes novos instrumentos de comunicação e conhecimento. As suas grandes possibilidades de bem são acompanhadas pelo risco de que tudo se transforme num cálculo abstrato que reduz as pessoas a dados, o pensamento a um esquema, a experiência a um caso, o bem ao lucro, com o risco sobretudo de que se acabe por negar a singularidade de cada pessoa e da sua história, dissolvendo a realidade concreta numa série de dados estatísticos.
A revolução digital pode tornar-nos mais livres, mas certamente não conseguirá fazê-lo se nos prender nos modelos designados hoje como echo chamber (câmara de eco). Nestes casos, em vez de aumentar o pluralismo da informação, corre-se o risco de se perder num pântano anónimo, favorecendo os interesses do mercado ou do poder. Não é aceitável que a utilização da inteligência artificial conduza a um pensamento anónimo, a uma montagem de dados não certificados, a uma desresponsabilização editorial coletiva. A representação da realidade por big data (grandes dados), embora funcional para a gestão das máquinas, implica na realidade uma perda substancial da verdade das coisas, o que dificulta a comunicação interpessoal e corre o risco de danificar a nossa própria humanidade. A informação não pode ser separada da relação existencial: implica o corpo, o situar-se na realidade; pede para correlacionar não apenas dados, mas experiências; exige o rosto, o olhar, a compaixão e ainda a partilha.
Penso na narração das guerras e naquela «guerra paralela» que se trava através de campanhas de desinformação. E penso em tantos repórteres que ficam feridos ou morrem no local em efervescência para nos permitir a nós ver o que viram os olhos deles. Pois só tocando pessoalmente o sofrimento das crianças, das mulheres e dos homens é que poderemos compreender o caráter absurdo das guerras.
A utilização da inteligência artificial poderá proporcionar um contributo positivo no âmbito da comunicação, se não anular o papel do jornalismo no local, antes pelo contrário se o apoiar; se valorizar o profissionalismo da comunicação, responsabilizando cada comunicador; se devolver a cada ser humano o papel de sujeito, com capacidade crítica, da própria comunicação.
Interrogativos de hoje e de amanhã
E surgem, espontâneas, algumas questões: Como tutelar o profissionalismo e a dignidade dos trabalhadores no campo da comunicação e da informação, juntamente com a dos utentes em todo o mundo? Como garantir a interoperabilidade das plataformas? Como fazer com que as empresas que desenvolvem plataformas digitais assumam as suas responsabilidades relativamente ao que divulgam daí tirando os seus lucros, de forma análoga ao que acontece com os editores dos meios de comunicação tradicionais? Como tornar mais transparentes os critérios subjacentes aos algoritmos de indexação e desindexação e aos motores de pesquisa, capazes de exaltar ou cancelar pessoas e opiniões, histórias e culturas? Como garantir a transparência dos processos de informação? Como tornar evidente a paternidade dos escritos e rastreáveis as fontes, evitando o para-vento do anonimato? Como deixar claro se uma imagem ou um vídeo retrata um acontecimento ou o simula? Como evitar que as fontes se reduzam a uma só, a um pensamento único elaborado algoritmicamente? E, ao contrário, como promover um ambiente adequado para salvaguardar o pluralismo e representar a complexidade da realidade? Como podemos tornar sustentável este instrumento poderoso, caro e extremamente energívoro? Como podemos torná-lo acessível também aos países em vias de desenvolvimento?
A partir das respostas a estas e outras questões compreenderemos se a inteligência artificial acabará por construir novas castas baseadas no domínio informativo, gerando novas formas de exploração e desigualdade ou se, pelo contrário, trará mais igualdade, promovendo uma informação correta e uma maior consciência da transição de época que estamos a atravessar, favorecendo a escuta das múltiplas carências das pessoas e dos povos, num sistema de informação articulado e pluralista. Dum lado, vemos assomar o espetro duma nova escravidão, do outro uma conquista de liberdade; dum lado, a possibilidade de que uns poucos condicionem o pensamento de todos, do outro a possibilidade de que todos participem na elaboração do pensamento.
A resposta não está escrita; depende de nós. Compete ao homem decidir se há de tornar-se alimento para os algoritmos ou nutrir o seu coração de liberdade, sem a qual não se cresce na sabedoria. Esta sabedoria amadurece valorizando o tempo e abraçando as vulnerabilidades. Cresce na aliança entre as gerações, entre quem tem memória do passado e quem tem visão de futuro. Somente juntos é que cresce a capacidade de discernir, vigiar, ver as coisas a partir do seu termo. Para não perder a nossa humanidade, procuremos a Sabedoria que existe antes de todas as coisas (cf. Sir 1, 4), que, passando através dos corações puros, prepara amigos de Deus e profetas (cf. Sab 7, 27): há de ajudar-nos também a orientar os sistemas da inteligência artificial para uma comunicação plenamente humana.
Roma – São João de Latrão, 24 de janeiro de 2024.
[Francisco]
Notas
[1] Cartas do Lago de Como (Brescia 52022), 95-97
[2] Em continuidade com as anteriores Mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, dedicadas a «encontrar as pessoas onde estão e como são» (2021), «escutar com o ouvido do coração» (2022) e «falar com o coração» (2023).
[3] Cf. Mensagem para o LII Dia Mundial das Comunicações (2018): «“A verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32). Fake news e jornalismo de paz».
[4] Mensagem para o LVII Dia Mundial da Paz: 1 de janeiro de 2024, 8.
FC!#474 - Jesus e Maria: Novo Adão e Nova Eva - St. Irineu de Lyon, Contra as Heresias (Séc. II - Patrística)
Ele recapitulou também em si a obra modelada no princípio.
21,10. Como pela desobediência de um só homem o pecado entrou no mundo e pelo pecado a morte, assim pela obediência de um só homem foi introduzida a justiça que traz como fruto a vida ao homem morto. E como a substância de Adão, o primeiro homem plasmado, foi tirada da terra simples e ainda virgem — “Deus ainda não fizera chover e o homem ainda não a trabalhara” (Gn 2, 5) — e foi modelado pela mão de Deus, isto é, pelo Verbo de Deus — com efeito, “todas as coisas foram feitas por ele”, e o “Senhor tomou do lodo da terra e modelou o homem” (Gn 2, 7) —, assim o Verbo que recapitula em si Adão, recebeu de Maria, ainda virgem, a geração da recapitulação de Adão. Se o primeiro Adão tivesse homem por pai e tivesse nascido de sêmen viril teriam razão em dizer que também o segundo Adão foi gerado por José. Mas se o primeiro Adão foi tirado da terra e modelado pelo Verbo de Deus, era necessário que este mesmo Verbo, efetuando em si a recapitulação de Adão, tivesse geração semelhante à dele. E, então, por que Deus não tomou outra vez do limo da terra, mas quis que esta modelagem fosse feita por Maria? Para que não houvesse segunda obra modelada e para que não fosse obra modelada diferente da que era salvada, mas, conservando a semelhança, fosse aquela primeira a ser recapitulada.
22,1. Erram, portanto, os que sustentam que o Cristo nada recebeu da Virgem, para poder rejeitar a herança da carne; mas rejeitam assim, ao mesmo tempo, a semelhança. Com efeito, se aquele primeiro recebeu a sua modelagem e substância da terra pela mão e arte de Deus e este não, então não conservou a semelhança com o homem que foi feito à imagem e semelhança de Deus, e o Artífice pareceria inconstante e sem nada que demonstre a sua sabedoria. Isto quer dizer que ele apareceu como homem sem sê-lo realmente e que se fez homem sem tomar nada do homem! Mas se não recebeu de nenhum ser humano a substância da sua carne, ele não se fez nem homem, nem Filho do homem. E se não se fez o que nós éramos, não tinha importância nem valor o que ele sofreu e padeceu. Ora, não há quem não admita que nós somos feitos de corpo tirado da terra e de alma que recebe de Deus o Espírito. E é isso que se tornou o Verbo de Deus ao recapitular em si mesmo a obra por ele plasmada, e é este o motivo pelo qual se declara Filho do homem e declara bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Por seu lado, o apóstolo Paulo, na carta aos Gálatas, disse abertamente: “Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher”; e na carta aos romanos diz: “…acerca do seu Filho, que nasceu da posteridade de Davi, segundo a carne, declarado Filho de Deus, com poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dentre os mortos, Jesus Cristo Senhor nosso” (Gl 4,4; Rm 1,3-4).
22,2. De outra forma, a sua descida em Maria seria supérflua; pois para que desceria nela se não devia receber nada dela? Se não tivesse recebido nada de Maria então nunca teria tomado alimentos terrenos com os quais se alimenta um corpo tirado da terra; após o jejum de quarenta dias, como Moisés e Elias, seu corpo não teria experimentado a fome e não teria procurado alimento; João, seu discípulo, não teria escrito: “Jesus, cansado pela caminhada, estava sentado”; nem Davi teria dito dele: “E acrescentaram sofrimento à dor das minhas feridas”; não teria chorado sobre o túmulo de Lázaro; não suaria gotas de sangue, nem teria dito: “A minha alma está triste”; (Jo 4,6; Sl 69,27; Mt 26,38) e de seu lado transpassado não teriam saído sangue e água. Tudo isso são sinais da carne tirada da terra, que recapitulou em si, salvando a obra de suas mãos.
22,3. Por isso Lucas apresenta genealogia de setenta e duas gerações, que vai do nascimento do Senhor até Adão, unindo o fim ao princípio, para dar a entender que o Senhor é o que recapitulou em si mesmo todas as nações dispersas desde Adão, todas as línguas e gerações dos homens, inclusive Adão. Por isso Paulo chama Adão figura do que devia vir, porque o Verbo, Criador de todas as coisas, prefigurara nele a futura economia da humanidade de que se revestiria o Filho de Deus, pelo fato de Deus, formando o homem psíquico, ter dado a entender que seria salvo pelo homem espiritual. Por isso, visto que já existia como salvador, devia tornar-se quem devia ser salvo,249 para não ser o Salvador de nada.
22,4. Da mesma forma, encontramos Maria, a Virgem obediente, que diz: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra”, e, em contraste, Eva, que desobedeceu quando ainda era virgem. Como esta, ainda virgem se bem que casada — no paraíso estavam nus e não se envergonhavam, porque, criados há pouco tempo ainda não pensavam em gerar filhos, sendo necessário que, primeiro, se tornassem adultos antes de se multiplicar —, pela sua desobediência se tornou para si e para todo o gênero humano causa da morte, assim Maria, tendo por esposo quem lhe fora predestinado e sendo virgem, pela sua obediência se tornou para si e para todo o gênero humano causa da salvação. É por isso que a Lei chama a que é noiva, se ainda virgem, de esposa daquele que a tomou por noiva, para indicar o influxo que se opera de Maria sobre Eva. Com efeito, o que está amarrado não pode ser desamarrado, a menos que se desatem os nós em sentido contrário ao que foram dados, e os primeiros são desfeitos depois dos segundos e estes, por sua vez, permitem que se desfaçam os primeiros: acontece que o primeiro é desfeito pelo segundo e o segundo é desfeito em primeiro lugar.
Eis por que o Senhor dizia que os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros. E o profeta diz a mesma coisa: Em lugar dos pais nasceram filhos para ti. Com efeito, o Senhor, o primogênito dos mortos, reuniu no seu seio os patriarcas antigos e os regenerou para a vida de Deus, tornando-se ele próprio o primeiro dos viventes, ao passo que Adão fora o primeiro dos que morrem. Eis por que Lucas, iniciando a genealogia a partir do Senhor subiu até Adão, porque não foram aqueles antepassados que lhe deram a vida, e sim foi ele que os fez renascer no evange-lho da vida. Da mesma forma, o nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria, e o que Eva amarrara pela sua incredulidade Maria soltou pela sua fé.250
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249: Devia tornar-se quem devia ser salvo”, isto é, devia tornar-se homem histórico. Aqui outra vez vem evidenciado que, para além do pecado, o Verbo haveria de se encarnar (ver, neste sentido, IV,14,1). Convém ter presente que para Ireneu “salvar” significa primariamente “unir o homem a Deus”, “dar-lhe a incorruptibilidade”, “elevá-lo à ordem sobrenatural”. A salvação forma parte do plano inicial do Criador, que quer a criatura participando de sua glória. O pe-cador será redimido, re/plasmado, refeito em Cristo em vista do plano salvífico de Deus. Assim — como diz José Ignácio Gonzales Faus — o Redentor não veio combater o Criador, mas levar a cumprimento sua obra (posta em perigo).
250: O paralelo entre Eva e Maria (análogo ao de Adão e Cristo, segundo S. Paulo) pertence, originariamente, a S. Justino. Ireneu o desenvolve, encontrando na redenção as etapas da redenção exatamente “sub specie contrario”. Outra afirmação teológica importante: a “recirculatio” (isto é: o percorrer outra vez um caminho, porém em sentido inverso). No caso: de Eva a Maria existe um caminho de degeneração e desobediência; de Maria a Eva, um caminho de obediência e regeneração. Esta “recirculatio” está forte e primariamente subordinada à “recirculatio” mais original presente em Cristo e Adão. Cristo, encarnado/ressuscitado, é a meta recapituladora de toda a criação, já prefigurada em Adão.
FC!#473 - Por que Maio é o mês dedicado à Virgem Maria?
"Primeiramente, devemos retornar à história e a caminhada da Igreja com os seus dois pulmões: Oriente e Ocidente. O Mês Mariano no Oriente mais antigo foi celebrado, desde o século XIII, em agosto, considerado o Mês Mariano por excelência para a tradição oriental, já que os bizantinos tinham a festa da Dormição de Maria (Assunção) como a maior festa mariana. Esta celebração, em 15 de agosto, era precedida por 14 dias de preparação como um tempo de penitência e jejum, também chamado de pequena Quaresma da Dormição. Ao longo deste tempo, todas as noites recitava-se o Ofício da Paraklísis em honra da Virgem; e os 15 últimos dias – chamados pós-festa methaeorté – se fazia comemorar até o fim do mês os ritos e as celebrações em honra da Mãe de Deus, Theotokos. Já para os coptas, que são os cristãos do Egito, o Mês Mariano, chamado kíahk, era estruturado em torno do Natal.
No Ocidente, a escolha do mês de maio tem muito a ver com o início da primavera no Hemisfério Norte, onde existiam muitas tradições populares nos vários povos da Europa. Neste mês, as flores florescem e já era uma tradição antiga no paganismo os “ludi floreales” ou “florealia”, festejos propiciatórios em honra a deusa da vegetação “Flora Mater”. Tais festejos consistiam em cantos, cortejos de jovens com ramos floridos e enfeites naturais, onde era comum se escolher a “rainha da primavera”. Com a expansão do cristianismo e a cristianização da Europa, já no começo da Idade Média até o Renascimento, as flores e o renascimento da vida foram identificados com a Mulher mais bendita e santa de todas as mulheres, a Mãe de Jesus. Assim os cristãos começavam a prestar louvores mais intensos no mês de maio. O primeiro cristão que associou o mês de maio à figura de Maria foi Afonso X, o Sábio, Rei de Castela e Leon + 1284, século XIII.
Depois, o Beato Henrique Suso de Constância (+1336), dominicano, compôs as famosas “saudações”, mediante as quais dedicava à Virgem a primavera.
Em Paris, no século XIV, a corporação dos ourives costumava levar à Catedral de Notre-Dame um “maio”, que é uma planta adornada com pedras preciosas.
Em 1549, o monge beneditino Wolfang Seidl (+1562) publicou em Munique (Alemanha), um esboço do Mês Mariano. Em Roma, o Mês Mariano começou a tomar corpo graças a ação pastoral de São Filipe Néri e a evangelização realizada por ele junto aos jovens e adolescentes nos oratórios, onde os ensinava a ornarem de flores as imagens da Virgem Maria e a cantarem músicas em sua honra. Ele os incentivava a orarem mais, a fazerem penitência e a imitarem suas santas virtudes.
O iniciador do mês de maio, no sentido mais moderno, vem dos jesuítas com o incentivo às práticas cotidianas de A. Dionisi S.J., educador e diretor de almas, com o seu mês de Maria, publicado em Verona, em 1725. Este foi um incentivo, também, às Congregações Marianas, e para que até nas casas se fizesse um altarzinho em honra à Mãe de Jesus, para que os devotos pudessem enfeitá-lo e rezar diante dele. O mês de maio foi também tendo o incentivo para se tornar mês de missões populares e o jesuíta, padre Lalomia, propunha leituras e considerações sobre a vida, privilégios e virtudes de Maria.
Os Papas Pio VII, em 1815, Gregório XVI, em 1833, e Beato Pio IX, em 1859, conferiram indulgências para este mês. Ligado a esta dimensão agrícola, ao renascimento da vida e dos vegetais, maio tornou-se, assim, o Mês Mariano por excelência. Também, desde Pio XII, São João XXIII, São Paulo VI, São João Paulo II, Bento XVI, até o atual Pontífice, Papa Francisco, sempre foi estimulado o amor dos cristãos católicos, manifestado de modo concreto neste mês de maio".
Resposta do Pe. Adilton Pinto Lopes, pároco e reitor da Basílica Santuário Nossa Senhora da Conceição da Praia, na Arquidiocese de Salvador (BA), doutor em Mariologia e professor de outras disciplinas de Teologia Dogmática do Instituto de Teologia da Universidade Católica do Salvador, à pergunta feita pelo Setor Comunicação da Arquidiocese.
Dignitas infinita (2024)
Declaração
Dignitas infinita
sobre a dignidade humana
Apresentação
No Congresso de 15 de março de 2019, a então Congregação para a Doutrina da Fé decidiu encaminhar «a redação de um texto, evidenciando a imprescindibilidade do conceito de dignidade da pessoa humana ao interno da antropologia cristã e ilustrando o alcance e as implicações benéficas em nível social, político e econômico, tendo em conta os últimos desenvolvimentos do tema em âmbito acadêmico e as suas ambivalentes compreensões no contexto hodierno». Um primeiro projeto a respeito, elaborado com a ajuda de alguns especialistas durante o ano de 2019, foi considerado insatisfatório pela Consulta reservada da Congregação, realizada em 8 de outubro do mesmo ano.
Procedeu-se à elaboração ex novo de outro delineamento do texto por parte do Ofício Doutrinal, em base à contribuição de diversos especialistas. O esboço foi apresentado e discutido durante a Consulta reservada de 4 de outubro de 2021. Em janeiro de 2022, o novo esboço foi apresentado na Sessão Plenária da Congregação, na qual os Membros resolveram abreviar e simplificar o texto.
Em 6 de fevereiro de 2023, o novo texto emendado foi avaliado pela Consulta reservada, que propôs algumas ulteriores modificações. A nova versão foi submetida à avaliação da Sessão Ordinária do Dicastério (Feria IV) de 3 de maio de 2023. Os Membros concordaram que o documento, com algumas modificações, poderia ser publicado. O Santo Padre Francisco aprovou os Deliberata desta Feria IV durante a Audiência concedida a mim em 13 de novembro de 2023. Nesta ocasião, pediu-me ainda para evidenciar no texto algumas temáticas estreitamente conexas ao tema da dignidade, como por exemplo o drama da pobreza, a situação dos migrantes, as violências contra as mulheres, o tráfico de pessoas, a guerra e outras. Para honrar o melhor possível tais indicações do Santo Padre, a Sessão Doutrinal do Dicastério dedicou um Congresso ao estudo da Carta encíclica Fratelli tutti, que oferece uma original análise e aprofundamento da questão da dignidade humana “para além de toda circunstância”.
Com carta datada de 2 de fevereiro de 2024, em vista da Feria IV do sucessivo 28 de fevereiro, foi enviada aos Membros do Dicastério um novo esboço do texto, notavelmente modificado, com a seguinte observação: «Esta ulterior redação foi necessária para vir ao encontro de um específico pedido do Santo Padre. Ele explicitamente solicitou que se fixasse melhor a atenção sobre graves violações atuais da dignidade humana, no sulco da encíclica Fratelli tutti. O Ofício Doutrinal se incumbiu assim de reduzir a parte inicial [...] e de elaborar mais detalhadamente quanto indicado pelo Santo Padre». A Sessão Ordinária do Dicastério, em 28 de fevereiro de 2024, enfim aprovou o texto da atual Declaração. Na Audiência concedida a mim, juntamente com o Secretário da Seção Doutrinal, Mons. Armando Matteo, em 25 de março de 2024, o Santo Padre aprovou a presente Declaração e ordenou a sua publicação.
A elaboração do texto, que durou cinco anos, permite entender que se encontra diante de um documento que, pela seriedade e centralidade do tema no pensamento cristão, precisou de um notável processo de amadurecimento para chegar à redação definitiva que hoje publicamos.
Nas primeiras três partes, a Declaração recorda princípios fundamentais e pressupostos teóricos, a fim de oferecer importantes esclarecimentos que podem evitar as frequentes confusões que se verificam no uso do termo “dignidade”. Na quarta parte, apresenta algumas situações problemáticas atuais, em que a imensa e inalienável dignidade que corresponde a todo ser humano não é adequadamente reconhecida. A denúncia de tais graves violações da dignidade humana é um gesto necessário porque a Igreja nutre a profunda convicção que não se pode separar a fé da defesa da dignidade humana, a evangelização da promoção de uma vida digna, a espiritualidade do empenho pela dignidade de todos os seres humanos.
Tal dignidade de todos os seres humanos pode, de fato, ser entendida como “infinita” (dignitas infinita), como São João Paulo II afirmou em um encontro com pessoas portadoras de certas limitações ou deficiências,* a fim de mostrar como a dignidade de cada ser humano vai além de toda aparência exterior ou de toda característica da vida concreta das pessoas.
Papa Francisco, na Carta encíclica Fratelli tutti, quis sublinhar com particular insistência que esta dignidade existe “para além de toda circunstância”, convidando todos a defendê-la em todo contexto cultural, em todo momento da existência de uma pessoa, independentemente de qualquer deficiência física, psicológica, social ou também moral. A este propósito, a Declaração se esforça por mostrar que nos encontramos diante de uma verdade universal, que todos precisamos reconhecer como condição fundamental para que as nossas sociedades sejam verdadeiramente justas, pacíficas, sadias e, por fim, autenticamente humanas.
O elenco dos temas escolhidos pela Declaração não é certamente exaustivo. Os assuntos tratados são, porém, aqueles que permitem exprimir vários aspectos da dignidade humana que hoje podem ser obscurecidos na consciência de muitas pessoas. Alguns serão facilmente compartilháveis por diversos setores das nossas sociedades, outros menos. Seja como for, todos nos parecem necessários, porque no seu conjunto ajudam a reconhecer a harmonia e a riqueza do pensamento, que brota do Evangelho, acerca da dignidade.
Esta Declaração não tem a pretensão de exaurir um argumento tão rico e decisivo, mas deseja fornecer alguns elementos de reflexão que ajudam a tê-lo presente no complexo momento histórico em que vivemos. Assim, em meio a tantas preocupações e ansiedades, não perderemos a estrada e não nos exporemos a mais lacerantes e profundos sofrimentos.
Víctor Manuel Card. Fernández
Prefeito
Introdução
1. (Dignitas infinita) Uma dignidade infinita, inalienavelmente fundada no seu próprio ser, é inerente a cada pessoa humana, para além de toda circunstância e em qualquer estado ou situação se encontre. Este princípio, que é plenamente reconhecível também pela pura razão, coloca-se como fundamento do primado da pessoa humana e da tutela de seus direitos. A Igreja, à luz da Revelação, reafirma de modo absoluto esta dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus e redimida em Cristo Jesus. Desta verdade extrai as razões do seu empenho em favor daqueles que são mais fracos e menos dotados de poder, insistindo sempre «sobre o primado da pessoa humana e sobre a defesa da sua dignidade para além de toda circunstância».[1]
2. Desta dignidade ontológica e do valor único e eminente de cada mulher e de cada homem que existem neste mundo fez-se eco a Declaração universal dos direitos do homem (10 de dezembro de 1948) por parte da Assembleia Geral das Nações Unidas.[2] Fazendo memória do 75º aniversário deste Documento, a Igreja vê a ocasião para proclamar novamente a própria convicção de que, criado por Deus e redimido por Cristo, cada ser humano deve ser reconhecido e tratado com respeito e com amor, em razão da sua inalienável dignidade. Tal aniversário oferece à Igreja também a oportunidade para esclarecer alguns equívocos que surgem frequentemente acerca da dignidade humana e para enfrentar algumas graves e urgentes questões concretas relacionadas a esta.
3. Desde o início da sua missão, impelida pelo Evangelho, a Igreja se esforçou para afirmar a liberdade e para promover os direitos de todos os seres humanos.[3] Nos últimos tempos, graças à voz dos Pontífices, desejou formular mais explicitamente tal empenho através do renovado apelo pelo reconhecimento da dignidade fundamental que corresponde à pessoa humana. São Paulo VI disse que «nenhuma antropologia se iguala àquela da Igreja sobre a pessoa humana, considerada também singularmente, acerca de sua originalidade, sua dignidade, seu caráter intocável, da riqueza de seus direitos fundamentais, sua sacralidade, sua educabilidade, sua aspiração a um desenvolvimento completo, sua imortalidade».[4]
4. São João Paulo II, em 1979, durante a Terceira Conferência do Episcopado Latino-americano em Puebla, afirmou: «a dignidade humana representa um valor evangélico, que não pode ser desprezado sem grave ofensa ao Criador. Esta dignidade é espezinhada, em nível individual, quando não são considerados devidamente valores como a liberdade, o direito de professar a religião, a integridade física e psíquica, o direito aos bens essenciais, à vida. É espezinhada, em nível social e político, quando o homem não pode exercitar o seu direito à participação, ou é submetido a injustas e ilegítimas coerções ou a torturas físicas ou psíquicas etc. (...) Se a Igreja se faz presente na defesa ou na promoção da dignidade do homem, ela o faz em conformidade à sua missão que, mesmo sendo de caráter religioso e não social ou político, não pode renunciar a considerar o homem no seu ser integral»[5].
5. Em 2010, diante da Pontifícia Academia para a Vida, Bento XVI afirmou que a dignidade da pessoa é «um princípio fundamental que a fé em Jesus Cristo Ressuscitado sempre defendeu, sobretudo quando é desatendido em relação aos sujeitos mais simples e indefesos».[6] Em outra ocasião, falando aos economistas, disse que «a economia e a finança não existem para si mesmas, elas não são outra coisa que um instrumento, um meio. Seu fim é unicamente a pessoa humana e sua plena realização na dignidade. É este o único capital que é oportuno salvar».[7]
6. Desde os inícios de seu pontificado, Papa Francisco convidou a Igreja a «confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano» e a «descobrir que “com isso mesmo lhe confere uma dignidade infinita”»,[8] sublinhando com força que tal imensa dignidade representa um dado originário que se precisa reconhecer com lealdade e acolher com gratidão. Sobre tal reconhecimento e acolhimento é possível fundar uma nova coexistência entre os seres humanos, que modele a socialidade em um horizonte de autêntica fraternidade: unicamente «reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, podemos fazer renascer entre todos uma aspiração mundial à fraternidade».[9] Segundo Papa Francisco, «esta fonte de dignidade humana e de fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo»,[10] mas é também uma convicção à qual a razão humana pode chegar através da reflexão e do diálogo, dado que «se é preciso respeitar em toda situação a dignidade dos outros, é porque nós não inventamos ou supomos tal dignidade, mas porque existe efetivamente neles um valor superior em relação às coisas materiais e às circunstâncias, que exige que sejam tratados de outro modo. Que cada ser humano possui uma dignidade inalienável é uma verdade correspondente à natureza humana, para além de qualquer mudança cultural»[11]. Na verdade, conclui Papa Francisco, «o ser humano possui a mesma dignidade inviolável em qualquer época histórica e ninguém pode sentir-se autorizado pelas circunstâncias a negar esta convicção ou a não agir em consequência».[12] Em tal horizonte, a sua encíclica Fratelli tutti já constitui uma Magna Charta dos deveres atuais voltados a salvaguardar e promover a dignidade humana.
Um esclarecimento fundamental
7. Ainda que agora exista um consenso quase geral sobre a importância e também sobre o caráter normativo da dignidade e do valor único e transcendente de cada ser humano,[13] a expressão “dignidade da pessoa humana” pode prestar-se a muitos significados e assim a possíveis equívocos[14] e «contradições que induzem a perguntar-nos se realmente a igual dignidade de todos os seres humanos [...] seja reconhecida, respeitada, protegida e promovida em toda circunstância».[15] Tudo isso nos leva a reconhecer a possibilidade de uma quádrupla distinção do conceito de dignidade: dignidade ontológica, dignidade moral, dignidade social e, enfim, dignidade existencial. O sentido mais importante é aquele ligado à dignidade ontológica, que compete à pessoa enquanto tal, pelo simples fato de existir e de ser querida, criada e amada por Deus. Esta dignidade não pode jamais ser cancelada e permanece válida para além de toda circunstância em que os indivíduos venham a se encontrar. Quando se fala de dignidade moral, deseja-se referir ao exercício da liberdade por parte da criatura humana. Esta última, ainda que dotada de consciência, permanece sempre sujeita à possibilidade de agir contra ela. Fazendo assim, o ser humano se comporta de um modo que “não é digno” da sua natureza de criatura amada por Deus e chamada a amar os outros. Mas esta possibilidade existe. E não só: a história atesta que o exercício da liberdade contra a lei do amor revelada pelo Evangelho pode alcançar picos incalculáveis de maldade provocada aos outros. Quando isso acontece, encontra-se diante de pessoas que parecem ter perdido qualquer traço de humanidade, qualquer traço de dignidade. A este respeito, a distinção aqui introduzida ajuda a discernir propriamente entre o aspecto da dignidade moral, que pode ser de fato “perdida”, e o aspecto da dignidade ontológica, que não pode jamais ser anulada. E é justamente em razão desta última que se deverá trabalhar com todas as forças para que todos que cometeram o mal possam arrepender-se e converter-se.
8. Restam ainda outras duas acepções possíveis de dignidade: social e existencial. Quando se fala de dignidade social, quer-se referir às condições nas quais uma pessoa se encontra a viver. Na pobreza extrema, por exemplo, quando não se dão as condições mínimas para que uma pessoa possa viver segundo a sua dignidade ontológica, diz-se que a vida daquela pessoa tão pobre é uma vida “indigna”. Esta expressão não indica de nenhum modo um juízo quanto à pessoa, mas deseja evidenciar o fato que a sua dignidade inalienável foi contradita pela situação na qual é obrigada a viver. A última acepção é aquela de dignidade existencial. Sempre mais frequentemente fala-se hoje de uma vida “digna” e de uma vida “não digna”. Com tal indicação, quer-se referir a situações de tipo existencial: por exemplo, ao caso de uma pessoa que, aparentemente tendo todo o necessário para viver, por diversas razões tem dificuldade de viver em paz, com alegria e esperança. Em outras situações, é a presença de doenças graves, de contextos familiares violentos, de certas dependências patológicas e de outras dificuldades que levam a experimentar a própria condição de vida como “indigna” diante da percepção da dignidade ontológica que jamais pode ser obscurecida. As distinções aqui introduzidas, em todo caso, somente recordam o valor daquela dignidade ontológica enraizada no próprio ser da pessoa humana e que subsiste para além de qualquer circunstância.
9. É útil, enfim, recordar que a definição clássica da pessoa como «substância individual de natureza racional»[16] explicita o fundamento da sua dignidade. De fato, enquanto “substância individual”, a pessoa possui dignidade ontológica (isto é, no nível metafísico do próprio ser): ela é um sujeito que, recebendo de Deus a existência, “subsiste”, vale dizer exercita a existência de modo autônomo. A palavra “racional” compreende todas as capacidades do ser humano, seja a de conhecer e entender, seja a de querer, amar, escolher, desejar. O termo “racional” compreende também todas as capacidades corpóreas intimamente relacionadas àquelas já mencionadas. A expressão “natureza” indica as condições próprias do ser humano que tornam possíveis as várias operações e experiências que o caracterizam: a natureza é o “princípio do agir”. O ser humano não cria a sua natureza, mas a possui como um dom recebido, podendo cultivar, desenvolver e enriquecer as próprias capacidades. Exercendo a liberdade para cultivar as riquezas da sua natureza, a pessoa humana se constrói no tempo. Mesmo se, por causa dos vários limites ou condições, não é capaz de atuar tais capacidades, a pessoa subsiste sempre como “substância individual”, com toda a sua dignidade. Isto se verifica, por exemplo, em uma criança ainda não nascida, em uma pessoa em estado de inconsciência, em um idoso em agonia.
1. Uma progressiva consciência sobre o caráter central da dignidade humana
10. Já na antiguidade clássica[17] se manifesta uma primeira intuição acerca da dignidade humana, que procede de uma perspectiva social: cada ser humano é revestido de uma dignidade particular, segundo o seu grau e ao interno de uma determinada ordem. Do âmbito social, a palavra passou a descrever a diferente dignidade dos seres presentes no cosmos. Nesta visão, todos os seres possuem uma “dignidade” própria, segundo a sua colocação na harmonia do todo. Certamente, alguns expoentes do pensamento antigo começam a reconhecer um lugar singular ao ser humano, enquanto dotado de razão e, por isso mesmo, capaz de assumir responsabilidade quanto a si mesmo e aos outros seres no mundo,[18] mas estamos ainda longe de um pensamento capaz de fundar o respeito pela dignidade de cada pessoa humana, para além de toda circunstância.
Perspectivas bíblicas
11. A Revelação bíblica ensina que todos os seres humanos possuem dignidade intrínseca porque são criados à imagem e semelhança de Deus: «Deus disse: “façamos o homem à nossa imagem, segundo a nossa semelhança” [...]. E Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou» (Gn 1, 26-27). A humanidade tem uma qualidade específica que a torna irredutível à pura materialidade. A “imagem” não define a alma ou as capacidades intelectivas, mas a dignidade do homem e da mulher. Ambos, na mútua relação de igualdade e amor recíproco, cumprem a função de representar Deus no mundo e são chamados a cuidar do mundo e cultivá-lo. Sermos criados à imagem de Deus significa, portanto, possuir em nós um valor sagrado que transcende toda distinção sexual, social, política, cultural e religiosa. A nossa dignidade é-nos conferida, não é nem pretendida e nem merecida. Todo ser humano é por si mesmo amado e querido por Deus e, por isso, é inviolável na sua dignidade. No Êxodo, coração do Antigo Testamento, Deus se mostra como Aquele que escuta o grito do pobre, vê a miséria do seu povo, cuida dos últimos e dos oprimidos (cf. Ex 3, 7; 22, 20-26). O mesmo ensinamento se encontra no Código Deuteronômico (cf. Dt 12-26): aqui o ensinamento sobre os direitos transforma-se em “manifesto” da dignidade humana, particularmente em favor da tríplice categoria do órfão, da viúva e do estrangeiro (cf. Dt 24, 17). Os antigos preceitos do Êxodo são retomados e e atualizados pela pregação dos profetas, os quais representam a consciência crítica de Israel. Os profetas Amós, Oseias, Isaías, Miqueias e Jeremias têm inteiros capítulos de denúncia da injustiça. Amós repreende duramente a opressão do pobre, o fato de não se reconhecer ao mísero nenhuma fundamental dignidade humana (cf. Am 2, 6-7; 4, 1; 5, 11-12). Isaías pronuncia uma maldição contra aqueles que espezinham os direitos dos pobres, negando a eles qualquer justiça: «ai daqueles que fazem decretos iníquos e escrevem às pressas sentenças opressivas, para negar a justiça aos míseros» (Is 10, 1-2). Este ensinamento profético é retomado na literatura sapiencial. O Eclesiástico equipara a opressão dos pobres ao homicídio: «mata o próximo quem lhe priva do nutrimento, derrama sangue quem nega o salário ao operário» (Eclo 34, 22). Nos Salmos, a relação religiosa com Deus passa através da defesa do fraco e do necessitado: «defendei o fraco e o órfão, ao pobre e ao mísero fazei justiça! Salvai o fraco e indigente, livrai-o da mão dos malvados!» (Sl 82, 3-4).
12. Jesus nasce e cresce em condições humildes e revela a dignidade dos necessitados e dos trabalhadores[19]. No decurso do seu ministério, Jesus afirma o valor e a dignidade de todos aqueles que trazem em si a imagem de Deus, independentemente da sua condição social e das circunstâncias externas. Jesus abateu as barreiras culturais e cultuais, dando novamente dignidade às categorias dos “descartados” ou àquelas consideradas às margens da sociedade: os cobradores de impostos (cf. Mt 9, 10-11), as mulheres (cf. Jo 4, 1-42), as crianças (cf. Mc 10, 14-15), os leprosos (cf. Mt 8, 2-3), os doentes (cf. Mc 1, 29-34), os estrangeiros (cf. Mt 25, 35), as viúvas (cf. Lc 7, 11-15). Ele cura, alimenta, defende, livra, salva. Ele é descrito como um pastor solícito, até pela única ovelha perdida (cf. Mt 18, 12-14). Ele mesmo se identifica com os seus irmãos mais pequeninos: «aquilo que fizestes ao menor dos meus, a mim o fizestes» (Mt 25, 40). Na linguagem bíblica, os “pequenos” não são somente as crianças, mas também os discípulos indefesos, os mais insignificantes, os rejeitados, os oprimidos, os descartados, os pobres, os marginalizados, os ignorantes, os doentes, os que são desqualificados pelos grupos dominantes. O Cristo glorioso julgará em base ao amor para com o próximo, que consiste em ter assistido o faminto, o sedento, o estrangeiro, o nu, o doente, o encarcerado, com os quais Ele mesmo se identifica (cf. Mt 25, 34-36). Para Jesus, o bem que for feito a cada ser humano, independentemente dos laços de sangue e de religião, é o único critério de juízo. O apóstolo Paulo afirma que cada cristão deve comportar-se segundo as exigências da dignidade e do respeito aos direitos de todos os seres humanos (cf. Rm 13, 8-10), segundo o mandamento novo da caridade (cf. 1Cor 13, 1-13).
Desenvolvimentos do pensamento cristão
13. O prosseguimento do pensamento cristão estimulou e acompanhou os progressos da reflexão humana sobre o tema da dignidade. A antropologia cristã clássica, baseada sobre a grande tradição dos Padres da Igreja, colocou em relevo a doutrina do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus e o seu papel singular na criação.[20] O pensamento cristão medieval, avaliando criticamente a herança do pensamento filosófico antigo, chegou a uma síntese da noção de pessoa, reconhecendo o fundamento metafísico da sua dignidade, como atestam as seguintes palavras de Santo Tomás de Aquino: «pessoa significa o que de mais nobre existe em todo o universo, isto é, o subsistente de natureza racional».[21] Tal dignidade ontológica, na sua manifestação privilegiada através do livre agir humano, foi posteriormente ressaltada sobretudo pelo humanismo cristão do Renascimento.[22] Também na visão de pensadores modernos, como Descartes e Kant, não obstante colocassem em discussão alguns fundamentos da antropologia cristã tradicional, podem-se encontrar também fortes ecos da Revelação. Sobre a base de algumas reflexões filosóficas mais recentes sobre o estatuto da subjetividade teorética e prática, a reflexão cristã chegou a sublinhar ainda mais a grandeza do conceito de dignidade, alcançando uma perspectiva original, como por exemplo o personalismo no século XX. Tal perspectiva não só retoma a questão da subjetividade, mas a aprofunda na direção da intersubjetividade e das relações que ligam entre si as pessoas humanas.[23] A proposta antropológica cristã contemporânea igualmente se enriqueceu com o pensamento proveniente desta última visão.[24]
Tempos atuais
14. Nos nossos dias, o termo “dignidade” é utilizado prevalentemente para sublinhar o caráter único da pessoa humana, incomensurável em relação aos outros seres do universo. Neste horizonte, compreende-se o modo em que é usado o termo dignidade na Declaração das Nações Unidas de 1948, em que se trata «da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos, iguais e inalienáveis». Somente este caráter inalienável da dignidade humana permite que se fale de direitos do homem.[25]
15. Para esclarecer melhor o conceito de dignidade, é importante assinalar que ela não é concedida à pessoa por outros seres humanos, a partir de seus talentos e qualidades, de modo que poderia ser eventualmente retirada. Se a dignidade fosse concedida à pessoa por outros seres humanos, então ela se daria de modo condicionado e alienável e o próprio significado de dignidade (ainda que merecedor de grande respeito) permaneceria exposto ao risco de ser abolido. Na verdade, a dignidade é intrínseca à pessoa, não conferida a posteriori, prévia a qualquer reconhecimento, não podendo ser perdida. Em consequência, todos os seres humanos possuem a mesma e intrínseca dignidade, independentemente do fato que sejam ou não capazes de exprimi-la adequadamente.
16. Por isso, o Concílio Vaticano II fala da «eminente dignidade da pessoa humana, superior a todas as coisas e cujos direitos e deveres são universais e invioláveis».[26] Como recorda o incipit da Declaração conciliar Dignitatis humanae, «os seres humanos tornam-se sempre mais conscientes da própria dignidade como pessoa e cresce o número daqueles que exigem poder agir por própria iniciativa, exercendo sua liberdade responsável, movidos pela consciência do dever e não obrigados por medidas coercitivas».[27] Tal liberdade de pensamento e de consciência, seja individual ou comunitária, é baseada sobre o reconhecimento da dignidade humana «como foi-lhes dada a conhecer pela Palavra de Deus revelada e pela própria razão».[28] O mesmo Magistério eclesial amadureceu, com sempre maior perfeição, o significado de tal dignidade, junto com as exigências e as implicações a ele conexas, chegando à tomada de consciência de que a dignidade de cada ser humano é tal para além de toda circunstância.
2. A Igreja anuncia, promove e garante a dignidade humana
17. A Igreja proclama a igual dignidade de todos os seres humanos, independentemente da sua condição de vida ou das suas qualidades. Este anúncio se apoia sobre uma tríplice convicção que, à luz da fé cristã, confere à dignidade humana um valor incomensurável e reforça as suas intrínsecas exigências.
Uma indelével imagem de Deus
18. Em primeiro lugar, segundo a Revelação, a dignidade do ser humano provém do amor do seu Criador, que imprimiu nele os traços indeléveis da sua imagem (cf. Gn 1, 26), chamando-o a conhecê-lo, amá-lo e viver uma relação de aliança consigo, bem como na fraternidade, na justiça e na paz com todos os outros homens e mulheres. Nesta visão, a dignidade se refere não só à alma, mas à pessoa como unidade incindível, e assim é inerente também ao corpo, o qual participa a seu modo do ser imagem de Deus da pessoa humana e é chamado igualmente a participar da glória da alma na beatitude divina.
Cristo eleva a dignidade do homem
19. Uma segunda convicção procede do fato que a dignidade da pessoa humana foi revelada plenamente quando o Pai enviou seu Filho, que assumiu a existência humana por inteiro: «o Filho de Deus, no mistério da encarnação, confirmou a dignidade do corpo e da alma, que constituem o ser humano».[29] Assim, unindo-se de certo modo a cada ser humano através da sua encarnação, Jesus Cristo confirmou que o homem possui uma dignidade inestimável, pelo simples fato de pertencer à mesma comunidade humana e que esta dignidade não pode ser perdida jamais.[30] Proclamando que o Reino de Deus pertence aos pobres, aos humildes, àqueles que são desprezados, que sofrem no corpo e no espírito; curando todo tipo de doença e de enfermidade, mesmo as mais dramáticas como a lepra; afirmando que aquilo que é feito a essas pessoas é fato a ele, porque ele está presente nessas pessoas, Jesus trouxe a grande novidade do reconhecimento da dignidade de cada pessoa, como também e sobretudo daquelas qualificadas como “indignas”. Este princípio novo na história, pelo qual o ser humano é tanto mais “digno” de respeito e de amor quanto mais é fraco, mísero e sofredor, até o ponto de perder a própria “figura” humana, mudou o rosto do mundo, dando vida a instituições que se dedicam a cuidar daqueles que se encontram em condições desfavoráveis: os recém-nascidos abandonados, os órfãos, os idosos deixados sozinhos, os doentes mentais, os portadores de doenças incuráveis ou com graves malformações, os sem-teto.
Uma vocação à plena dignidade
20. A terceira convicção diz respeito ao destino final do ser humano: depois da criação e da encarnação, a ressurreição de Cristo nos revela um aspecto ulterior da dignidade humana. De fato, «o aspecto mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à comunhão com Deus»,[31] destinada a durar para sempre. Desse modo, «a dignidade [da vida humana] não é ligada só às suas origens, ao seu proceder de Deus, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão com Deus, conhecendo-o e amando-o. É à luz desta verdade que Santo Irineu dá precisão e arremata a sua exaltação do homem: “glória de Deus” é sim o “o homem que vive”, mas “a vida do homem consiste na visão de Deus”».[32]
21. Em consequência, a Igreja crê e afirma que todos os seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus e recriados[33] no Filho feito homem, crucificado e ressuscitado, são chamados a crescer sob a ação do Espírito Santo para refletir a glória do Pai, naquela mesma imagem, participando da vida eterna (cf. Jo 10, 15-16.17, 22-24; 2Cor 3, 18; Ef 1, 3-14). De fato, «a Revelação [...] faz conhecer a dignidade da pessoa humana em toda a sua amplitude».[34]
Um empenho pela própria liberdade
22. Ainda que cada ser humano possua uma inalienável e intrínseca dignidade desde o início da sua existência como dom irrevogável, depende da sua decisão livre e responsável exprimi-la e manifestá-la plenamente ou senão ofuscá-la. Alguns Padres da Igreja – como S. Irineu e S. João Damasceno – estabeleceram uma distinção entre a imagem e a semelhança de que fala Gênesis, permitindo assim um olhar dinâmico sobre a mesma dignidade humana: a imagem de Deus é confiada à liberdade do ser humano para que, sob a guia e a ação do Espírito, cresça a sua semelhança com Deus e cada pessoa possa chegar à sua mais alta dignidade.[35] Toda pessoa é chamada a manifestar em nível existencial e moral o caráter ontológico da sua dignidade, na medida em que com a própria liberdade se orienta para o verdadeiro bem, em resposta ao amor de Deus. Desse modo, enquanto é criada à imagem de Deus, de uma parte, a pessoa humana jamais perde a sua dignidade e não deixa de ser chamada a acolher livremente o bem; de outra parte, enquanto a pessoa humana responde ao bem, a sua dignidade pode livremente, dinamicamente e progressivamente manifestar-se, crescer e amadurecer. Isto significa que o ser humano deve buscar viver à altura da própria dignidade. Compreende-se então em que sentido o pecado possa ferir e ofuscar a dignidade humana, como ato contrário a ela, mas ao mesmo tempo isso não pode jamais cancelar o fato de o ser humano ter sido criado à imagem de Deus. A fé contribui de modo decisivo a ajudar a razão na sua percepção da dignidade humana, bem como para acolher, consolidar e precisar seus traços essenciais, como evidenciou Bento XVI: «sem o corretivo fornecido pela religião, também a razão pode sofrer distorções, como acontece quando ela é manipulada pela ideologia ou aplicada em modo parcial, que não tem em conta plenamente a dignidade da pessoa humana. Foi este uso distorcido da razão, no fim das contas, que deu origem ao comércio dos escravos e ainda a muitos outros males sociais, não por último as ideologias totalitárias do século XX».[36]
3. A dignidade, fundamento dos direitos e dos deveres humanos
23.Como já recordado por Papa Francisco, «na cultura moderna, a referência mais próxima ao princípio da dignidade inalienável da pessoa é a Declaração universal dos direitos do homem, que São João Paulo II definiu “pedra miliar colocada sobre o longo e difícil caminho do gênero humano”, e como “uma das mais altas expressões da consciência humana”».[37] Para resistir às tentativas de alterar ou cancelar o significado profundo daquela Declaração, vale a pena recordar alguns princípios essenciais que devem ser sempre honrados.
Respeito incondicionado à dignidade humana
24. Em primeiro lugar, ainda que seja difundida uma sempre maior sensibilidade quanto ao tema da dignidade humana, ainda hoje se observam numerosos mal-entendidos sobre o conceito de dignidade, que distorcem o seu significado. Alguns propõem que seria melhor usar a expressão “dignidade pessoal” (e direitos “da pessoa”) ao invés de “dignidade humana” (e direitos do homem), porque entendem como pessoa somente “um ser que é capaz de raciocinar”. Em consequência, sustentam que a dignidade e os direitos se deduzem da capacidade de conhecimento e de liberdade, que nem todos os seres humanos possuem. Logo, não teria dignidade pessoal a criança ainda não-nascida, nem o idoso não autossuficiente, nem o portador de deficiência mental.[38] A Igreja, ao contrário, insiste no fato que a dignidade de cada pessoa humana, porque é intrínseca, permanece “para além de toda circunstância” e o seu reconhecimento não pode absolutamente depender do juízo sobre a capacidade da pessoa de entender e de agir livremente. De outro modo, a dignidade não seria, como tal, inerente à pessoa, independente dos seus condicionamentos e merecedora de um respeito incondicionado. Somente reconhecendo ao ser humano uma dignidade intrínseca, que não se perde jamais, é possível garantir a tal qualidade um inviolável e seguro fundamento. Sem nenhuma referência ontológica, o reconhecimento da dignidade humana oscilaria à mercê de diferentes e arbitrárias avaliações. A única condição para que se possa falar de dignidade inerente à pessoa é a sua pertença à espécie humana, pelo que «os direitos da pessoa são direitos do ser humano».[39]
Uma referência objetiva para a liberdade humana
25. Em segundo lugar, o conceito de dignidade humana foi às vezes usado de modo abusivo também para justificar uma multiplicação arbitrária de novos direitos, muitos dos quais em contraste com aqueles originalmente definidos e, não raro, postos em contraste com o direito fundamental à vida[40], como se fosse devido garantir a expressão e a realização de toda preferência individual ou desejo subjetivo. A dignidade se identificaria então com uma liberdade isolada e individualista, que pretende impor como “direitos”, garantidos e financiados pela coletividade, alguns desejos e algumas propensões subjetivas. Mas a dignidade humana não pode ser baseada sobre standards meramente individuais, nem identificada somente com o bem-estar psicofísico do indivíduo. Ao invés disso, a defesa da dignidade do ser humano é fundada sobre exigências constitutivas da natureza humana, que não dependem nem do arbítrio individual, nem do reconhecimento social. Os deveres que brotam do reconhecimento da dignidade do outro e os correspondentes direitos que disso derivam têm, pois, um conteúdo concreto e objetivo, fundado sobre a natureza humana possuída em comum. Sem uma tal referência objetiva, o conceito de dignidade acabaria por se sujeitar aos mais diversos arbítrios, como também aos interesses de poder.
Estrutura relacional da pessoa humana
26. A dignidade humana, à luz do caráter relacional da pessoa, ajuda a superar a perspectiva redutiva de uma liberdade autorreferencial e individualista, que pretende criar os próprios valores prescindindo das normas objetivas do bem e da relação com os outros seres viventes. Sempre mais frequentemente existe o risco de limitar a dignidade à capacidade de decidir de modo discricional sobre si e sobre o próprio destino, independentemente daquele dos outros, sem ter presente a pertença à comunidade humana. Em tal compreensão errada da liberdade, os deveres e os direitos não podem ser mutuamente reconhecidos, de modo que se cuide uns dos outros. Na verdade, como recorda São João Paulo II, a liberdade é colocada «a serviço da pessoa e da sua realização mediante o dom de si e o acolhimento do outro; quando, porém, é absolutizada em chave individualista, a liberdade é esvaziada do seu conteúdo originário e é contradita na sua própria vocação e dignidade».[41]
27. Desse modo, a dignidade do ser humano compreende também a capacidade, ínsita na mesma natureza humana, de assumir obrigações para com os outros.
28. A diferença entre o ser humano e o restante dos seres viventes, que se ressalta graças ao conceito de dignidade, não deve fazer esquecer a bondade dos outros seres criados, que existem não só em função do homem, mas também com um valor próprio e, portanto, como dons a ele confiados para que sejam cuidados e cultivados. Assim, enquanto se reserva ao ser humano o conceito de dignidade, deve-se afirmar ao mesmo tempo a bondade criatural do inteiro cosmos. Como sublinha Papa Francisco: «Devido à sua dignidade única e por ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis internas [...]: “Cada criatura tem a sua própria bondade e a sua própria perfeição [...]. As várias criaturas, queridas no seu próprio ser, refletem, cada uma a seu modo, um raio da infinita sabedoria e bondade de Deus. Por isso o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar um uso desordenado das coisas”».[42] Ainda mais, «hoje somos obrigados a reconhecer que é possível sustentar somente um “antropocentrismo situado”. Quer dizer, reconhecer que a vida humana é incompreensível e insustentável sem as outras criaturas».[43] Nesta perspectiva, «não é irrelevante para nós que muitas espécies estejam desaparecendo e que a crise climática esteja colocando em perigo a vida de tantos seres».[44] Pertence, de fato, à dignidade do homem o cuidado com o ambiente, considerando em particular aquela ecologia humana que lhe preserva o próprio existir.
Libertação do ser humano de condicionamentos morais e sociais
29. Estes pré-requisitos basilares, ainda que necessários, não bastam para garantir um crescimento da pessoa que seja coerente com a sua dignidade. Mesmo se «Deus criou o homem racional, conferindo-lhe a dignidade de uma pessoa dotada de iniciativa e do domínio sobre seus atos»[45] em vista do bem, o livre-arbítrio frequentemente prefere o mal ao bem. Por isso, a liberdade humana tem necessidade de ser, por sua vez, libertada. Na Carta aos Gálatas, afirmando que «Cristo nos libertou para que permanecêssemos livres» (Gal 5, 1), São Paulo recorda a tarefa própria de cada cristão, sobre cujos ombros pesa uma responsabilidade de libertação extensiva ao mundo inteiro (cf. Rm 8, 19ss). Trata-se de uma libertação que, a partir do coração de cada pessoa, é chamada a difundir-se e a manifestar a sua força humanizante em todas as relações.
30. A liberdade é um dom maravilhoso de Deus. Mesmo quando nos atrai com sua graça, Deus o faz de modo tal que jamais a nossa liberdade seja violada. Seria, portanto, um grave erro pensar que, longe de Deus e da sua ajuda, podemos ser mais livres e, em consequência, sentir-nos mais dignos. Desligada do seu Criador, a nossa liberdade não pode senão enfraquecer-se e ofuscar-se. O mesmo acontece se a liberdade se imagina como independente de qualquer referência que não seja si mesma e estima toda relação com uma verdade precedente como se fosse uma ameaça. Consequentemente, também o respeito pela liberdade e pela dignidade dos outros será deteriorado. Papa Bento XVI o explicou: «uma vontade que se crê radicalmente incapaz de buscar a verdade e o bem não tem razões objetivas nem motivos para agir, senão aqueles impostos pelos seus interesses momentâneos e contingentes, não tem uma “identidade” a ser preservada e construída através de escolhas verdadeiramente livres e conscientes. Não pode, portanto, reclamar o respeito por parte das outras “vontades”, também elas desligadas do próprio ser mais profundo, que possam fazer valer outras “razões” ou até mesmo nenhuma “razão”. A ilusão de encontrar no relativismo moral a chave para uma pacífica convivência é, de fato, a origem da divisão e da negação da dignidade dos seres humanos».[46]
31. Além disso, não seria realístico afirmar uma liberdade abstrata, isenta de qualquer condicionamento, contexto ou limite. Ao invés, «o reto exercício da liberdade pessoal exige precisas condições de ordem econômica, social, jurídica, política e cultural»[47], que permanecem muitas vezes despercebidas. Neste sentido, podemos dizer que alguns têm maior “liberdade” que outros. Papa Francisco se deteve particularmente sobre este ponto: «alguns nascem em famílias de boas condições econômicas, recebem boa educação, crescem bem nutridos ou possuem naturalmente capacidades notáveis. Estes seguramente não terão necessidade de um Estado ativo e requererão só liberdade. Mas, evidentemente, não vale a mesma regra para uma pessoa deficiente, para quem nasceu em uma casa pobre, para quem cresceu com uma educação de baixa qualidade e com escassas possibilidades de cuidar como se deve das próprias doenças. Se a sociedade se rege primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não haverá lugar para estes e a fraternidade será ao máximo uma expressão romântica».[48] Torna-se, pois, indispensável compreender que «a libertação das injustiças promove a liberdade e a dignidade humana»[49] em todos os níveis das ações humanas. Para que seja possível uma autêntica liberdade, «devemos recolocar a dignidade humana ao centro e sobre esta pilastra sejam construídas as estruturas sociais alternativas de que temos necessidade».[50] De modo análogo, a liberdade é frequentemente obscurecida por tantos condicionamentos psicológicos, históricos, sociais, educativos, culturais. A liberdade real e histórica precisa sempre ser “libertada”. E deve-se ainda reafirmar o fundamental direito à liberdade religiosa.
32. Ao mesmo tempo, é evidente que a história da humanidade mostra um progresso na compreensão da dignidade e da liberdade das pessoas, não isento de sombras e perigos de involução. Disso é testemunha o fato que existe uma crescente aspiração – também sob a influência cristã, que continua a ser fermento, mesmo em sociedades sempre mais secularizadas – a erradicar o racismo, a escravidão, a marginalização das mulheres, crianças, doentes e pessoas deficientes. Mas este árduo caminho está longe de ser concluído.
4. Algumas graves violações da dignidade humana
33. À luz das reflexões aqui feitas acerca do caráter central da dignidade humana, esta última seção da Declaração enfrenta algumas concretas e graves violações da mesma. Isto é feito no espírito próprio do magistério da Igreja, que encontrou plena expressão no ensinamento dos últimos Pontífices, como já recordado. Papa Francisco, por exemplo, de uma parte não se cansa de recordar o respeito à dignidade humana: «todo ser humano tem direito a viver com dignidade e a desenvolver-se integralmente e nenhum país pode negar tal direito fundamental. Cada um o possui, mesmo se é pouco eficiente, mesmo se nasceu ou cresceu com limitações; de fato, isso não diminui a sua imensa dignidade como pessoa humana, que não se funda sobre as circunstâncias, mas sobre o valor do seu ser. Quando este princípio elementar não é salvaguardado, não existe futuro nem para a fraternidade, nem para a sobrevivência da humanidade».[51] De outra parte, o Papa não cessa de indicar a todos as concretas violações da dignidade humana no nosso tempo, chamando cada um a redespertar a responsabilidade e o empenho concreto.
34. Querendo indicar algumas das numerosas e graves violações da dignidade humana no mundo contemporâneo, podemos recordar o ensinamento do Concílio Vaticano II. É preciso reconhecer que se opõe à dignidade humana «tudo aquilo que é contrário à vida mesma, como toda espécie de homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o suicídio voluntário».[52] Atenta ainda contra a nossa dignidade «tudo aquilo que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, as torturas infligidas ao corpo e à mente, as constrições psicológicas».[53] Enfim, «tudo aquilo que ofende a dignidade humana, como as condições de vida sub-humana, os encarceramentos arbitrários, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e de jovens, ou ainda as ignominiosas condições de trabalho com as quais os trabalhadores são tratados como simples instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis».[54] É necessário mencionar aqui o tema da pena de morte[55], que também viola a dignidade inalienável de toda pessoa humana para além de toda circunstância. Deve-se, ao contrário, reconhecer que «a decidida rejeição da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a inalienável dignidade de cada ser humano e admitir que tenha um lugar neste mundo, já que se não o nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém, darei a todos a possibilidade de partilhar comigo este planeta, malgrado o que nos possa separar».[56] Parece oportuno também reafirmar a dignidade das pessoas que se encontram encarceradas, muitas vezes obrigadas a viver em condições indignas, como também que a prática da tortura afronta, para além de todo limite, a dignidade própria de cada ser humano, mesmo no caso de alguém culpado de graves crimes.
35. Mesmo sem ter a pretensão de exaustividade, naquilo que segue chamamos novamente a atenção sobre algumas graves violações da dignidade humana particularmente atuais.
O drama da pobreza
36. Um dos fenômenos que contribui consideravelmente para negar a dignidade de tantos seres humanos é a pobreza extrema, ligada à desigual distribuição da riqueza. Como já sublinhado por São João Paulo II, «uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo consiste propriamente nisto: que são relativamente poucos aqueles que possuem muito e muitos aqueles que não possuem quase nada. É a injustiça da má distribuição dos bens e dos serviços destinados originariamente a todos».[57] Além disso, seria ilusório fazer uma distinção sumária entre “países ricos” e “países pobres”: já Bento XVI reconhecia que «cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as disparidades. Nos países ricos, novas categorias sociais se empobrecem e nascem novas pobrezas. Em áreas mais pobres, alguns grupos têm uma espécie de super-desenvolvimento dissipador e consumista, que contrasta de modo inaceitável com perdurantes situações de miséria desumanizante. Continua “o escândalo de desigualdades clamorosas”»,[58] em que a dignidade dos pobres é duplamente negada, seja pela falta de recursos à disposição para satisfazer as suas necessidades primárias, seja pela indiferença com que são tratados por aqueles que vivem a seu lado.
37. Com Papa Francisco deve-se, portanto, concluir que «aumentou a riqueza, mas sem equidade, e assim o que acontece é que “nascem novas pobrezas”. Quando se diz que o mundo moderno reduziu a pobreza, isso se faz medindo-a com critérios de outras épocas não comparáveis com a realidade atual».[59] Em consequência, a pobreza se difunde «de muitos modos, como na obsessão por reduzir os custos do trabalho, sem dar-se conta das graves consequências que isso provoca, porque o desemprego que se produz tem como efeito direto o alargar-se dos confins da pobreza».[60] Entre esses «efeitos destrutivos do império do dinheiro»,[61] deve-se reconhecer que «não existe pior pobreza do que aquela que priva do trabalho e da dignidade do trabalho».[62] Se alguns nasceram em um país ou em uma família onde se tem menos possibilidade de desenvolvimento, é necessário reconhecer que isto contrasta com a sua dignidade, que é exatamente a mesma daqueles que nasceram em uma família ou em um país rico. Todos somos responsáveis, ainda que em diversos graus, desta evidente iniquidade.
A guerra
38. Outra tragédia que nega a dignidade humana é o prolongar-se da guerra, hoje como em todos os tempos: «guerras, atentados, perseguições por motivos raciais e religiosos e tantas opressões contrárias à dignidade humana [...] vão “multiplicando-se dolorosamente em muitas regiões do mundo, de modo a assumir as feições daquela que se poderia chamar uma ‘terceira guerra mundial em pedaços’”».[63] Com o seu rastro de destruição e dor, a guerra ataca a dignidade humana a curto e a longo prazo: «ainda que reafirmando o direito inalienável à legítima defesa, como também a responsabilidade de proteger aqueles cuja existência é ameaçada, devemos admitir que a guerra é sempre uma “derrota da humanidade”. Nenhuma guerra vale a as lágrimas de uma mãe que viu seu filho mutilado ou morto; nenhuma guerra vale a perda da vida, ainda que fosse de uma só pessoa humana, ser sagrado, criado à imagem e semelhança do Criador; nenhuma guerra vale o envenenamento da nossa casa comum; nenhuma guerra vale o desespero de quantos são obrigados a deixar a sua pátria e são privados, de um momento a outro, da sua casa e de todos os vínculos familiares, de amizade, sociais e culturais que foram construídos, às vezes ao longo de gerações».[64] Todas as guerras, pelo simples fato de contradizer a dignidade humana, são «conflitos que não resolverão os problemas, mas os aumentarão».[65] Isto resulta ainda mais grave no nosso tempo, quando se tornou normal que, fora do campo de batalha, morram tantos civis inocentes.
39. Em consequência, também hoje a Igreja não pode senão fazer suas as palavras dos Pontífices, repetindo com São Paulo VI: «jamais plus la guerre, jamais plus la guerre!»[66] e pedindo, junto com São João Paulo II, «a todos, em nome de Deus e em nome do homem: Não matai! Não preparai aos homens destruição e extermínio! Pensai nos vossos irmãos que sofrem fome e miséria! Respeitai a dignidade e a liberdade de cada um!».[67] No nosso tempo propriamente, este é o grito da Igreja e de toda a humanidade. Papa Francisco sublinha, enfim, que «não podemos mais pensar na guerra como solução. Diante desta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais maturados em outros séculos para falar de uma possível “guerra justa”. Nunca mais a guerra!».[68] Já que a humanidade recai frequentemente nos mesmos erros do passado, «para construir a paz é necessário sair da lógica da legitimidade da guerra».[69] A íntima relação que existe entre fé e dignidade humana torna contraditório que a guerra seja fundada sobre convicções religiosas: «Aqueles que invocam o nome de Deus para justificar o terrorismo, a violência e a guerra não seguem o caminho de Deus: a guerra em nome da religião é uma guerra contra a própria religião».[70]
O sofrimento dos migrantes
40. Os migrantes estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza. Não só a sua dignidade é negada nos seus países,[71] mas a sua própria vida é colocada em risco porque não têm mais os meios para formar uma família, para trabalhar ou para nutrir-se.[72] Uma vez que chegam em países que deveriam ser capazes de acolhê-los, «não são considerados dignos o bastante para participar da vida social como qualquer outro, e se esquece que possuem a mesma intrínseca dignidade de toda pessoa [...] Não se dirá jamais que não são humanos, mas na prática, com as decisões e os modos de tratá-los, manifesta-se que são considerados de menor valor, menos importantes, menos humanos».[73] É, portanto, sempre urgente recordar que «cada migrante é uma pessoa humana que, enquanto tal, possui direitos fundamentais inalienáveis que devem ser respeitados por todos em todas as situações».[74] O seu acolhimento é um modo importante e significativo de defender «a inalienável dignidade de toda pessoa humana para além da origem, da cor ou da religião».[75]
O tráfico de pessoas
41. O tráfico de pessoas humanas deve também ser contado como violação grave da dignidade humana.[76] Não constitui uma novidade, mas o seu desenvolvimento assume dimensões trágicas que estão sob os olhos de todos, razão pela qual Papa Francisco a denunciou em termos particularmente fortes: «reafirmo que o “tráfico de pessoas” é uma atividade indigna, uma vergonha para as nossas sociedades que se dizem civilizadas! Exploradores e clientes em todos os níveis deveriam fazer um sério exame de consciência diante de si mesmos e diante de Deus! A Igreja renova hoje o seu forte apelo para que sejam sempre tuteladas a dignidade e a centralidade de cada pessoa, no respeito dos direitos fundamentais, como a sua Doutrina social evidencia, direitos que ela pede que sejam estendidos realmente lá onde não são reconhecidos a milhões de homens e mulheres em todos os continentes. Num mundo em que se fala tanto de direitos, parece estranho que o único a os ter seja o dinheiro».[77]
42. Por tais motivos, a Igreja e a humanidade não devem renunciar a lutar contra fenômenos como «comércio de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de crianças, trabalho escravizado, incluída a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e crime internacional organizado. É tão grande a dimensão dessas situações e o número de vidas inocentes envolvidas, que devemos evitar qualquer tentação de cair em um nominalismo declamatório com efeito tranquilizante sobre as consciências. Devemos cuidar para que as nossas instituições sejam realmente eficazes na luta contra todos esses flagelos».[78] Diante de formas tão diversas e brutais de negação da dignidade humana, é necessário ser sempre mais conscientes que «o tráfico de pessoas é um crime contra a humanidade»,[79] que nega substancialmente a dignidade humana de dois modos pelo menos: «o tráfico [de pessoas] deturpa a humanidade da vítima, ofendendo a sua liberdade e dignidade, mas, ao mesmo tempo, desumaniza quem o pratica».[80]
Abusos sexuais
43. A profunda dignidade inerente ao ser humano na sua inteireza de alma e corpo permite também compreender por que todo abuso sexual deixa profundas cicatrizes no coração daquele que o sofre: de fato, ele se reconhece ferido na sua dignidade humana. Trata-se de «sofrimentos que podem durar toda a vida e a que nenhum arrependimento pode remediar. Tal fenômeno é difuso na sociedade, toca também a Igreja e representa um sério obstáculo à sua missão».[81] Daqui brota o empenho que a Igreja não cessa de exercitar para colocar fim a todo tipo de abuso, iniciando do seu interior.
As violências contra as mulheres
44. As violências contra as mulheres são um escândalo global, que é sempre mais reconhecido. Se nas palavras se reconhece a igual dignidade da mulher, em alguns países as desigualdades entre mulheres e homens são gravíssimas; também nos países mais desenvolvidos e democráticos a realidade social concreta testemunha o fato que frequentemente não se reconhece às mulheres a mesma dignidade dos homens. Papa Francisco evidencia este fato quando afirma que «a organização das sociedades em todo o mundo está ainda longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e os idênticos direitos dos homens. Com palavras se afirmam certas coisas, mas as decisões e a realidade gritam outra mensagem. É um fato que “são duplamente pobres as mulheres que sofrem situações de exclusão, maus tratos e violência, porque muitas vezes se encontram com menores possibilidades de defender os seus direitos”».[82]
45. Já São João Paulo II reconhecia que «muito ainda resta por fazer para que o ser mulher e mãe não comporte uma discriminação. É urgente obter em toda parte a efetiva igualdade dos direitos da pessoa e assim a paridade de salário em relação à paridade de trabalho, tutela da trabalhadora-mãe, justas progressões na carreira, igualdade entre os cônjuges no direito de família, o reconhecimento de tudo quanto é ligado aos direitos e aos deveres do cidadão em um regime democrático».[83] As desigualdades nestes aspectos são diversas formas de violência. E recordava também que «é hora de condenar com vigor, dando vida a apropriados instrumentos legislativos de defesa, as formas de violência sexual que, não raro, têm por objeto as mulheres. Em nome do respeito à pessoa, não podemos não denunciar a difusa cultura hedonista e mercantil que promove a sistemática exploração da sexualidade, induzindo inclusive jovens em tenra idade a cair nos circuitos da corrupção e a fazerem do seu corpo uma mercadoria».[84] Entre as formas de violência exercidas sobre as mulheres, como não citar a constrição ao aborto, que fere seja a mãe que o filho, tão frequente para satisfazer o egoísmo dos homens? E como não citar também as práticas da poligamia que – como recorda o Catecismo da Igreja Católica – é contrária à igual dignidade das mulheres e dos homens e é ainda contrária «ao amor conjugal, que é único e exclusivo»?[85]
46. Neste horizonte de violência contra as mulheres, jamais se condenará o suficiente o fenômeno do feminicídio. Neste front o empenho da inteira comunidade internacional deve ser compacto e concreto, como reafirmou Papa Francisco: «O amor por Maria nos deve ajudar a gerar atitudes de reconhecimento e gratidão para com a mulher, para com nossas mães e avós, que são um baluarte na vida das nossas cidades. Quase sempre silenciosas, levam adiante a vida. É o silêncio e a força da esperança. Obrigado pelo vosso testemunho! [...] mas olhando as mães e as avós, desejo convidar-vos a lutar contra uma chaga que fere o nosso continente americano: os numerosos casos de feminicídio. E são muitas as situações de violência mantidas em silêncio além de tantas paredes. Convido-vos a lutar contra esta fonte de sofrimento, pedindo que se promova uma legislação e uma cultura de repúdio a toda forma de violência».[86]
Aborto
47. A Igreja não cessa de recordar que «a dignidade de cada ser humano tem um caráter intrínseco e vale desde o momento da sua concepção até a sua morte natural. A afirmação de uma tal dignidade é o pressuposto irrenunciável para a tutela de uma existência pessoal e social, como também a condição necessária para que a fraternidade e a amizade social possam realizar-se entre todos os povos da terra».[87] Sobre a base deste valor intocável da vida humana, o magistério eclesial sempre se pronunciou contra o aborto. A propósito, escreve São João Paulo II: «Entre todos os delitos que o homem pode cometer contra a vida, o aborto procurado apresenta características que o tornam particularmente grave e deplorável. [...] Mas hoje, na consciência de muitos, a percepção da sua gravidade foi-se progressivamente obscurecendo. A aceitação do aborto na mentalidade, no costume e na própria lei é sinal eloquente de uma perigosíssima crise do senso moral, que se torna sempre mais incapaz de distinguir entre o bem e o mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida. Diante de uma tão grave situação, é preciso mais que nunca ter a coragem de encarar a verdade e de chamar as coisas pelo seu nome, sem ceder a compromissos de comodidade ou à tentação do autoengano. A tal propósito, ressoa categórica a denúncia do Profeta: “Ai daqueles que chamam de bem o mal e o mal de bem, que mudam as trevas em luz e a luz em trevas” (Is 5, 20). Propriamente no caso do aborto, registra-se a difusão de uma terminologia ambígua, como aquela de “interrupção da gravidez”, que tende a esconder sua verdadeira natureza e a atenuar sua gravidade na opinião pública. Talvez este próprio fenômeno linguístico seja sintoma de um mal-estar das consciências. Mas nenhuma palavra consegue mudar a realidade das coisas: o aborto procurado é o assassínio deliberado e direto, seja qual for o modo de sua atuação, de um ser humano na fase inicial da sua existência, compreendida entre a concepção e o nascimento».[88] As crianças nascituras são assim «os mais indefesos e inocentes de todos, aos quais hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer deles o que se quer, tirando deles a vida e promovendo legislações de modo que ninguém o possa impedir».[89] Deve-se, portanto, afirmar com toda força e clareza, também no nosso tempo, que «esta defesa da vida nascente é intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em toda fase de seu desenvolvimento. É um fim em si mesmo e jamais um meio para resolver outras dificuldades. Se esta convicção cai, não restam sólidos e permanentes fundamentos para a defesa dos direitos humanos, que seriam sempre sujeitos às conveniências contingentes dos poderosos de ocasião. A pura razão é suficiente para reconhecer o valor inviolável de toda vida humana, mas se a contemplamos também a partir da fé, “cada violação da dignidade pessoal do ser humano grita por reparação diante da face de Deus e se configura como ofensa ao Criador do homem”».[90] Merece aqui ser recordado o generoso e corajoso empenho de Santa Teresa de Calcutá pela defesa de todo concebido.
Maternidade sub-rogada
48. Além disso, a Igreja toma posição contra a prática da maternidade sub-rogada, através da qual a criança, imensamente digna, torna-se mero objeto. A este propósito, as palavras de Papa Francisco são de uma clareza única: «o caminho da paz exige o respeito pela vida, de toda vida humana, a partir daquela do nascituro no ventre da mãe, que não pode ser suprimida, nem se tornar mercadoria. Quanto a isso, considero deplorável a prática da assim chamada maternidade sub-rogada, que lesa gravemente a dignidade da mulher e do filho. Esta [prática] se funda sobre a exploração de uma situação de necessidade material da mãe. Uma criança é sempre um dom e nunca objeto de um contrato. Faço votos, portanto, que haja um empenho da comunidade internacional para proibir em nível universal tal prática».[91]
49. A prática da maternidade sub-rogada viola, antes de tudo, a dignidade da criança. Cada criança, desde a concepção, do nascimento e no seu crescimento como menino ou menina, tornando-se adulto, possui uma dignidade intocável que se exprime claramente, ainda que de modo singular e diferenciado, em cada fase da sua vida. A criança tem pois o direito, em virtude da sua inalienável dignidade, de ter uma origem plenamente humana e não conduzida artificialmente, e de receber o dom de uma vida que manifeste, ao mesmo tempo, a dignidade de quem a doa e de quem a recebe. O reconhecimento da dignidade da pessoa humana comporta ainda aquele da dignidade da união conjugal e da procriação humana em todas as suas dimensões. Nesta direção, o legítimo desejo de ter um filho não pode ser transformado em um “direito ao filho” que não respeita a dignidade deste mesmo filho, como destinatário do dom gratuito da vida.[92]
50. A maternidade sub-rogada viola, ao mesmo tempo, a dignidade da mulher que é obrigada ou que decide livremente submeter-se a tal prática. Com esta, a mulher se separa do filho que nela cresce e se torna um simples meio, sujeito ao lucro ou ao desejo arbitrário de outrem. Isso afronta totalmente a dignidade fundamental de todo ser humano e o seu direito de ser sempre reconhecido por si mesmo e não como instrumento para outros fins.
Eutanásia e suicídio assistido
51. Existe um caso particular de violação da dignidade humana que é mais silencioso, mas que está ganhando muito terreno. Apresenta a peculiaridade de utilizar um conceito errado de dignidade humana para fazê-lo voltar-se contra a vida mesma. Tal confusão, muito comum hoje, vem à luz quando se fala de eutanásia. Por exemplo, as leis que reconhecem a possibilidade da eutanásia ou do suicídio assistido designam-se às vezes como “leis da morte digna” (death with dignity acts). É muito difusa a ideia que a eutanásia ou o suicídio assistido sejam coerentes com o respeito à dignidade da pessoa humana. Diante desse fato, deve-se reafirmar com força que o sofrimento não faz perder ao doente aquela dignidade que lhe é própria de modo intrínseco e inalienável, mas pode tornar-se ocasião para reforçar os vínculos da mútua pertença e para tomar maior consciência da preciosidade de cada pessoa para a humanidade inteira.
52. Certamente, a dignidade do doente em condições críticas ou terminais requer esforços adequados e necessários para aliviar o seu sofrimento mediante os oportunos cuidados paliativos, evitando toda obsessão terapêutica ou intervenções desproporcionais. Os cuidados paliativos respondem ao «dever constante de compreensão pelas necessidades do doente: necessidades de assistência, alívio da dor, necessidades emocionais, afetivas e espirituais».[93] Mas tal esforço é totalmente diverso, distinto, antes contrário à decisão de eliminar a própria vida ou a vida de outrem sob o peso do sofrimento. A vida humana, mesmo em uma condição de dor, é portadora de uma dignidade que deve ser sempre respeitada, que não pode ser perdida e cujo respeito permanece incondicionado. Não existem algumas condições, em falta das quais a vida humana deixe de ser dignamente tal e por isso possa ser suprimida: «A vida tem a mesma dignidade e o mesmo valor para cada um: o respeito pela vida do outro é o mesmo que se deve pela própria existência».[94] Ajudar o suicida a matar-se é, portanto, uma ofensa objetiva contra a dignidade da pessoa que o pede, mesmo que se esteja realizando um seu desejo: «devemos acompanhar até a morte, mas não provocar a morte ou ajudar qualquer forma de suicídio. Recordo que deve ser sempre privilegiado o direito ao cuidado e ao cuidado para todos, para que os mais fracos, em particular os idosos e doentes, não sejam jamais descartados. A vida é um direito, não a morte, a qual precisa ser acolhida, não aplicada. E este princípio ético se refere a todos, não só aos cristãos ou aos que têm fé».[95] Como já acenado, a dignidade de cada um, ainda que fraco ou sofredor, implica a dignidade de todos.
O descarte das pessoas com deficiência
53. Um critério para verificar a real atenção à dignidade de cada indivíduo é, obviamente, a assistência fornecida aos mais desvalidos. O nosso tempo, infelizmente, não se distingue muito por tal cuidado: na verdade, vai-se impondo uma cultura do descarte.[96] Para contrastar tal tendência, é merecedora de especial atenção e solicitude a condição daqueles que se encontram em uma situação de deficit físico ou psíquico. Tal condição de particular vulnerabilidade,[97] tão relevante nas narrações do Evangelho, interroga universalmente sobre o que significa ser pessoa humana, propriamente a partir de um estado de deficiência. A questão da imperfeição humana comporta claras implicações também do ponto de vista sociocultural, já que em algumas culturas as pessoas com deficiência sofrem marginalização, senão opressão, sendo tratadas como “descartáveis”. Realmente, cada ser humano, seja qual for a condição de vulnerabilidade em que venha a se encontrar, recebe a sua dignidade pelo fato mesmo de ser querido e amado por Deus. Por tal motivo, deve-se favorecer o mais possível a inclusão e a participação ativa na vida social e eclesial de todos aqueles que são de alguma forma marcados pela fragilidade ou deficiência.[98]
54. Numa perspectiva mais ampla, deve-se recordar que a «caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor preferencial pelos últimos, o qual está por detrás de toda ação realizada em favor deles. [...] “Cuidar da fragilidade quer dizer força e ternura, quer dizer luta e fecundidade em meio a um modelo funcionalista e privatista, que conduz inexoravelmente à ‘cultura do descarte’. [...] Significa assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo com dignidade”. Assim, certamente dar-se-á vida a uma atividade intensa, porque “tudo deve ser feito para tutelar a condição e a dignidade da pessoa humana”».[99]
Teoria de gênero (gender)
55. A Igreja deseja, em primeiro lugar, «reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, cuidando de evitar “toda marca de injusta discriminação” e particularmente toda forma de agressão e violência».[100] Por esta razão, denuncia-se como contrário à dignidade humana o fato que em alguns lugares não poucas pessoas são encarceradas, torturadas e até mesmo privadas da vida unicamente pela sua orientação sexual.
56. Ao mesmo tempo, a Igreja evidencia os intensos pontos críticos da teoria de gênero (gender). A tal propósito, Papa Francisco recordou que: «o caminho da paz exige o respeito dos direitos humanos, segundo aquela simples, mas clara, formulação contida na Declaração universal dos direitos humanos, cujo 75º aniversário celebramos há pouco. Trata-se de princípios racionalmente evidentes e comumente aceitados. Infelizmente, as tentativas realizadas nas últimas décadas para introduzir novos direitos, não plenamente consistentes em relação àqueles originalmente definidos e não sempre aceitáveis, deram espaço a colonizações ideológicas, entre as quais tem um papel central a teoria de gênero (gender), que é perigosíssima porque cancela as diferenças na pretensão de tornar todos iguais».[101]
57. Em mérito à teoria de gênero, sobre cuja consistência científica muitas têm sido as discussões na comunidade dos especialistas, a Igreja recorda que a vida humana, em todos os seus componentes, físicos e espirituais, é um dom de Deus, que se deve acolher com gratidão e colocar a serviço do bem. Querer dispor de si, como prescreve a teoria de gênero, independentemente desta verdade basilar da vida humana como dom, não significa outra coisa senão ceder à antiquíssima tentação do homem que se faz Deus e entrar em concorrência com o verdadeiro Deus do amor, revelado no Evangelho.
58. Uma segunda observação sobre a teoria de gênero refere-se à sua tentativa de negar a maior das diferenças possíveis entre os seres viventes: a diferença sexual. Tal diferença fundante é não só a maior, mas a mais bela e a mais potente: na dualidade homem-mulher, ela alcança a mais admirável reciprocidade e é assim a fonte daquele milagre, que não deixa de surpreender-nos, qual é a chegada de novos seres humanos ao mundo.
59. Neste sentido, o respeito ao próprio corpo e àquele dos outros é essencial diante da proliferação dos pretensos novos direitos, propostos pela teoria de gênero. Tal ideologia «propõe uma sociedade sem diferenças de sexo e esvazia a base antropológica da família».[102] É, pois, inaceitável que «algumas ideologias deste tipo, que pretendem responder a certas aspirações às vezes compreensíveis, tentem impor-se como um pensamento único que determine a educação das crianças. Não se deve ignorar que o sexo biológico (sex) e o papel sociocultural do sexo (gender) podem-se distinguir, mas não separar».[103] Devem-se rejeitar todas aquelas tentativas de obscurecer a referência à insuprimível diferença sexual entre homem e mulher: «Não podemos separar o que é masculino e feminino da obra criada por Deus, que é anterior a todas as nossas decisões e experiências e onde existem elementos biológicos que não podem ser ignorados».[104] Cada pessoa humana, somente quando pode reconhecer e aceitar esta diferença na reciprocidade, torna-se capaz de descobrir plenamente a si mesma, a própria dignidade e a própria identidade.
Mudança de sexo
60. A dignidade do corpo não pode ser considerada inferior àquela da pessoa como tal. O Catecismo da Igreja Católica nos convida expressamente a reconhecer que «o corpo do homem participa da dignidade de “imagem de Deus”».[105] Tal verdade merece ser recordada sobretudo quando se trata do tema da mudança de sexo. O ser humano é composto de corpo e alma, unidos de modo incindível, sendo que o corpo é o lugar vivente em que a interioridade da alma se expande e se manifesta, inclusive através da rede das relações humanas. Constituindo o ser da pessoa, alma e corpo participam daquela dignidade que conota o ser humano.[106] A propósito, deve-se recordar que o corpo humano participa da dignidade da pessoa, enquanto é dotado de significados pessoais, particularmente na sua condição sexuada.[107] É no corpo, de fato, que cada pessoa se reconhece gerada por outros e é através do seu corpo que homem e mulher podem estabelecer uma relação de amor capaz de gerar outras pessoas. Sobre a necessidade de respeitar a ordem natural da pessoa humana, Papa Francisco ensina que «a criação nos precede e deve ser reconhecida como dom. Ao mesmo tempo, somos chamados a cuidar da nossa humanidade e isso significa em primeiro lugar respeitá-la e aceitá-la assim como foi criada».[108] Daqui deriva que qualquer intervenção de mudança de sexo normalmente se arrisca a ameaçar a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da concepção. Isto não significa excluir a possibilidade que uma pessoa portadora de anomalias dos genitais, já evidentes desde o nascimento ou que se manifestem sucessivamente, possa decidir-se por receber assistência médica com o fim de resolver tais anomalias. Neste caso, a intervenção não configuraria uma mudança de sexo no sentido aqui entendido.
Violência digital
61. O progresso das tecnologias digitais, que oferecem muitas possibilidades para promover a dignidade humana, tende sempre mais à criação de um mundo em que crescem a exploração, a exclusão e a violência, que podem chegar a lesar a dignidade da pessoa humana. Pense-se como é fácil, através desses meios, colocar em perigo a boa fama de qualquer pessoa com notícias falsas e calúnias. Sobre este ponto, Papa Francisco sublinha que «não é sadio confundir a comunicação com o simples contato virtual. Realmente, “o ambiente digital é também um território de solidão, manipulação, exploração e violência, até o caso extremo da dark web. Os meios de comunicação digitais podem expor ao risco de dependência, de isolamento e de progressiva perda de contato com a realidade concreta, obstaculizando o desenvolvimento de relações interpessoais autênticas. Novas formas de violência se difundem através das redes sociais, por exemplo o cyberbullying; a web é também um canal de difusão da pornografia e de exploração das pessoas para fins sexuais ou através dos jogos de azar”».[109] E é assim que, ali onde crescem as possibilidades de conexão, paradoxalmente acontece que cada um se encontre sempre mais isolado e empobrecido de relações interpessoais: «na comunicação digital, quer-se mostrar tudo e cada indivíduo torna-se objeto de olhares que esquadrinham, desnudam e divulgam, muitas vezes de maneira anônima. Dilui-se o respeito pelo outro e assim, ao mesmo tempo em que o apago, ignoro e mantenho à distância, posso invadir a sua vida, sem nenhum pudor, até ao extremo».[110] Tais tendências representam um lado obscuro do progresso digital.
62. Nesta perspectiva, se a tecnologia deve servir à dignidade humana, e não causar-lhe dano, e se ela deve promover a paz ao invés da violência, então a comunidade humana deve ser proativa no enfrentar estas tendências, no respeito pela dignidade humana, e promover o bem: «neste mundo globalizado “os mass media podem ajudar a fazer-nos sentir mais próximos uns dos outros; a fazer-nos perceber um renovado sentido de unidade da família humana que impele à solidariedade e ao empenho sério por uma vida mais digna. [...] Podem ajudar-nos nisto, particularmente hoje, quando as redes da comunicação humana alcançaram desenvolvimentos inauditos. Em especial, a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos, e esta é uma coisa boa, é um dom de Deus”. É, porém, necessário verificar continuamente se as atuais formas de comunicação nos orientam efetivamente ao encontro generoso, à busca sincera da verdade plena, ao serviço, à proximidade aos últimos, ao esforço de construir o bem comum».[111]
Conclusão
63. Na ocorrência do 75º aniversário da promulgação da Declaração universal dos direitos do homem (1948), Papa Francisco reafirmou que esse documento «é como uma via preferencial sobre a qual muitos passos adiante já foram dados, mas faltam ainda tantos outros, e às vezes infelizmente se volta atrás. O empenho pelos direitos humanos não termina nunca! A este propósito, sou próximo a todos aqueles que, sem publicidade, na vida concreta de cada dia, lutam e pagam pessoalmente para defender os direitos de quem não conta».[112]
64. É nesse espírito que, com a presente Declaração, a Igreja ardentemente exorta a colocar o respeito pela dignidade da pessoa humana, para além de toda circunstância, ao centro dos esforços pelo bem comum e de todo ordenamento jurídico. O respeito pela dignidade de cada um e de todos é, de fato, a base imprescindível para a existência mesma de cada sociedade que se pretende fundada sobre o justo direito e não na força do poder. Sobre a base do reconhecimento da dignidade humana se sustentam os direitos humanos fundamentais, que precedem e fundam toda convivência civil.[113]
65. A cada pessoa e, ao mesmo tempo, a cada comunidade humana compete portanto a tarefa da concreta e efetiva realização da dignidade humana, enquanto aos Estados compete não somente tutelá-la, mas também garantir aquelas condições necessárias para que ela possa florescer na promoção integral da pessoa humana: «na atividade política é preciso recordar que “além de qualquer aparência, cada um é imensamente sagrado e merece o nosso afeto e a nossa dedicação”».[114]
66. Também hoje, diante de tantas violações da dignidade humana que ameaçam seriamente o futuro da humanidade, a Igreja encoraja a promoção da dignidade de cada pessoa humana, sejam quais forem as suas qualidades físicas, psíquicas, culturais, sociais e religiosas. Ela o faz com esperança, certa da força que brota do Cristo Ressuscitado, que revelou plenamente a dignidade integral de todo homem e de toda mulher. Esta certeza torna-se apelo nas palavras de Papa Francisco: «A cada pessoa deste mundo peço que não se esqueça desta sua dignidade, que ninguém tem direito de tirar-lhe».[115]
O Sumo Pontífice Francisco, na Audiência concedida ao subscrito Prefeito, juntamente com o Secretário para a Seção Doutrinal do Dicastério para a Doutrina da Fé, no dia 25 de março de 2024, aprovou a presente Declaração, decidida na Sessão Ordinária deste Dicastério, realizada em 28 de fevereiro de 2024, e ordenou a sua publicação.
Dado em Roma, na sede do Dicastério para a Doutrina da Fé, aos 2 de abril de 2024, 19º aniversário de morte de São João Paulo II.
Víctor Manuel Card. Fernández
Prefeito
Mons. Armando Matteo
Secretário para a Seção Doutrinal
Ex Audientia Die 25.03.2024
FRANCISCUS
Notas
* S. João Paulo II, Angelus com pessoas portadoras de deficiência na Catedral de Osnabrück (16 de novembro de 1980): Insegnamenti III/2 (1980), 1232.
[1] Francisco, Exort. ap. Laudate Deum (4 de outubro de 2023), n. 39: L’Osservatore Romano (4 de outubro de 2023), III.
[2] Em 1948, as Nações Unidas adotaram a Declaração universal dos direitos do homem, que se compõe de trinta artigos. A palavra “dignidade” aparece por cinco vezes, em pontos estratégicos: nas primeiras palavras do Preâmbulo e na primeira frase do Artigo 1º. Esta dignidade é declarada «inerente a todos os membros da família humana» (Preâmbulo) e «todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos» (Artigo 1º).
[3] Pondo atenção somente à época moderna, vê-se como a Igreja progressivamente acentuou a importância da dignidade humana. O tema foi desenvolvido em particular na Encíclica Rerum novarum (1891) do Papa Leão XIII, na Encíclica Quadragesimo anno (1931) do Papa Pio XI e no Discurso ao Congresso da União Católica Italiana das Obstétricas (1951) do Papa Pio XII. O Concílio Vaticano II aprofundou particularmente esta temática, dedicando-lhe um inteiro documento, com a Declaração Dignitatis humanae (1965) e discutindo a liberdade humana na Constituição pastoral Gaudium et spes (1965).
[4] S. Paulo VI, Audiência geral (4 de setembro de 1968): Insegnamenti VI (1968), 886.
[5] S. João Paulo II, Discurso à IIIª Conferência Geral do Episcopado Latino-americano (28 de janeiro de 1979), III.1-2: Insegnamenti II/1 (1979), 202-203.
[6] Bento XVI, Discurso aos participantes da Assembleia Geral da Pontifícia Academia para a Vida (13 de fevereiro de 2010): Insegnamenti VI/1 (2011), 218.
[7] Bento XVI, Discurso aos participantes da reunião do Banco de Desenvolvimento do Conselho da Europa (12 de junho de 2010): Insegnamenti VI/1 (2011), 912-913.
[8] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), n. 178: AAS 105 (2013), 1094, que cita S. João Paulo II, Angelus com pessoas portadoras de deficiência na Catedral de Osnabrück (16 de novembro de1980): Insegnamenti III/2 (1980), 1232.
[9] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 8: AAS 112 (2020), 971.
[10] Ibidem, n. 277: AAS 112 (2020), 1069.
[11] Ibidem, n. 213: AAS 112 (2020), 1045.
[12] Ibidem, n. 213: AAS 112 (2020), 1045, que cita Francisco, Mensagem aos participantes da Conferência internacional “Os direitos humanos no mundo contemporâneo: conquistas, omissões, negações” (10 de dezembro de 2018): L’Osservatore Romano (10-11 de dezembro de 2018), 8.
[13] A Declaração de 1948 das Nações Unidas foi seguida e ulteriormente elaborada pelo Pacto internacional das Nações Unidas sobre os direitos civis e políticos, de 1966, e pelo Ato final da Conferência sobre a segurança e a cooperação na Europa, de 1975.
[14] Cf. Comissão Teológica Internacional, Dignidade e direitos da pessoa humana (1983), Introdução, 3. Um compêndio do ensinamento católico sobre a dignidade humana se encontra no Catecismo da Igreja Católica, no capítulo intitulado “A dignidade da pessoa humana”, nn. 1700-1876.
[15] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 22: AAS 112 (2020), 976.
[16] Boécio, Contra Eutychen et Nestorium, c. 3: PL 64, 1344: «persona est rationalis naturae individua substantia». Cf. S. Boaventura, In I Sententiarum, d. 25, a. 1, q. 2; S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, q. 29, a. 1, resp.
[17] Como não é a finalidade desta Declaração redigir um tratado exaustivo sobre a noção de dignidade, por exigência de brevidade acena-se em via exemplificativa somente à cultura clássica greco-romana, enquanto ponto de referência da primeira reflexão filosófica e teológica cristã.
[18] Cf. p. ex. Cícero, De officiis I, 105-106: «Sed pertinet ad omnem officii quaestionem semper in promptu habere, quantum natura hominis pecudibus reliquisque beluis antecedat […]. Atque etiam si considerare volumus, quae sit in natura excellentia et dignitas, intellegemus, quam sit turpe diffluere luxuria et delicate ac molliter vivere quamque honestum parce, continenter, severe, sobrie» (Scriptorum Latinorum Bibliotheca Oxoniensis, ed. M. Winterbottom, Oxford 1994, 43). Tradução: «Em toda investigação sobre o dever, é preciso ter presente quanto a natureza do homem é superior àquela dos animais domésticos e de todas as outras feras [...]. E ainda, se pensamos na excelência e na dignidade da natureza humana, compreenderemos quanto seja torpe nadar nos prazeres e viver na lascívia e na moleza; ao contrário, quanto seja decoroso conduzir uma vida parca, moderada, séria e sóbria».
[19] Cf. S. Paulo VI, Discurso durante a Peregrinação à Terra Santa: Visita à Basílica da Anunciação em Nazaré (5 de janeiro de 1964): AAS 56 (1964), 166-170.
[20] Entre as inumeráveis referências, cf. p. ex. S. Clemente de Roma, 1 Clem. 33, 4s: PG 1, 273; Teófilo de Antioquia, Ad Aut.I, 4: PG 6, 1029; S. Clemente de Alexandria, Strom. III, 42, 5-6: PG 8, 1145; Ibidem, VI, 72, 2: PG 9, 293; S. Irineu de Lião, Adv. haer. V, 6, 1: PG 7, 1137-1138; Orígenes, De princ. III, 6,1: PG 11, 333; S. Agostinho, De Gen. ad litt. VI, 12: PL 34, 348. De Trin. XIV, 8, 11: PL 42, 1044-1045.
[21] S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, q. 29, a. 3, resp.: «persona significat id quod est perfectissimum in tota natura, scilicet subsistens in rationali natura».
[22] Pode-se pensar p. ex. a Pico della Mirandola e ao seu conhecido texto Oratio de hominis dignitate (1486).
[23] Para um pensador judeu como E. Levinas (1906-1995), o ser humano é qualificado pela sua liberdade enquanto se descobre infinitamente responsável pelo outro ser humano.
[24] Alguns grandes pensadores cristãos dos séculos XIX e XX, come São J. H. Newman, Beato A. Rosmini, J. Maritain, E. Mounier, K. Rahner, H. U. von Balthasar, entre outros, chegaram a propor uma visão do homem que pode validamente dialogar com as correntes de pensamento do início de século XXI, qualquer que seja a sua inspiração, sem excluir os pós-modernos.
[25] Por este motivo, a «Declaração universal dos direitos do homem […] sugere implicitamente que a origem dos direitos humanos inalienáveis se situa na dignidade de toda pessoa humana»: Comissão Teológica Internacional, Em busca de uma ética universal: novo olhar sobre a lei natural (2009), n. 115.
[26] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes (7 de dezembro de 1965), n. 26: AAS 58 (1966), 1046; todo o primeiro capítulo da primeira parte da Constituição (nn. 11-22) é dedicado à “Dignidade da pessoa humana”.
[27] Conc. Ecum. Vat. II, Decl. Dignitatis humanae (7 de dezembro de 1965), n. 1: AAS 58 (1966), 929.
[28] Ibidem, n. 2: AAS 58 (1966), 931.
[29] Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Dignitas personae (8 de setembro de 2008), n. 7: AAS 100 (2008), 863. Cf. S. Irineu de Lião, Adv. haer. V, 16, 2: PG 7, 1167-1168.
[30] Como «com a encarnação o Filho de Deus se uniu de certo modo a cada homem» (Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes (7 de dezembro de 1965), n. 22: AAS 58 (1966), 1042), a dignidade de cada homem nos é revelada por Cristo na sua plenitude.
[31] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes (7 de dezembro de 1965), n. 19: AAS 58 (1966), 1038.
[32] S. João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae (25 de março de 1995), n. 38: AAS 87 (1995), 443, que cita S. Irineu de Lião, Adv. haer. IV, 20,7: PG 7, 1037-1038.
[33] Cristo deu aos batizados uma nova dignidade, aquela de “filhos de Deus”: cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 1213, 1265, 1270, 1279.
[34] Conc. Ecum. Vat. II, Decl. Dignitatis humanae (7 de dezembro de 1965), n. 9: AAS 58 (1966), 935.
[35] Cf. S. Irineu de Lião, Adv. haer. V, 6, 1. V, 8, 1. V, 16, 2: PG 7, 1136-1138. 1141-1142. 1167-1168; S. João Damasceno, De fide orth. 2, 12: PG 94, 917-930.
[36] Bento XVI, Discurso em Westminster Hall (17 de setembro de 2010): Insegnamenti VI/2 (2011), 240.
[37] Francisco, Audiência geral (12 de agosto de 2020): L’Osservatore Romano (13 de agosto de 2020), 8, que cita S. João Paulo II, Discurso à Assembleia Geral das Nações Unidas (2 de outubro de 1979), 7 e Id., Discurso à Assembleia Geral das Nações Unidas (5 de outubro de 1995), 2.
[38] Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Dignitas personae (8 de setembro de 2008), n. 8: AAS 100 (2008), 863-864.
[39] Comissão Teológica Intenacional, Liberdade religiosa para o bem de todos (2019), n. 38.
[40] Francisco, Discurso aos membros do Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé para as felicitações de ano novo (8 de janeiro de 2024): L’Osservatore Romano (8 de janeiro de 2024), 3.
[41] S. João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae (25 de marzo de 1995), n. 19: AAS 87 (1995), 422.
[42] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), n. 69: AAS 107 (2015), 875, que cita o Catecismo da Igreja Católica, n. 339.
[43] Francesco, Exort. ap. Laudate Deum (4 de outubro de 2023), n. 67: L’Osservatore Romano (4 de outubro de 2023), IV.
[44] Ibidem, n. 63: L’Osservatore Romano (4 de outubro de 2023), IV.
[45] Catecismo da Igreja Católica, n. 1730.
[46] Bento XVI, Mensagem para a celebração da 44a Jornada mundial da paz (1º de janeiro de 2011), n. 3: Insegnamenti VI/2 (2011), 979.
[47] Pontifício Conselho para a Justiça e a Paz, Compêndio da Doutrina social da Igreja, n. 137.
[48] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 109: AAS 112 (2020), 1006.
[49] Pontifício Conselho para a Justiça e a Paz, Compêndio da Doutrina social da Igreja, n. 137.
[50] Francisco, Discurso aos participantes do Encontro mundial dos movimentos populares (28 de outubro de 2014): AAS 106 (2014), 858.
[51] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 107: AAS 112 (2020), 1005-1006.
[52] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes (7 de dezembro de 1965), n. 27: AAS 58 (1966), 1047.
[55] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2267 e Congregação para a Doutrina da Fé, Carta aos Bispos sobre a nova redação do n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte (1° de agosto de 2018), nn. 7-8.
[56] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 269: AAS 112 (2020), 1065.
[57] S. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de dezembro de 1987), n. 28: AAS 80 (1988), 549.
[58] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), n. 22:AAS 101 (2009), 657, que cita S. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), n. 9: AAS 59 (1967), 261-262.
[59] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 21: AAS 112 (2020), 976, que cita Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), n. 22: AAS 101 (2009), 657.
[60] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 20: AAS 112 (2020), 975-976. Cf. também a “Oração ao Criador” ao final da mesma encíclica.
[61] Ibidem, n. 116: AAS 112 (2020), 1009, que cita Id., Discurso aos participantes do Encontro mundial dos movimentos populares (28 de outubro de 2014): AAS 106 (2014), 851-852.
[62] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 162: AAS 112 (2020), 1025, que cita Id., Discurso aos membros do Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé (12 de janeiro de 2015): AAS 107 (2015), 165.
[63] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 25: AAS 112 (2020), 978, que cita Id., Mensagem para a 49ª Jornada mundial da paz (1° de janeiro de 2016): AAS 108 (2016), 49.
[64] Francisco, Mensagem aos participantes da VI edição do “Forum de Paris sur la Paix” (10 de novembro de 2023): L’Osservatore Romano (10 de novembro de 2023), 7, que cita Id., Audiência geral (23 de março de 2022): L’Osservatore Romano (23 de março de 2022), 3.
[65] Francisco, Discurso à Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas (COP 28) (2 de dezembro de 2023): L’Osservatore Romano (2 de dezembro de 2023), 2.
[66] Cf. S. Paulo VI, Discurso às Nações Unidas (4 de outubro de 1965): AAS 57 (1965), 881.
[67] S. João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de março de 1979), n. 16: AAS 71 (1979), 295.
[68] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 258: AAS 112 (2020), 1061.
[69] Francisco, Discurso ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (14 de junho de 2023): L’Osservatore Romano (15 de junho de 2023), 8.
[70] Francisco, Discurso na Jornada mundial de oração pela paz (20 de setembro de 2016): L’Osservatore Romano (22 de setembro de 2016), 5.
[71] Cf. Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 38: AAS 112 (2020), 983: «Em consequência, “seja reafirmado o direito a não emigrar, isto é, a estar em condições de permanecer na própria terra”», que cita Bento XVI, Mensagem para a 99ª Jornada mundial do Migrante e do Refugiado (12 de outubro de 2012): AAS 104 (2012), 908.
[72] Cf. Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 38: AAS 112 (2020), 982-983.
[73] Ibidem, n. 39: AAS 112 (2020), 983.
[74] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), n. 62: AAS 101 (2009), 697.
[75] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 39: AAS 112 (2020), 983.
[76] Pode ser útil aqui recordar a declaração de Paulo III sobre a dignidade dos homens descobertos nas terras do “Novo Mundo”, na Bula Pastorale officium (29 de maio de1537), onde estabelece – sob pena de excomunhão – que os habitantes daqueles territórios, «mesmo se estão fora do seio da Igreja […] não devem ser privados da sua liberdade ou do domínio sobre as suas coisas, porque são homens e, por isso, capazes de fé e de salvação» («licet extra gremium Ecclesiae existant, non tamen sua libertate, aut rerum suarum dominio […] privandos esse, et cum homines, ideoque fidei et salutis capaces sint»): DH 1495.
[77] Francisco, Discurso aos participantes da Plenária do Pontifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e os Itinerantes (24 de maio de 2013): AAS 105 (2013), 470-471.
[78] Francisco, Discurso à Organização das Nações Unidas (25 de setembro de 2015): AAS 107 (2015), 1039.
[79] Francisco, Discurso a um grupo de Embaixadores por ocasião da apresentação das Credenciais (12 de dezembro de 2013): L’Osservatore Romano (13 de dezembro de 2013), 8.
[80] Francisco, Discurso aos participantes da Conferência internacional sobre o tráfico de pessoas (11 de abril de 2019): AAS 111 (2019), 700.
[81] Documento Final da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (27 de outubro de 2018), n. 29.
[82] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 23: AAS 112 (2020), 977, que cita Id., Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), n. 212: AAS 105 (2013), 1108.
[83] S. João Paulo II, Carta às mulheres (29 de junho de 1995), n. 4: Insegnamenti XVIII/1 (1997), 1874.
[84] Ibidem, n. 5: Insegnamenti XVIII/1 (1997), 1875.
[85] Catecismo da Igreja Católica, n. 1645.
[86] Francisco, Discurso por ocasião da Celebração Mariana – Virgen de la Puerta (20 de janeiro de 2018): AAS 110 (2018), 329.
[87] Francisco, Discurso aos participantes da Assembleia Plenária da Congregação para a Doutrina da Fé (21 de janeiro de 2022): L’Osservatore Romano (21 de janeiro de 2022), 8.
[88] S. João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae (25 de março de 1995), 58: AAS 87 (1995), 466-467. Sobre o tema do respeito devido aos embriões humanos, cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Donum vitae (22 de fevereiro de 1987): «A praxe de manter em vida embriões humanos, in vivo ou in vitro, para finalidades experimentais ou comerciais, é totalmente contrária à dignidade humana» (I, 4): AAS 80 (1988), 82.
[89] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 213: AAS 105 (2013), 1108.
[91] Francisco, Discurso aos membros do Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé para as felicitações de ano novo (8 de janeiro de 2024): L’Osservatore Romano (8 de janeiro de 2024), 3.
[92] Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Dignitas personae (8 de setembro de 2008), n. 16: AAS 100 (2008), 868-869. Todos estes aspectos são recordados com precisão na Instrução Donum vitae (22 de fevereiro de 1987): AAS 80 (1988), 71-102, da mesma Congregação.
[93] Congregação para a Doutrina da Fé, Carta Samaritanus bonus (14 de julho de 2020), V, n. 4: AAS 112 (2020), 925.
[94] Cf. Ibidem, V, n.1: AAS 112 (2020), 919.
[95] Francisco, Audiência geral (9 de fevereiro de 2022): L’Osservatore Romano (9 de fevereiro de 2022), 3.
[96] Cf. sobretudo Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), nn. 18-21: AAS 112 (2020), 975-976: “O descarte mundial”. O n. 188 da mesma encíclica chega a identificar uma “cultura do descarte”.
[97] Cf. Francisco, Discurso aos participantes do Congresso promovido pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização (21 de outubro de 2017): L’Osservatore Romano (22 de outubro de 2017), 8: «A vulnerabilidade pertence à essência do homem».
[98] Cf. Francisco, Mensagem por ocasião da Jornada internacional das pessoas com deficiência (3 de dezembro de 2020): AAS 112 (2020), 1185-1186.
[99] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), nn. 187-188: AAS 112 (2020), 1035-1036, que cita Id., Discurso ao Parlamento Europeu (25 de novembro de 2014): AAS 106 (2014), 999, e Id., Discurso à classe dirigente e ao Corpo diplomático, Bangui – República Centro-africana (29 de novembro de 2015): AAS 107 (2015) 1320.
[100] Francisco, Exort. ap. Amoris laetitia (19 de março de 2016), n. 250: AAS 108 (2016), 412-413, que cita Catecismo da Igreja Católica, n. 2358.
[101] Francisco, Discurso aos membros do Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé para as felicitações de ano novo (8 de janeiro de 2024): L’Osservatore Romano (8 de janeiro de 2024), 3.
[102] Francisco, Exort. ap. Amoris laetitia (19 de março de 2016), n. 56: AAS 108 (2016), 334.
[103] Ibidem, que cita a XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, Relatio finalis (24 de outubro de 2015), 58.
[104] Francisco, Exort. ap. Amoris laetitia (19 de março de 2016), n. 286: AAS 108 (2016), 425.
[105] Catecismo da Igreja Católica, n. 364.
[106] Isto vale também para o respeito devido aos corpos dos defuntos; cf. p. ex. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Ad resurgendum cum Christo (15 de agosto de 2016), n. 3: AAS 108 (2016), 1290: «Sepultando os corpos dos fiéis defuntos, a Igreja confirma a fé na ressurreição da carne e pretende ressaltar a alta dignidade do corpo humano como parte integrante da pessoa, de cuja história o corpo participa». Para uma abordagem mais completa, cf. Comissão Teológica Internacional, Problemas atuais de escatologia (1990), n. 5: “O homem chamado à ressurreição”.
[107] Cf. Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), n. 155: AAS 107 (2015), 909.
[108] Francisco, Exort. ap. Amoris laetitia (19 de março de 2016), n. 56: AAS 108 (2016), 344.
[109] Francisco, Exort. ap. Christus vivit (25 de março de 2019), n. 88: AAS 111 (2019), 413, que cita o Documento Final da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (27 de outubro de 2018), n. 23.
[110] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 42: AAS 112 (2020), 984.
[111] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 205: AAS 112 (2020), 1042, que cita Id., Mensagem para a 48a Jornada mundial das Comunicações Sociais (24 de janeiro de 2014): AAS 106 (2014), 113.
[112] Francisco, Angelus (10 de dezembro de 2023): L’Osservatore Romano (11 de dezembro de 2023), 12.
[113] Cf. Comissão Teológica Internacional, Dignidade e direitos da pessoa humana (1983), n. 2.
[114] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), n. 195: AAS 112 (2020), 1038, que cita Id., Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), n. 274: AAS 105 (2013), 1130.
[115] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), n. 205: AAS 107 (2015), 928.
FC!#440 - A ressurreição de Jesus Cristo e a esperança do Cristão - Santo Afonso Maria de Ligório
Haec dies quam fecit Dominus: exultemus et laetemur in ea – “Este é o dia que fez o Senhor; regozijemo-nos e alegremo-nos nele” (Sl 117, 24)
Façamos um ato de fé viva na ressurreição de Jesus Cristo; cheguemo-nos a Ele em espírito para Lhe beijar as chagas glorificadas, e regozijemo-nos com Ele por ter saído do sepulcro vencedor da morte e do inferno. Lembrando-nos em seguida que a ressurreição de Jesus é o penhor e a norma da nossa, avivemos nossa esperança, e ganhemos ânimo para suportar com paciência as tribulações da vida presente. Lembremo-nos, porém, que para ressuscitarmos gloriosamente com Jesus Cristo devemos primeiro morrer com Ele a todos os afetos terrestres.
I. O grande mistério que em todo o tempo pascal, e especialmente no dia de hoje, deve ocupar as almas amantes de Deus, e enchê-las de dulcíssima esperança, é a felicidade de Jesus ressuscitado. Já meditamos que Jesus, no tempo de sua Paixão, perdeu inteiramente as quatro espécies de bens que o homem pode possuir na terra. Perdeu os vestidos até a extrema nudez; perdeu a reputação pelos desprezos mais abomináveis; perdeu a florescente saúde pelos maus tratos; perdeu finalmente a vida preciosíssima pela morte mais horrível que se pode imaginar. Agora porém, saindo vivo do fundo do sepulcro, recebe com lucro abundantíssimo tudo quanto perdeu.
O que era pobre, ei-Lo feito riquíssimo e Senhor de toda a terra. O que a si próprio se chamava verme e opróbrio dos homens, ei-Lo coroado de glória, assentado à direita do Pai. O que pouco antes era o Homem das dores e provado nos sofrimentos, ei-Lo dotado de nova força e de uma vida imortal e impassível. Finalmente o que tinha sido morto do modo mais horrível, ei-Lo ressuscitado pela sua própria virtude, dotado de sutileza, de agilidade, de clareza, feito as primícias de todos os que dormem com a esperança de ressuscitarem também um dia à imitação de Cristo: Christus resurrexit a mortuis, primitiae dormientium (1)
Detenhamos-nos aqui para tributar a nosso Chefe divino as devidas homenagens. Façamos um ato de fé viva na sua ressurreição, e cheguemo-nos a Ele para beijarmos em espírito os sinais de suas cinco chagas glorificadas. Alegremo-nos com Ele, por ter saído do sepulcro, vencedor da morte e do inferno, e digamos com todos os santos: “O Cordeiro que foi imolado por nós, é digno de receber o poder, a divindade, a sabedoria, a fortaleza, a honra, a glória e a bênção.” (2)
II. Regozijemo-nos com Jesus Cristo; mas regozijemo-nos também por nós mesmos, porquanto a sua ressurreição é o penhor e a norma da nossa, se ao menos, como diz São Paulo, morrermos primeiro interiormente ao afeto das coisas terrestres: Si commortui sumus, et convivemus (3) — “Se morrermos com Ele, com Ele também viveremos”. Ó doce esperança! “Virá a hora em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus” (4); e então pelo poder divino retomaremos o mesmo corpo que agora temos, mas formoso e resplandecente como o sol. Nós também ressuscitaremos!
A esperança da futura ressurreição é o que consolava o santo Jó no tempo de sua provação. “Eu sei”, disse ele, e nós, digamos o mesmo no meio das cruzes e tribulações da vida presente: “eu sei que o meu Redentor vive, e que no derradeiro dia surgirei da terra; e serei novamente revestido de minha pele, e na minha própria carne verei a meu Deus… esta minha esperança está depositada no meu peito.” (5)
Meu amabilíssimo Jesus, graças Vos dou que pela vossa morte adquiristes para mim o direito à posse de tão grande bem, e hoje pela vossa ressurreição avivais a minha esperança. Sim, espero ressurgir no último dia, glorioso como Vós, não tanto por meu próprio interesse, como para estar para sempre unido convosco, e louvar-Vos e amar-Vos eternamente. É verdade que pelo passado Vos ofendi com os meus pecados; mas agora arrependo-me de todo o coração e pela vossa ressurreição peço-Vos que me livrais do perigo de recair na vossa desgraça: Per sanctam resurrectionem tuam, libera me, Domine — “Pela vossa santa ressurreição, livrai-me, Senhor”.
“E Vós, Eterno Pai, que no dia presente nos abristes a entrada da eternidade bem-aventurada, pelo triunfo que vosso Unigênito alcançou sobre a morte: aumentai com o Vosso auxílio os desejos que a vossa inspiração nos instila” (6). Fazei-o pelo amor do mesmo Jesus Cristo e de Maria Santíssima.
Referências:
(1) 1Cor 15, 20
(2) Ap 5, 12
(3) 2Tm 2, 11
(4) Jo 5, 28
(5) Jó 19, 25
(6) Or.festi curr.
FC!#439 - "A Cruz e o Crucifixo", sobre Dor e Sofrimento, Amor e Sacrifício - Ven. Fulton Sheen (1934)
Leitura do texto “A Cruz e o Crucifixo”, de Fulton Sheen (1934).
A primeira questão a ser introduzida na história do mundo e a qual nos trouxe tanta dor e inimizade foi: “por que?”. Satanás foi o primeiro a levantar essa questão… “Mas por que Deus proibiu-lhes de comer do fruto de todas as árvores do Jardim?” (Gn 3, 1).
Desde aquele dia até hoje nossas pobres mentes já formularam muitos “por quês”, mas nenhum tanto quanto esse: “Por que existe a dor no mundo? Por que as pessoas tem que sofrer tanto? Por que a alegria é tão pouca e o sofrimento tanto?”
Esse problema da dor tem um símbolo e o símbolo é a cruz. Mas por que seria a cruz o símbolo perfeito do sofrimento? Porque ela é feita de duas barras: uma horizontal e outra vertical. A barra horizontal é a barra da morte… é como a linha da morte nos eletro-encefalogramas: reta, prostrada. A barra vertical é a barra da vida: ereta, de pé, inclinada para o alto. O cruzamento de uma barra sobre a outra significa a contradição entre a vida e a morte, entre a alegria e o sofrimento, sorriso e lágrimas, prazer e dor, nossa vontade e a vontade de Deus.
O único modo de se fazer uma cruz é sobrepor a barra da alegria sobre a barra do sofrimento. Em outras palavras: nossa vontade é a barra horizontal, enquanto a vontade de Deus é a barra vertical. Na medida em que nós sobrepomos nossos desejos e nossas vontades contra a vontade de Deus, formamos assim uma cruz. Desse modo, a cruz se torna o símbolo da dor e do sofrimento.
Todavia, se a cruz é o símbolo perfeito do problema da dor, o Crucifixo então é a sua solução. A diferença entre a cruz e o Crucifixo é Cristo. Uma vez que Nosso Senhor, que é por si só o Amor, sobe na cruz, Ele nos revela como o amor pode ser transformado pelo amor num alegre sacrifício, como aqueles que semeiam em lágrimas podem colher com alegria, como aqueles que choram podem ser confortados, como aqueles que sofrem com Ele podem também reinar com Ele e como aqueles que carregam suas cruzes por uma breve Sexta Feira da Paixão possuirão a felicidade por um eterno Domingo de Ressurreição. O Amor é o ponto de interseção onde a barra horizontal da morte e a barra vertical da vida reconciliam-se na doutrina de que toda a vida vem através da morte.
É aqui que a solução de Nosso Senhor se diferencia de todas as outras soluções para o problema da dor… até mesmo daquelas pseudo-soluções que se mascaram sob o nome de “cristãs”. O mundo tenta resolver o problema da dor de duas maneiras: ou negando-o ou tentanto torná-lo insolúvel. O problema da dor é negado por um peculiar processo de auto-hipnotismo que costuma inculcar nas pessoas a ideia de que a dor é imaginária. Tenta-se torná-lo insolúvel através de uma tentativa de fuga e, por essa razão, o homem moderno sente que é melhor pecar do que sofrer. Nosso Senhor, ao contrário, não nega a dor e nem tenta escapar dela. Ele a encara e ao agir assim Ele nos prova que o sofrimento não é alheio nem mesmo ao Deus que se fez homem.
Vemos assim que a dor desempenha um papel definitivo na vida. É sem dúvida um fato marcante que nossas sensibilidades são mais desenvolvidas para a dor do que para o prazer e nossa capacidade de sofrer excede nossa capacidade de alegrarmo-nos. O prazer cresce até chegar a um ponto de saciedade e nós sentimos que se passasse daquele ponto se tornaria uma verdadeira tortura. A dor, ao contrário, continua crescendo e crescendo mesmo quando já choramos “o bastante”. Ela atinge um ponto em que nós sentimos que não poderíamos mais suportar e ela vai se descarregando até matar.
Eu penso que o motivo pelo qual nós possuímos mais capacidade para a dor do que para o prazer é porque talvez Deus pretendia que aqueles que levam uma vida moral correta deveriam beber até a última gota do cálice da amargura aqui nesse mundo porque no Céu não existe mais amargor. Por outro lado, aqueles que são moralmente bons nunca gozam o máximo do prazer aqui embaixo porque sabem que uma felicidade muito maior os aguarda no Céu. Mas deixando de lado as conjecturas, seja lá qual for a razão, a verdade que permanece é que na cruz Nosso Senhor demonstra um tipo de Amor que não pode tomar outra forma quando é contraposto ao mal, senão a forma de dor.
Para vencer o mal com o bem, uma pessoa deve sofrer injustamente. A lição do Crucifixo então é que a dor nunca pode ser separada ou isolada do amor. O Crucifixo não significa dor; significa sacrifício. Em outras palavras, ele nos diz em primeiro lugar que dor é sacrifício sem amor e em segundo, que sacrifício é dor com amor.
Primeiro, dor é sacrifício sem amor. A Crucifixão não é a glorificação da dor pela dor. A atitude cristã da mortificação algumas vezes é mal interpretada como sendo uma idealização da dor… como se nos tornássemos mais agradáveis a Deus quando sofremos do que quando nos alegramos.
Não! A dor em si mesma não possui nenhuma influência santificante! O efeito natural da dor é nos individualizar, centralizar nossos pensamentos em nós mesmos e fazer de nossa enfermidade o pretexto para tudo quanto é conforto e atenção. Todas as aflições do corpo, tais como penitências e mortificações em si mesmo não tendem tornar o homem melhor. Aliás, frequentemente tornam o homem pior. Quando a dor é divorciada do amor ela leva o homem a desejar que os outros estejam como ele está, ela o torna cruel, cheio de ódio, amargura. Quando a dor não é santificada, ela deixa cicatrizes, queima todas as mais finas sensibilidades da alma deixando-a brutalmente desfigurada. Dor como simples dor então não é um ideal: torna-se uma maldição quando é separada do amor, pois ao invés de tornar uma alma melhor a torna pior.
Agora contemplemos o outro lado da figura. A dor não é para ser negada e nem pra fugirmos dela. É para ser encarada com amor e vivida como sacrifício. Analise sua própria experiência e verá que muitas vezes seu coração e mente lhe dizem que o amor é capaz de superar de algum modo seus sentimentos naturais acerca da dor, que algumas coisas que poderiam parecer dolorosas tornam-se alegria quando você percebe que podem beneficiar o próximo.
Em outras palavras, o amor pode transformar a dor em sacrifício agradável, o que é sempre uma alegria. Se você perde por exemplo, uma certa quantidade de dinheiro, tal perda não poderia ser aliviada pela compreensão de que talvez aquele dinheiro foi encontrado por uma pobre alma que tinha mais necessidade do que você? Se sua cabeça está latejando de dor e seu corpo extenuado por uma noite de vigília ao lado da cama de seu filho doente, não seria essa dor aliviada pelo pensamento de que foi através desse amor e devoção que aquela criança conseguiu superar a enfermidade? Você jamais poderia ter sentido aquela alegria e nem ter tido a mínima idéia do tamanho do seu amor se você tivesse se negado a fazer aquele sacrifício. E se o seu amor não estivesse presente, então aquele sacrifício teria sido apenas dor, incômodo e aborrecimento.
A verdade gradualmente emerge quando percebemos que a nossa profunda felicidade consiste no sentimento de que o bem ou benefício do próximo foi conquistado através do nosso sacrifício. O motivo por que a dor é amarga é porque não temos ninguém para amar e por quem nós deveríamos sofrer. O amor é a única força do mundo que pode tornar a dor suportável e a faz mais do que suportável ao transformá-la na alegria do sacrifício.
Agora, se a escória da dor pode ser transformada no ouro do sacrifício pela alquimia do amor, então daí se segue que nosso amor se torna mais profundo, a sensação de dor diminui e cresce nossa alegria no sacrifício. Mas não podemos esquecer que não existe amor maior do que o amor Daquele que entregou Sua própria vida por Seus amigos. Portanto, quanto mais intensamente nós amarmos os Seus santos propósitos, quanto mais zelosos formos por Seu Reino, quanto mais devotados formos pela maior Glória de Nosso Senhor e Salvador, mais nos alegraremos em qualquer sacrifício que possa trazer uma só alma para seu Sacratíssimo Coração. Tal é o motivo pelo qual São Paulo se gloriava em suas enfermidades e alegrias e que os Apóstolos se alegravam quando podiam sofrer por Jesus por quem eles tanto amavam.
Não é de se admirar que os maiores santos sempre disseram que a melhor e maior das graças que Deus havia concedido-lhes era o mesmo privilégio concedido ao seu Divino Filho: ser usado e sacrificado por uma causa mais elevada. Nada poderia dar-lhes maior satisfação do que renovar a vida de Cristo em suas próprias vidas, cobrir seus corpos com os mesmos sofrimentos sofridos por Cristo em Sua dolorosa Paixão. O mundo tenta eliminar a dor. O Crucifixo a transforma através do amor recordando-nos que a dor vem do pecado enquanto o sacrifício vem do amor e que não há nada mais nobre do que o sacrifício.
O Mundo não pode dispensar o Cristo em Sua Cruz. Eis o motivo porque o mundo é triste: por que se esqueceram de Cristo e da Sua Paixão. E quanto desperdício de dor há neste mundo! Quantas cabeças que padecem dos mais diversos tipos de dor sem jamais terem se unido à Cabeça coroada de espinhos pela Redenção do mundo; quantos pés latejam de dor sem jamais terem se aliviado pelo amor Daquele cujos pés subiram descalços a colina do Calvário; quantos corpos feridos existem que não conhecem o amor de Cristo por eles. Esses não conhecem o amor que pode aliviar suas dores. Quantos corações que sofrem e padecem porque não possuem aquele amor do Sacratíssimo Coração; quantas almas que só conseguem enxergar a cruz ao invés do Crucifixo! Almas que possuem dor sem sacrifício, almas que nunca aprendem que é pela falta de amor que a dor cresce, almas que perdem a alegria do sacrifício porque não sabem o que é amar. Oh! Quão doce é o sacrifício daqueles que sofrem porque amam o Amor que sacrificou-se por eles numa cruz. Apenas para essas almas é possível compreender os santos propósitos de Deus, apenas aqueles que caminham pela noite escura são capazes de contemplar as estrelas.
FC!#438 - Sinfonia "A Paixão de Cristo", de Ferrer Ferran (Sinfonia nº 2)
Trecho do Concerto apresentado pela Banda Jovem do Estado no palco do Masp Auditório em 2019, sob a regência da maestrina Mônica Giardini e narração de Anderson Vizarro Junior.
FERRER FERRAN
Sinfonia nº 2 "A Paixão de Cristo"
I – Nascimento. Morte dos Inocentes. Batismo.
II – As Três Tentações
III – Chegada ao Templo. A Santa Ceia. Captura. Julgamento. Crucificação. Esperança.
FC!#437 - Meditação da 6ª Feira da Paixão (Tarde): Jesus é descido da cruz - Santo Afonso Maria de Ligório
Ioseph, deponens eum, involvit sindone – “José, depondo-O da cruz, O amortalhou no sudário” (Mc 15, 46)
Consideremos como, depois da morte do Senhor, dois dos seus discípulos, José e Nicodemos, o descem da cruz e O depõem nos braços da aflita Mãe, que com ternura O recebe e O aperta contra o peito. Se Maria fosse ainda capaz de dor, que pena sentiria vendo que os homens, tendo visto seu Filho morto por amor deles, continuam a maltratá-Lo com os seus pecados? Não atormentemos mais a nossa aflita mãe, e se pelo passado nós também a temos afligido com as nossas culpas, voltemos arrependidos ao Coração aberto de seu Jesus.
I. Temendo a Mãe dolorosa, que depois do ultraje da lançada outras injúrias fossem feitas a seu amado Filho, pede a José de Arimatéia, obtivesse de Pilatos o corpo de seu Jesus, a fim de que ao menos morto O pudesse guardar e livrar dos ultrajes. Foi José ter com Pilatos e expôs-Lhe a dor e o desejo da aflita Mãe, e diz Santo Anselmo que a compaixão para com ela enterneceu Pilatos e o moveu a conceder-lhe o corpo do Salvador.
Eis que descem Jesus da cruz. Foi revelado a Santa Brígida, que para o descimento encostaram à cruz três escadas. Primeiro, os santos discípulos despregaram as mãos e depois os pés, e os cravos foram entregues a Maria, como refere Metaphrastes. Depois, segurando um o corpo de Jesus por cima, e outro por baixo, o desceram da cruz. Bernardino de Bustis medita como a aflita Mãe se levanta sobre as pontas dos pés, e, estendendo os braços, vai receber o querido Filho; abraça-O e depois senta-se debaixo da cruz.
Vê a boca aberta e os olhos escurecidos; examina aquelas carnes dilaceradas, aqueles ossos descarnados; tira-Lhe a coroa e examina o estrago feito pelos espinhos naquela santa cabeça; observa as mãos e os pés traspassados, e diz: Ah, meu Filho! A que estado te reduziu o amor para com os homens! Que mal lhes fizeste para assim te maltratarem? Ah! Meu Filho, vê como estou aflita, olha-me e consola-me; mas já não me vês. Fala, dize-me uma palavra e consola-me; mas já não falas, porque estás morto… Ó espinhos cruéis, cravos atrozes, bárbara lança, como pudestes atormentar assim o vosso Criador? Mas, que espinhos, que cravos! Ah, pecadores, exclamava, assim tendes maltratado o meu Filho!
II. Ó Virgem Santíssima, depois que vós com tanto amor destes ao mundo o vosso Filho para a nossa salvação, eis que o mundo já vo-Lo restitui. — Mas, ó Deus! Como mo restituis tu? Dizia então Maria ao mundo. Dilectus meus candidus et rubicundus (1). Meu Filho era branco e vermelho, não pela cor, mas pelas chagas que Lhe tens aberto. Ele era belo, agora, em vez de belo, é todo deforme; Ele encantava com o seu aspecto, agora causa horror a quem O vê.
Assim se expressava então Maria e se queixava de nós. Mas se agora fosse ainda capaz de dor, que diria? E que pena sentiria, ao ver que os homens, depois da morte de seu Filho, continuam a maltratá-Lo e crucificá-Lo com os seus pecados? Não continuemos, pois, a atormentar esta dolorosa Mãe, e se pelo passado nós também a temos afligido com as nossas culpas, façamos o que ela mesma nos diz: Redite, praevaricatores, ad cor (2): Pecadores, voltai ao Coração ferido de meu Jesus; voltai arrependidos, e Ele vos acolherá. — Revelou a mesma Bem-aventurada Virgem a Santa Brígida, que ao Filho descido da cruz ela fechou os olhos, mas não pode fechar-Lhe os braços, dando com isso Jesus Cristo a entender que queria ficar com os braços abertos, para acolher todos os pecadores arrependidos, que voltam para Ele.
Ó Virgem dolorosa, ó alma grande nas virtudes e grande também nas dores, pois que tanto estas como aquelas nascem do grande incêndio de amor que tendes a Deus. Ah, minha Mãe! Tende piedade de mim, que não tenho amado a Deus e O tenho ofendido. As vossas dores me dão grande confiança para esperar o perdão. Mas isto não me basta; quero também amar o meu Senhor, e quem me pode alcançar isto melhor do que vós, que sois a Mãe do belo amor? Ah Maria! Vós consolais a todos; consolai-me também a mim.
FC!#436 - Meditação da 6ª Feira da Paixão (Manhã) - Santo Afonso Maria de Ligório
Et inclinato capite, tradidit spiritum – “E inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (Jo 19, 30)
Contempla como depois de três horas de agonia, pela veemência das dores, as forças faltam a Jesus; entrega o corpo ao próprio peso, deixa cair a cabeça sobre o peito, abre a boca e expira. Alma cristã, dize-me: não merece porventura todo o nosso amor um Deus que, para nos salvar da morte eterna, quis morrer no meio dos mais atrozes tormentos? Todavia, como são poucos os que amam e muitos os que, em vez de O amarem, Lhe pagam com injúrias e ultrajes.
I. Considera que o nosso amável Redentor é chegado ao fim da sua vida. A mortecem-se-Lhe os olhos, o seu belo rosto empalidece, o coração palpita debilmente, e todo o sagrado corpo é lentamente invadido pela morte. Vinde, anjos do céu, vinde assistir a morte do vosso Deus. Vós, ó Mãe dolorosa, Maria, chegai-vos mais próxima à cruz, levantai os olhos para vosso Filho, e contemplai-O atentamente, porque está prestes a expirar.
Pater, in manus tuas commendo spiritum meum (1) — “Pai em vossas mãos entrego o meu espírito”. É esta a última palavra que Jesus profere com confiança filial e perfeita resignação com a vontade divina. Foi como se dissesse: Meu Pai, não tenho vontade própria; não quero nem viver nem morrer. Se é vossa vontade que eu continue a padecer sobre a cruz, eis-me aqui, estou pronto para obedecer; em vossas mãos entrego o meu espírito; fazei de mim segundo a vossa vontade. — Tomara que nós disséssemos o mesmo, quando temos alguma cruz, deixando-nos guiar pelo Senhor, conforme o seu agrado. Tomara que o repetíssemos especialmente no momento da morte! Mas para bem o fazermos então, devemos praticá-lo muitas vezes em nossa vida.
Entretanto, Jesus chama a morte, que por deferência não ousava aproximar-se do autor da vida, e lhe dá licença para lhe tirar a vida. E eis que finalmente, enquanto treme a terra, se abrem os túmulos e se rasga o véu do templo, eis que pela veemência da dor faltam as forças ao Senhor moribundo, baixa o calor natural, falha a respiração. Jesus abandona o corpo ao próprio peso, deixa cair a cabeça sobre o peito, abre a boca e expira: Et inclinato capite, tradidit spiritum (2). — Parti, ó bela alma do meu Salvador, parti e ide nos abrir o paraíso, fechado até agora, ide apresentar-Vos à Majestade divina, e alcançai-nos o perdão e a salvação.
As pessoas presentes, voltadas para Jesus Cristo, por causa da força com que proferiu as suas últimas palavras, contemplam-No com atenção silenciosa, vêem-No expirar, e notando que não se move mais, dizem: Morreu, morreu. Maria ouve que todos o dizem, e ela também exclama: Ah, Filho meu, já morreste; estais morto.
II. Morreu! Ó Deus! Quem é que morreu? O Autor da vida, o Unigênito de Deus, o Senhor do mundo. Ó morte, que fizeste pasmar o céu e a natureza! Um Deus morrer pelas suas criaturas! — Vem, minha alma, levanta os olhos e contempla esse Homem crucificado. Contempla o Cordeiro divino já imolado sobre o altar da dor; lembra-te de que Ele é o Filho dileto do pai Eterno, e que morreu pelo amor que te tem dedicado. Vê esses braços abertos para te acolherem; a cabeça inclinada para te dar o ósculo de paz; o lado aberto para te receber. Que dizes? Não merece ser amado um Deus tão bom e tão amoroso? Ouve o que do alto de sua cruz te diz o Senhor: Meu Filho, vê se há alguém no mundo que te tenha amado mais do que eu, teu Deus!
Ah meu Jesus, já que para minha salvação não poupastes a vossa própria pessoa, lançai sobre mim esse olhar afetuoso com que me olhastes um dia, quando estáveis em agonia sobre a cruz; olhai-me, iluminai-me, e perdoai-me. Perdoai-me em particular a ingratidão que tive para convosco no passado, pensando tão pouco na vossa paixão e no amor que nela me haveis mostrado. Dou-Vos graças pela luz que me concedeis de compreender através de vossas chagas e de vossos membros dilacerados, como por entre umas grades, o afeto tão grande e tão terno que ainda guardais para comigo.
Ai de mim, se depois de receber estas luzes deixasse de Vos amar, ou amasse outra coisa que não a Vós. Morra eu, assim Vos direi com São Francisco de Assis, morra eu por amor de vosso amor, ó meu Jesus, que Vos dignastes morrer por amor de meu amor. Ó Coração aberto de meu Redentor, ó morada feliz das almas amantes, não Vos dedigneis receber agora minha misera alma.
Ó Maria, ó Mãe de dores, recomendai-me a vosso Filho, a quem vedes morto sobre a cruz. Vede as suas carnes dilaceradas, vede o seu Sangue divino derramado por mim, e conclui disto quanto lhe agrada que lhe recomendeis a minha salvação. A minha salvação consiste em que eu O ame, e este amor vós mo deveis impetrar, mas um amor grande, um amor eterno.
Casamento e Sacrifício (2024)
A seguinte playlist é uma reprodução da palestra do Pe. José Eduardo, da Diocese de Osasco-SP, que aborda a relação entre o casamento e a Quaresma, partindo do texto bíblico de Efésios 5. Ele explora como o sacramento do matrimônio é essencial na fé católica, comparando a união entre marido e mulher com a união entre Cristo e a Igreja. Destaca a importância do sacrifício no amor conjugal, refletindo sobre como muitas vezes o amor é mal compreendido como oposto ao sacrifício. O casamento demanda renúncia, entrega e imolação, e isso é um processo de santificação. O padre discute a necessidade de colocar o cônjuge antes de si mesmo, praticando atos de amor e sacrifício diários, ressaltando, ainda, que o casamento requer virtude e uma constante disposição para se doar ao outro, mesmo quando isso implica renunciar aos próprios desejos e vontades.
Confira abaixo o texto da transcrição da palestra (gerada automaticamente), com todo o seu conteúdo capitulado por mim nos episódios que se seguem. Você pode assistir à palestra no canal do Pe. José Eduardo, que te convido a curtir e se inscrever.
Ao Pe. José Eduardo o meu muito obrigado por permitir que reproduzíssemos aqui o seu conteúdo.
Transcrição da palestra
Muito bem. Eu fico muito contente de estar aqui nesse primeiro pós-encontro do ano de 24, do nosso ECC, já, digamos assim, avançado o tempo da Quaresma, para poder falar um pouco sobre, justamente, a relação entre matrimônio e Quaresma. Eu vou ao texto clássico que é Efésios, capítulo cinco, a partir do versículo 21, quando São Paulo diz:
"Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo, as mulheres o sejam aos maridos como ao Senhor. Pois o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja. Seu corpo, no qual ele é o Salvador. Por outro lado, como a Igreja se submete a Cristo, que as mulheres se submetam em tudo a seus maridos. 25 Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo também amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de santificar, pela palavra, aquela que ele purifica pelo banho da água, pois ele quis apresentá la a si mesmo, toda bela, sem mancha nem ruga, ou qualquer reparo, mas santa e sem defeito. É assim que os maridos devem amar suas esposas como amam o seu próprio corpo. Aquele que ama sua esposa está amando a si mesmo. Ninguém jamais odiou a própria carne. Pelo contrário, alimenta. É cercada de cuidado, como Cristo faz para a igreja. E nós somos membros do seu corpo. Por isso, o homem deixará o seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher. E os dois serão uma só carne. Esse mistério é grande, eu digo com referência a Cristo e a Igreja. Enfim, cada um de vós também ame a sua esposa como a si mesmo. E que a esposa tenha respeito pelo marido".
São Paulo, aqui nos apresenta uma doutrina sobre o sacramento do matrimônio, que justamente é como que o núcleo, o coração da fé da Igreja, na realidade desse sacramento. Vocês sabem que para a Igreja Católica, o casamento não é apenas uma união natural para boa parte das igrejas protestantes. O matrimônio não é um sacramento. É tão somente uma união natural entre um homem e uma mulher que se tornam uma só carne.
Para a Igreja Católica, o matrimônio é um sacramento, por quê? Porque São Paulo aqui nos diz de maneira categórica Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo amou a Igreja e se entregou a si mesmo por ela, a fim de apresentá la a si mesmo, sem mancha, nem ruga, nem defeito, mas gloriosa. E diz Pelo banho da palavra, com a água, ou seja, o matrimônio não é uma união tão somente natural.
É uma união sobrenatural que São Paulo compara com a união entre Cristo e a Igreja, fazendo referência ao batismo.
A sacramentalidade do matrimônio, aliás, nasce do santo batismo. É o sacramento do batismo que demanda que o matrimônio seja um sacramento. Caso contrário, se um batizado, que é chamado à união com Deus, a santidade é chamado à contemplação, tivesse que se casar, o casamento seria um impedimento para que ele se santificasse, pois ele seria uma união natural. Ou seja, a melhor coisa seria, de fato, cada um buscar a Deus por conta própria.
Uma vez batizado, porque naquela união tão somente carnal, tão somente humana, ele encontraria mais empecilhos do que ajuda para chegar à união com Deus. Mas como o matrimônio é um sacramento, logo a consequência disso é que tudo o que diz respeito ao matrimônio, tudo favorece a união com Cristo. Uma vez que meu cônjuge é para mim a representação sacramental de Jesus Cristo, dizendo com outras palavras digamos que duas pessoas, dois cristãos, vão ao cartório e façam o chamado casamento civil.
E o homem, que é uma mulher? Se dois pagãos fizerem um casamento, esse casamento inclusive seria válido. Mas como o casamento natural seria um homem que ama uma mulher tão somente. Nada mais além disso. Agora, quando dois batizados se unem de maneira válida, aquela união não é uma união meramente natural. Um se torna a representação de Cristo para o outro.
Assim como, por exemplo, Jesus ficou na Eucaristia para que, comungando, nós aprendêssemos o que é a união com Deus. Porque na comunhão é o que acontece. Nós estamos mais do que nunca unidos ao próprio Deus e procuramos amá lo enquanto nós comungamos. Naqueles minutos que Cristo fica em nós antes de começar o processo digestivo, nós ficamos ali amando Cristo, amando Cristo na Eucaristia.
Para aprender, inclusive a fazer a mesma coisa, quando nós não comungamos. Quando nós vamos rezar por nós, vamos fazer isso mesmo. Amar Jesus pela união que é proporcionada pela fé. Quando eu faço um ato de fé, eu me uno a Cristo. E se eu o amo, eu estou orando. A oração é esse desfrutar do amor de Deus em Cristo é amar Deus em Cristo mediante a fé.
Nós, católicos, temos a graça de termos a via da fé e a via dos sacramentos. Então eu posso amar Cristo quando eu comungo. Eu posso amar Cristo pela oração. E nós vamos crescendo na espiritualidade na medida em que nós vamos mergulhando mais e mais nesse amor sobrenatural. Nesse amor espiritual por Deus.
Só que para os casados existe um terceiro elemento. Uma terceira maneira de união com Cristo é a união com o seu cônjuge. Vejam que grande coisa é o matrimônio ser um sacramento, porque ele te transforma numa espécie de ícone de Jesus Cristo, de representação de Cristo. Portanto, quando você ama o seu cônjuge, você está no mesmo ato, Amando a Deus, está aprendendo a amar Deus?
É claro que não é a mesma coisa. Eucaristia, porque o seu cônjuge não é a presença substancial de Cristo. Ele não é Cristo em pessoa. Porém Ele é assumido por Cristo de tal modo que se torna, por assim dizer, uma imagem dele. E quando você o ama, é quando você a ama. O que acontece é que esse ato de amor tende a ser um ato sobrenatural.
Se você de fato é cristão, isso significa que o seu cônjuge para você se torna um muito sagrado, porque você passa a venerar a quem você passa a secundar, a quem você passa a amar com todo o seu coração. Jesus diz Aliás, Paulo diz Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela.
Então é aqui que vem o nexo com o mistério que nós celebramos nessa Quaresma e que de algum modo, revela uma faceta de como a espiritualidade quaresmal pode nos fazer aprofundar mais na espiritualidade matrimonial, justamente pela entrega que um cônjuge tem que ter pelo outro.
Hoje nós vivemos um tempo em que as pessoas não conseguem entender o amor como sacrifício. Parece que o amor é o oposto o sacrifício, ou seja, eu tinha uma amiga que morava na Itália há muito tempo e mora na Itália até hoje, mas há muito tempo nós conversávamos e essa senhora me dizia Padre, eu estou incomodando, como não está incomodando, Mas eu não quero ser um sacrifício para o Senhor.
Eu digo essa desculpa, mas não tem problema. Quer dizer, conversar com uma pessoa, dar o atendimento a uma pessoa remotamente é um sacrifício. Eu tenho que ficar ali parado, parar tudo que eu estou fazendo, dar atenção para aquela pessoa. Eu não sacrifício, mas isso não significa que eu faça sacrifício com desgosto contra minha vontade, ou que isso seja oposto A caridade, que eu tenha que ter com a alma dela.
Não, pelo contrário, por que eu tenho caridade com a alma dela? Porque eu a amo sobrenaturalmente. Eu me sacrifico por ela. É assim com qualquer pessoa que eu preciso atender, né? Então, por exemplo, ouvir confissões não é a coisa mais agradável do mundo. Você fica ali naquela janelinha e uma pessoa com a voz bem baixa começa a contar um negócio nos mínimos detalhes.
E leva o tempo. Leva o tempo e você tem que fazer uma energia psicológica para escutar aquela pessoa, para não perder nada do que ela diz com ela. Sai. Você está meio cadavérico, porque o nível de atenção que ela te demandou é muito grande. Então, psicologicamente, você fica exausto. Agora, isso é contrário ao amor, muito pelo contrário, Nós fazemos isso por amor, por um amor sobrenatural, por um amor que é, por assim dizer, a essência mesma do mandamento da caridade.
O mesmo vale para o matrimônio. Só que as pessoas não entendem assim, as pessoas pensam assim Eu tenho que casar com uma pessoa com quem eu curta, estar junto com quem seja sempre legal, estar junto com quem eu vou viver, uma espécie de paraíso de história encantada. E o que acontece? Acontece que isso não existe. Isso é uma ilusão.
Por exemplo, hoje se fala bastante sobre a compatibilidade entre os cônjuges. Será que o seu cônjuge é compatível com você? Será que ele é incompatível com você? Vamos fazer terapia para conseguirmos compatibilizar a nossa relação, porque o problemas disso? O problema é que uma das coisas mais impossível é que um homem seja compatível com uma mulher. Do ponto de vista psicológico.
As duas maneiras de ser não são idênticas. São psicologias de certo modo opostas. Sei lá. Mas além de isso ser impossível, seria extremamente indesejável. Por quê? Porque nós somos cristãos e nós precisamos ser desafiados todos os dias a combater os nossos defeitos. Ou seja, você se casou e não se agregou a um companheiro de crime, alguém que será cúmplice de todos os seus defeitos.
Portanto, para nós, o fato de que o cônjuge demande de mim sacrifício, entrega e imolação é altamente santificante. Porque eu estou sendo tratado por Cristo através da disciplina conjugal.
Esses dias, por exemplo, eu via um pequeno pequeno rio do Instagram de um casal em que o rapaz dizia assim Quando o homem se casa, ele volta a ter nove anos de idade. E aí ele ilustrava e diz Olha, se eu encontrar com os meus amigos na rua e um deles falar para mim vamos tomar uma cerveja, você pode ir.
Ele vai dizer pera aí que eu vou perguntar. E aí ele vai perguntar para a esposa Olha, aquele meu amigo já tem tanto tempo que a gente não vê que a gente não se cruza, que a gente não conversa. Então será que eu podia ir tomar uma cerveja com ele no sábado, na hora do almoço? Parece uma criança pedindo autorização à mãe.
Por que é assim? E porque é que tem que ser assim? Inclusive, né? Porque você tem um compromisso. Ou seja, quando Jesus diz no Evangelho que quem não for como criança não entrará no reino dos céus, então isso também vale para o matrimônio, porque você aprende que você não pode fazer o que você quer. Você precisa sempre se reportar a outra pessoa, e isso se aplica a todas as circunstâncias da vida matrimonial.
Você tem que ter consideração por aquela pessoa. Veja, Uma das maiores graças que Deus me concedeu na minha vida foi não ter me casado. Celibato é um dom de Deus. Por quê? Porque o celibato traz uma leveza para a vida. Ou seja, eu entro em casa e não preciso dar atenção a ninguém, literalmente. Eu fico conversando com os meus pensamentos.
Eu tenho uma liberdade interior e exterior um pouco maior. Se eu fosse casado, não podia ser assim. Você tem que chegar, você tem que perguntar. Você tem que conversar, você tem que dar atenção, você tem que dar comida, você tem que fazer alguma coisa, você tem que cuidar, porque o casamento demanda é essa entrega. E essa entrega comporta um peso.
É por isso que não há casamento que fique em pé sem virtude, porque, paradoxalmente, há isso no Evangelho. Quanto mais eu sou criança, tanto mais eu sou maduro. Ou seja, eu encaro essas demandas da vida conjugal de maneira positiva e não de mau grado. Por exemplo, existem homens que não amadurecem. Então eles casam e querem ter ainda uma certa vida de solteiros, querem ter as suas amigas, querem ter as suas noites de futebol, querem ter os seus happy hours de trabalho enquanto a sua mulher está em casa.
Parece que ele está sendo mais adulto porque ele tem mais liberdade, mas na verdade ele é muito imaturo e não tem virtude porque não compreende que o peso do casamento, o peso da responsabilidade assumida, conquanto comporte algo de sacrifício, é bom e santificante. É sinal de responsabilidade e de amor. O mesmo vale para as situações mais corriqueiras quando, por exemplo, você precisa se esforçar para fazer algo contra a vontade, mas para o bem do seu cônjuge, esse sacrifício às vezes é muito difícil e, sei lá, você tem que ir visitar a tia chata da sua mulher.
Aí você pega 100 quilômetros de estrada para ver a tia chata e tem que se esforçar para não fazer cara feia, para ser simpático, para sorrir, para fazer aquilo com alegria, com generosidade, com dedicação. Isso é sacrifício. E esse tipo de sacrifício, de amor demanda de você virtudes. Ou seja, você tem que ter uma certa firmeza, uma certa capacidade de resistência.
Você precisa, de alguma maneira, aprender a se negar, a dizer não e o próprio gosto, a própria vontade. Se deixar de lado o mesmo em relação ao marido, quando você, por exemplo, precisa, pelas circunstâncias, sei lá, dar atenção para aquele homem porque ele está doente. Homem doente é o bicho mais carente do mundo. Aí vira um bebê de seis meses.
A largada você tem que ir lá e fazer e cuidar e dar atenção e se desdobrar, etc. É um sacrifício, é um sacrifício mesmo, mas é um sacrifício que é resultado do amor, que é uma característica do amor e que deve existir em todo o casamento cristão, que faz parte. Quando, por exemplo, eu renuncio num momento de tensão, a ganhar a briga para não perder o cônjuge.
Isso é muito importante. Uma vez eu conheci um homem muito introvertido que se casou com uma advogada e era tremenda a vida dos dois, porque a mulher tinha argumento para tudo. Ela sabia dar nó, um pingo d'água ímpar. Rodava o marido o tempo todo e esse homem já não sabia mais o que fazer. Por quê? Ela sempre tem razão.
Esses dias eu vi uma outra esquete de um casal em que a mulher perguntava para o marido se nós. Se você ficasse perdido numa ilha deserta, você preferia ir comigo ou sozinho.
Aí o marido perguntou ao marido. Respondeu sozinho Ficou brava. Aí ele disse Mas pera aí que eu te explico. É porque só o tempo que a gente ia gastar para ficar discutindo quem é que errou, quem é que não tem razão? Naquela situação eu teria construído um barco, eu já teria saído de lá, já teria caçado o peixe, eu teria feito 1001 coisas, etc, etc, etc.
É uma verdade, uma verdade dita de um modo cômico, mas é uma verdade. Ou seja, muitas vezes eu preciso renunciar a ter razão, tendo razão, eu preciso dar o braço a torcer por caridade, não porque eu quero tudo no preto, no branco, e isso demanda de mim uma grande humildade. Se eu não for humilde, eu não suporto isso.
Eu não me torno amargurado, ressentido, sempre queixume. Sinto que é, de fato o padrão que a gente vê mundo afora. Padrão de pessoas que não sabem se dar, não sabem se entregar, não sabem se sacrificar e por porque não sabem se sacrificar, não sabem se entregar porque não têm virtude, porque são seres invertebrados, porque são gente. Nós, ambulantes.
Na década de 80 eu tinha um filme chamado A Coisa que era uma gosma que saía sim, e afogando as pessoas. Tem gente que não é virtuoso e a coisa é uma gosma, não tem estrutura e muitas vezes não tem culpa de não ter estrutura. Às vezes ele vem de uma família disfuncional, às vezes vem de uma história traumatizante.
Às vezes não teve ocasião de aprender de verdade as virtudes na sua família. E aí tudo fica muito mais difícil. Mas nós cristãos, não podemos negligenciar a nossa estrutura interior. Então, nós estamos na Quaresma, eu preciso me examinar, eu me sacrifico positivamente pelo meu esposo ou pela minha esposa. Eu me sacrifico positivamente. O que significa isso? Não apenas quando ele demanda de mim um sacrifício, quando ela demanda de mim um sacrifício, mas voluntariamente, quando eu faço algo a mais pelo bem do casamento, eu me sacrifico positivamente.
Por exemplo, ele tem que acordar mais cedo. Você poderia ficar dormindo, poxa, mas custa fazer um sacrifício de lá, passar um café, conversar um pouquinho, dar um beijo dele? Embora, fazer um sacrifício sozinho não dói. Não custa. Faz toda a diferença. Às vezes você sabe que se você fizer algo pela sua esposa, que vai te custar alguma coisa, mas isso não é nada tão absurdo assim.
Às vezes eu dizer assim: "Olha, toma aqui R$ 200 pra você ficar bonita, vai gastar lá no salão", você ganha um mês com aquilo, aquilo te deixa feliz e realizado, A casa fica florescente. É um pequeno sacrifício, mas faz toda a diferença, faz toda a diferença. É claro que quando nós falamos de nos sacrificarmos, nós estamos primeiramente nos referindo ao sacrifício, que é a mortificação cristã.
Tem como valor sobrenatural no sentido de O primeiro alvo das minhas orações tem que ser o meu cônjuge. Eu tenho que rezar por ele, eu tenho que entregar lo a Deus, Eu tenho que entregar o meu casamento a Deus, e isso significa que eu tenho que me mortificar. Eu tenho que fazer alguma penitência pelo meu casamento, coisa que muitas pessoas descuidam de fazer, de oferecer um jejum, de oferecer uma pequena contrariedade que seja um café sem açúcar que você vai tomar para quem isso é sacrifício, que seja um pequeno incômodo que você faça contrariando o seu gosto, pois, porém, estas mortificações da convivência são muito exigentes e são um marcador de que nós estamos de
fato vivendo. Esse amor entrega esse amor sacrifical que Cristo nos ensinou no Evangelho. Tem uma crítica muito, portanto, vejam, eu necessito, eu necessito todo dia pensar no meu cônjuge antes de mim. Algumas pessoas são infantis, imaturas e não conseguem isso porque elas estão autocentradas demais e supervalorizam os seus sentimentos, os seus estados de ânimo. Então se sentem carentes, querem uma atenção desmedida, são pessoas assim, pesadas, excessivamente.
Precisariam ser um pouco mais leves no modo de se relacionar concretamente. Eu me lembro agora de um rapaz que, depois de um casamento recente, veio se confidenciar comigo e disse Padre, eu não aguento mais porque a minha esposa parece uma menina, ela tem que eu tenho que ficar olhando para ela o tempo todo. Eu tenho que ficar mimando ela o tempo todo, eu tenho que ficar paparicando a o tempo todo e obviamente isso é esgotado por.
Mas em situações normais, não me refiro a situações patológicas, por exemplo, de uma pessoa que regride psicologicamente a uma idade muito pequena e que fica arranjando encrenca por picuinhas. Mas numa situação normal, eu preciso aprender a colocar o meu cônjuge antes de mim, ou seja, o que vai agradá lo, o que vai favorecê lo, o que trará satisfação para ele.
Eu preciso reparar, por exemplo, quando o meu cônjuge está preocupado em ajudar, que ele seja sincero, porque às vezes ele guarda as coisas porque não quer, já sabe com quem casou, então já sabe que vai ter um bate boca, ser e falar. Então ele prefere não falar para não ter bate boca, se não vai virar cobrança ao invés de virar ajuda.
Então eu preciso aprender a facilitar a sua sinceridade. Então, quando ele vem me contar um fracasso ou uma dificuldade talvez financeira, pela qual naquele momento esteja passando, ou ela. O mesmo vale para os dois. É preciso dizer, saber dizer Nós estamos juntos, nós vamos superar. Conta comigo. Você não está sozinho, não fica nervoso. Calma, tudo bem. Você pode ter um vulcão por dentro querendo explodir, mas você sabe deixar o seu sentimento de lado para de algum modo poder entregar se por ele, por ela.
É difícil. A gente fica falando ele, ela, ele é assim, o cônjuge que é ele ou ela, tanto faz. É preciso colocar o próprio estado de ânimo de lado. Isso é sacrifício, é aprender a secundar os sentimentos do cônjuge. Por exemplo, depois de um certo tempo, a vida íntima fica um tanto monótona, porque não há grandes novidades, não existem atlânticos a serem descobertos e muitos casais deixam literalmente a monotonia reinar e ficam tempos sem terem o ato conjugal.
Muitas vezes por caridade, o cônjuge precisa chegar no outro e dizer Ei, e aí? Talvez ele não esteja com vontade, talvez não seja a coisa mais satisfatória para ele naquele momento, mas ele precisa aprender a ter essa disponibilidade ativa de quem, de alguma maneira, facilita para o cônjuge o acesso àquilo que ele tem direito. Aliás, porque o casamento tem, como dizia o Papa Francisco na encíclica Amoris Laetitia, Intrinsecamente, a linguagem da entrega corpórea.
Então é necessário muitas vezes facilitar, propor, ir ao encontro. O casal precisa se amar de maneira positiva. O que significa isso? Tem que ter afeto. É necessário que haja beijos, abraços, afagos, toque. É necessário que haja isso. Caso contrário, o esfriamento vai aumentando as distâncias. Isso se torna visível até para quem está do lado de fora. Você nota que aqueles dois parece duas estátuas, um ao lado do outro.
Não tem química, não tem entrosamento, não tem desejo de um pelo outro fazer o cônjuge sentir se desejado é um ato de caridade.
Na medida em que os anos vão passando, a manutenção dessa entrega, dessa disposição requer muito mais renúncia, muito mais sacrifício. Então, muitas vezes você talvez quisesse ficar um tempo sozinho com seus pensamentos, encucado, mas aí você vai e dá atenção. Então você não tinha vontade nenhuma de trocar algum afago. Mas é justamente nesse momento que você vai fazer o sacrifício de um abraço, de um beijo, de um eu te amo, de uma manifestação de cuidado, de atenção.
Nem sempre isso vai sair de maneira espontânea, mas a espontaneidade será algo sacrificada. Ou seja, não é um negócio que é feito à revelia da vontade, mas é a vontade que se empenha a fazer algo que de repente, não sairia de maneira tão espontânea assim. São sacrifícios, pequenos atos de entrega, pequenos atos de renúncia que nos ajudam e que nos questionam e que nos fazem pensar será que eu não posso viver o amor conjugal de uma maneira um pouco mais ativa, de uma maneira um pouco mais engajada?
Será que não estou o meu casamento descuidado? Será que ele não está se tornando um casamento, assim como uma sala largada à qual eu não dou atenção? Quanto eu estou me empenhando de fato para que essa relação seja interessante, seja íntima, seja amorosa? Eu preciso me fazer essas perguntas e isso vai a detalhes muito simples, como por exemplo Será que o meu tom de voz não podia ser um pouco mais afetuoso, menos instigante, menos irritado?
Será que eu não poderia ter atitudes um pouco mais proativas, vivas, que causassem uma resposta positiva do meu cônjuge? Enfim, tudo isso significa que cada um precisa tomar o casamento como seu. Esse casamento é meu. Eu quero levar essa pessoa que está comigo a sério. Eu vou amando a pra valer. Para construir um relacionamento não apenas duradouro, mas com maiores chances de realização mútua.
Repito, tudo isso exige virtude e virtude. Se exercita contrariando um pouco as tendências naturais e os movimentos espontâneos da nossa vontade. Era isso que eu tinha para compartilhar com vocês hoje.